A ESCULTURA E A PINTURA

HISTÓRIA DA ARTE DE ERNEST GROSSE (1893)

A ESCULTURA E A PINTURA

CAPÍTULO VII

Poucos achados pré-históricos conseguiram despertar maior curiosidade geral que as esculturas da época da rena, encontradas nas grutas da Dordogne. Entre restos animais e humanos, instrumentos de pedra e madeira, havia fragmentos de chifres de renas, cobertos de gravuras, representando, na maioria, animais tão bem desenhados que os zoólogos podiam reconhecê-los à primeira vista. Eram cavalos selvagens, renas, uros, cabritos monteses. A obra-prima dessas esculturas era um punhal de corno de rena, cujo cabo representava esse animal saltando. A obra honraria um escultor moderno1.

Conforme dissemos, tais esculturas eram executadas em chifre de rena. Como, porém, essa matéria só pode ser tra-

balhada em estado fresco, na opinião unânime dos entendidos os artistas deviam ser contemporâneos da rena. Em outras palavras, esses trabalhos pertencem a uma época muito remota. É verdade que, segundo Boucher de Perthes, nossas idéias sobre a idade da humanidade se modificaram inteiramente. Mas, ninguém acreditaria que o "homem primitivo" fosse capaz de executar semelhantes obras-primas. Efetivamente, correspondiam tão pouco à idéia que se fazia da civilização das épocas primitivas que se tentou, para livrar–se de testemunhos incômodos, declará-las falsas2. Era preciso, porém, provar a falsidade. Mas as circunstâncias que rodeavam o encontro dos objetos afastavam qualquer hipótese desse gênero3. Provavelmente, pois, ter-se-iam considerado

(1) Cf, Lartet and Christy, "Reliquiae Aquitanicae", B., pl. II, VII, VIII, X, XIX, XX.

(2) Duas peças — uma raposa e um urso — que se teriam encontrado no Kessler Loch, perto de Thayingen, foram de fato reconhecidas como falsas. Mas, as escavações de Thayingen realizaram-se numa época em que os achados franceses há muito eram conhecidos.

(3) Depois, esses achados tornaram-se muito freqüentes. Na Exposição Universal de 1889, na sala de antropologia, encontrava-se uma série de esculturas da gruta de Mas d’Azil. Algumas dessas peças ultrapassavam mesmo, em valor artístico, a famosa figura de rena de Laugerie-Basse. Com efeito, foi preciso a afirmação expressa dos especialistas que assistiram aos trabalhos de escavação para fazer desaparecer todas as dúvidas sobre a idade dessas esculturas maravilhosas.

as obras dos homens da época da rena como um dos problemas insolúveis dos tempos pré–históricos, se não se tivesse recordado que vários viajantes de nossa época puderam observar manifestações de análogo talento artístico, em diversos povos primitivos. É estranhá-vel que as raças primitivas sejam as que dão prova de grande talento na escultura.

de distinguir a imagem de um homem da de outro objeto, pelo menos se certas partes, a cabeça por exemplo, não fossem desenhadas em proporções exageradas"4. Não obstante, algumas das mais interessantes obras da escultura australiana haviam sido descritas e reproduzidas. Cerca de 30 anos antes, em 1840, George Grey descobrira no Glenelg su-

Fig. 19 — Cabo de um punhal em madeira, (segundo Glenelg).

De início, consideremos os fatos, como são apresentados pelos diversos documentos. Comecemos pelos australianos.

Na época em que se acreditava serem os australianos se-mi-humanos, negava-se-lhes também qualquer espécie de talento artístico. Ainda em 1871, Wake podia repetir diante da Sociedade de Antropologia de Londres, sem levantar nenhuma contradição, a opinião de Olfields, isto é, "que os australianos eram incapazes

perior (a noroeste do continente australiano) algumas cavernas, cujas paredes estavam revestidas de pinturas. No rochedo que formava o teto da primeira caverna, via-se pintada a metade superior de um homem, que se destacava em branco sobre o fundo negro da rocha. A cabeça estava rodeada de uma auréola de riscos vermelhos claros, representando provavelmente uma espécie de penteado5. Na figura, voltada para o observador, os olhos e

(4) "Journ. Anthr. Inst.", I, 75.

(5) Os indígenas do Norte usam penteado análogo ("Oogee"), quando dançam o corrobori. Veja-se Brough Smyth, I, 280.

o nariz eram bem desenhados, mas faltava-lhe a boca, como de resto em todas as outras figuras6. A figura, pintada de branco, os olhos pretos, rodeados de linhas amarelas e vermelhas. Os dedos são representados por traços no fim do braço. As pequenas linhas que cobrem o corpo talvez indiquem as cicatrizes, de que já tratamos, ou uma veste de pele. O rochedo da esquerda estava ornado com um grupo de quatro cabeças, pintadas em cores vivas. "Pela expressão doce de seus rostos, eu as tomava por mulheres, diz Grey. Ademais, pareciam olhar para a grande figura, de que falamos. Cada cabeça ostentava um penteado muito extravagante, pintado de azul escuro. Uma delas trazia um colar. As duas figuras de baixo levavam uma espécie de veste.

Fig. 20 — Pintura numa caverna no Glenelg.

(6) Andrée, que acredita ter o indígena a idéia de que uma figura desenhada não sabe falar, engana-se, ao pensar que o australiano evita sempre figurar a boca nos seus desenhos. Veja_se Andrée, "Ethnogr. Parallelen. Neue Folge", 62. Exemplos do contrário encontram-se em Brough Smyth, I, 288; II, pl. 257-258. Veja-se também Ratzel, "Völkerkunde", II, 25-95.

Todas possuíam um cinto em volta dos rins. A expressão era diferente de figura para figura e embora duas delas não possuíssem boca, pareciam-me muito bonitas ("rather good–looking"). O conjunto destacava-se sobre fundo branco"7. "No teto, havia uma figura elíptica, amarelo-dourada, com linhas vermelhas interrompidas, divididas em duas por uma lista branca, orlada por duas linhas azuis. Na elipse, encontrava-se um canguru vermelho, depois alguns desenhos representando provavelmente pontas de lanças. Ao lado desse quadro, via-se uma figura de homem, tendo os contornos desenhados em vermelho e um canguru, também vermelho, nos ombros. Viam-se também algumas outras figuras de animais e homens, não tão bem desenhadas, porém. Diante de outra caverna, num rochedo de grés, destacava-se uma cabeça esculpida de perfil, medindo 2 pés de altura por 16 polegadas de largura. A profundidade aumentava das bordas para o centro, onde atingia uma polegada e meia. A orelha estava mal colocada, mas o resto bem acabado e muito superior a tudo o que se possa esperar de uma raça selvagem"8. Foi na terceira caverna que os viajantes encontraram a obra mais notável. "O quadro principal (da terceira caverna) representava a figura de um homem, tendo 10 pés e 6 polegadas de altura, coberta, a partir da barba, por uma espécie de túnica vermelha que descia até os tornozelos e ocultava os braços até os punhos, de modo que só os pés e as mãos, mal executadas aliás, eram visíveis. Uma série de círculos vermelhos, amarelos e brancos, rodeava a cabeça. Não havia boca. O círculo exterior encerrava algumas linhas vermelhas, tão regularmente dispostas que pareciam exprimir um sentido definido.

Fig. 21 — Pintura numa caverna, sobre o Glenelg, (Segundo Grey).

(7) George Grey, "Journals of two expéditions of Discovery in North West and West-Austr", 1841, I, 203.

(8) Grey, I, 205, s.

 

Mas, era impossível dizer se representavam caracteres de escrita ou ornamentos apenas". O próprio Grey não duvida de que as pinturas e esculturas da caverna de Glenelg sejam obras dos indígenas. Tão amiúde, porém, afirmou-se o contrário, que nos parece necessário defender a hipótese de Grey. Tem-se dito que tais pinturas deviam necessariamente provir de um náufrago europeu ou de um dos comerciantes malaios que freqüentam aquelas costas, pois é impossível que os rústicos selvagens da Austrália sejam capazes de semelhantes trabalhos artísticos. Contudo, está fora de dúvida que eles possuem, na verdade, um certo talento artístico. Conhecemos dois desses desenhos que ainda ultrapassam o valor das pinturas referidas. A técnica dos desenhos descobertos por Grey mostra, ademais, os característicos que encontramos em todas as obras de arte australianas.

 

Fig. 22 — Pintura numa caverna australiana sobre o Glenelg, g, (segundo Grey).

Veremos mais adiante que pinturas e esculturas estão longe de ser coisas raras nas regiões setentrionais do continente australiano. "As cores não possuem nada de impressionante", diz Gerland, que estuda com certo cepticismo as pinturas de Glenelg, "e são familiares aos habitantes da Nova Holanda. O carvão fornece o preto, certas espécies de argila, o amarelo e o branco, e a argila queimada, o vermelho"9. Os objetos representados nas referidas pinturas são tirados do meio habitual dos indígenas, com exceção da figura que vamos descrever. A figura da terceira caverna é coberta com uma espécie de sotaina, que certamente os australianos desconhecem. Os pés estão calçados, o que também não é costume na Austrália. E Gerland admite "que os caracteres existentes no círculo que rodeia a cabeça, descritos por Grey, sejam letras da escrita macassar ou bugi"10. Todavia, embora se provasse que a referida pintura representa um malaio, não ficaria demonstrado que o pintor não fosse um australiano. À técnica é que incumbe decidir a questão: a quem atribuir a pintura? Ora, é suficiente lançar um olhar para os desenhos de Grey para verificar que a técnica da mencionada pintura não difere das outras, cuja origem australiana não padece a menor dúvida. Se os símbolos do penteado são realmente caracteres de escrita macassar, o artista era, provavelmente, um indígena que, durante certo tempo, freqüento os bugis11. Contudo, estamos com Grey, autorizados a ver, nas pinturas do Glenelg, obras da arte australiana. Já dissemos que não são as únicas. Em particular no Norte, encontram-se com freqüência desenhos nas rochas. Stokes descobriu na ilha de Depuch (grupo Forestier) toda uma galeria de relevos esculpidos em rocha. "Tinha-se retirado a crosta vermelha do rochedo, de sorte que as esculturas se apresentavam verdes, cor original da rocha. Numerosas dessas esculturas, que se reconheciam à primeira vista, demonstravam a grande habilidade de seus autores". As reproduções publicadas por Stokes confirmam plenamente o seu julgamento. Os relevos, na maioria, representam animais, um tubarão, acompanhado por dois pilotos, um cão, um escaravelho um caranguejo, um canguru etc, todos figurados pelos contornos apenas, mas tão bem caracterizados que se reconhecem, com efeito, à primeira vista. Também o homem não deixa se aparecer. Entretanto, o guerreiro armado de uma lança ou escudo, que Stokes reproduz, é executado com muito menos habilidade que os animais. A mesma observação pode ser feita em relação a uma das esculturas que representam o corrobori.

(9) Waitz-Gerland, VI, 761.

(10) Waitz-Gerland, VI, 762.

(11) Waitz-Gerland, VI, 762: "Os neo-holandeses desses recantos visitam muito freqüentemente as regiões malaias" (Jukes, "Narrative of the survey voyage, of H.-W.-S.-S. Fly", I, 139).

 

"O número de esculturas era tão considerável que há muito os indígenas deviam dedicar–se a esse passatempo. Enquanto eu contemplava os diversos desenhos — homens, animais, pássaros, armas, instrumentos e cenas da vida dos selvagens — comecei a refletir sobre o estranho impulso do espírito que leva, talvez em épocas regulares, aqueles homens a visitar essa galeria no meio do mar, para contemplar e admirar as obras de seus ancestrais. É indubitável que deram provas de tanta paciência, trabalho e entusiasmo quanto Rafael ou Miguel Ângelo, quando pintavam os grandes murais da capela Sixtina ou do Vati cano. Talvez também a admiração e os aplausos dos contemporâneos lhes tenham dado satisfação igual à que o favor dos papas e príncipes e o elogio de todo o mundo civilizado podiam dar aos grandes mestres italianos"12. Na ilha de Chasm (golfo da Carpentaria), há uma caverna em que se vêem desenhos pintados de vermelho ou preto e que representam cangurus, tartarugas, uma mão, um canguru perseguido por trinta e dois homens, dos quais o terceiro, duas vezes maior que os demais, leva uma espécie de espada13. Na ilha de Claks (costa noroeste), havia um rochedo tendo sobre um fundo de ocre vermelho mais de 150 figuras pintadas com argila branca (tubarões, tartarugas, estrelas-do-mar, maças, canoas, cangurus, cães, etc.)14. Na ilha de Cap York, Normann Taylor encontrou uma parede de rocha apresentando numerosas figuras, pintadas de branco e cujos contornos eram traçados com ocre vermelho. Além disso, a figura de um homem estava coberta de manchas amarelas. No fundo duro da praia, viam-se os contornos de algumas tartarugas bem desenhadas, que recordaram a Taylor os rochedos esculpidos de Bondi, nas redondezas de Sidnei, onde ele viu homens, tubarões e peixes gravados em grês15. As esculturas lembram provavelmente as dos arredores de Porto Jack-son, descritas e descobertas por Angas. "Quando observamos os rochedos em todas as direções, diz Angas, encontramos um número suficiente desses contornos, como a confirmar nossa opinião de que haviam sido executados pelos indígenas. Em que época? Não o sabemos. É provável que datem de tempos muito remotos, pois tivemos que retirar a terra e as plantas que os cobriam parcialmente. Outros estavam meio apagados pelos agentes atmosféricos, embora as linhas dos desenhos tivessem às vezes uma polegada de profundidade. De início, não podíamos admitir serem as esculturas obra dos selvagens. Quando descobrimos a primeira, a de um canguru, pensamos ter sido desenhada por europeu. Mas, ampliando nossas investigações, vimos que os rochedos mais inacessíveis encerravam esculturas análogas, representando todos os objetos australianos ("indigenous"), cangurus, sariguéias, tubarões, escudos, boomerangs, e principalmente homens nas posições características dos dançarinos do corrobori. Não pudemos deixar de concluir pela sua procedência indígena. Os europeus teriam desenhado navios, cavalos e homens de chapéus, se, além disso, estivessem dispostos a empreender um trabalho tão fatigante e aborrecido. Um velho autor, que viveu pelo ano de 1803 e que escreveu sobre a Nova Gales do Sul, diz acerca dos indígenas: "Têm relativo gosto pela escultura. Na maioria, seus objetos são ornados com gravuras grosseiras, que executam com pedaços de concha. Nas rochas, observam-se figuras de peixes, pássaros, espadas, animais, etc. que não são muito mal desenhados. Algumas esculturas, figurando peixes, mediam 25 pés de comprimento. Há a notar também que os escudos esculpidos eram perfeitamente semelhantes aos usados ainda hoje pelos indígenas de Porto Stephen. Encontramos trabalhos análogos perto de Lane Cove, Port Aiken e Point-Piper. Quando visitava Point-Piper, supunha encontrar provavelmente tais esculturas no rochedo plano, situado na extremidade do parque, que faz parte do estabelecimento. Procurando com cuidado, encontrei alguns em estado de conservação relativãmente bom16". Philip observou em toda parte (em Botany–Bay, Port Jackson e no interior), figuras de animais: peixes, pássaros, lagartos (estes particularmente grandes) e desenhos de escudos, armas, homens, etc. Essas figuras estavam gravadas na rocha, de maneira tosca, porém, muito exata. Um dançarino, principalmente, estava muito bem desenhado17.

 

(12) Stokes, "Discoveries in Australia", II, 170, s.

(13) Waitz-Gerland, VI, 760 (Flinders, "Voyage to Terra Australis", II, 158).

(14) Waitz-Gerland, VI, 760 (King, "Narrative of a survey of the intertropical and western coasts of Australia", II, 25).

 

(15) Brough Smyth, I, 292.

 

Os exemplos mencionados bastam para caracterizar a natureza e a distribuição geográfica das gravuras nas rochas da Austrália. Se tais obras correspondem a nossas pinturas murais (afresco) e a nossos relevos, da mesma forma nossos quadros têm seus correspondentes australianos, nos desenhos que os indígenas executam em pedaços de cortiça enegrecida ao fogo. Tais esboços, que se gravam por meio de uma pedra, um dente ou simplesmente com a unha, são, sem dúvida, o que a arte australiana pode produzir de mais belo. É de lamentar que se não tenha reunido e descrito maior número delas. As gravuras de rochas e as esculturas limitam-se, em geral, a representar figuras isoladas. Mas os desenhos na cortiça representam grandes grupos de homens e animais, com a paisagem que os cerca. Brough Smyth publicou um desenho assaz característico dessa espécie. O pedaço de cortiça fora outrora parte do teto de uma choça construída por indígena à margem do lado Tyrell. Os costumes dos brancos não lhe eram desconhecidos, "mas nada lhe haviam ensinado". As figuras são desenhadas com a unha na cortiça enegrecida pela fumaça. A parte inferior do quadro representa primeiro um tanque rodeado de árvores baixas. À direita, ergue-se a casa de pedra de um colono europeu. Em cima, um grupo de indígenas que dançam o corrobori. As mulheres, acocoradas à esquerda, cantam e marcam o compasso. Ao lado delas, diversos espectadores. Mais em cima, alguns grupos separados por linhas. Ainda à esquerda, num círculo, dois homens, armados de machados, aproximam-se de uma cobra. No meio, um indígena em sua canoa persegue um pássaro. À direita, duas aves nadam em um tanque, cercado de brejo. Além do tanque, um grupo de árvores e, no meio destas, um indígena, fumando cachimbo. No chão, perto de ambos os homens, armas e instrumentos. Em cima de tudo isso e até a borda superior do quadro, estende-se uma planície, movimentada por animais e

(16) Angas Wood, "Natural History of Man", II, 95.

(17) Waitz-Gerland, IV, 759.

árvores isoladas. As árvores e os animais são muito bem desenhados: o eucalipto da esquerda, em que um indígena trepa com o auxílio do machado, os cangurus, os casoars, os perus, uma serpente que se ergue sobre a cauda, tudo se acha reproduzido com todas as suas características. A faixa ondulada que fecha o todo representa provavelmente um rio. A execução desse quadro, assaz grosseira, revela, porém, um talento artístico que ninguém iria procurar nos arredores do lago Tyrell. Os croquis a lápis e a pena, que Brough Smyth reproduz em seu segundo volume, são tão notáveis quanto o quadro que acabamos de descrever. O fato de ter o artista australiano, autor desses croquis, recebido os materiais de um colono europeu, não significa que ele possua também uma educação européia. Ao contrário, era ele um rude aborígine ("an un-taught aboriginal lad"). Executava esses croquis espontânea e muito rapidamente, sem modelos. A parte superior da primeira folha mostra uma dança guerreira. Os dançarinos que agitam seus escudos, maças e boomerangs estão na posição característica da dança. Em baixo, vê-se um corrobori ordinário. À esquerda, os dançarinos adornados com folhas. À direita, numa pequena colina, a orquestra, composta de mulheres e dominada por uma árvore, em que está pousado um pássaro. A parte inferior da folha é ocupada por uma cena de caça. Um indígena, em sua pequena canoa, aponta a lança para um peixe. Três caçadores, ocultos atrás das ramagens, ao alcance da mão, aproximam-se de quatro casoars. O grupo de três caçadores merece especial atenção, porque mostra a única tentativa de observação das leis da perspectiva que pudemos encontrar na arte australiana. O grupo principal da segunda folha representa igualmente um corrobori, assistido por um casal europeu perfeitamente caracterizado. Em cima, vê-se a granja, duas casas de tetos altos, cujas chaminés desprendem fumaça. No resto da folha, estão reproduzidas cenas de caça: um indígena perseguindo um lagarto iguana e brandindo o machado; um outro, na canoa, espeta um peixe com a lança; um terceiro, também em canoa, apodera-se de uma tartaruga; finalmente, um indígena ameaça com a sua lança um casal de casoars. Essas figuras, na maioria, parecem silhuetas. Os contornos, apesar de pretos, têm expressão e vida. Outro croqui, reproduzido por Brough Smyth, está desenhado com o mesmo vigor, porém, com mais cuidado. O grupo de colonos que mostra está excelentemente observado e atesta, na opinião de Brough Smyth, algo da procura do elemento humorístico. O artista era um rapaz indígena18. Às vezes, gravam-se os desenhos com uma lasca de concha, ou um dente preso a um pedaço de madeira, como se faz nos ornamentos dos escudos ou maças. Também sobre esses trabalhos Brough Smyth apresenta um bom exemplo, que consiste num monólito, erigido por um indígena da tribo Yarra, em homenagem ao companheiro morto. As figuras são gravadas com muito capricho. Os animais aí representados não são inferiores aos dos demais desenhos. "O artista já é falecido, não sendo, pois, possível explicar a coluna". Os outros membros da tribo ignoram a significação das referidas figuras. Mas, supõem que os cinco homens da parte superior sejam amigos do defunto, que querem saber a causa da morte. As figuras de animais significariam, na opinião deles, que o homem não morreu de fome, e as figuras extravagantes da parte inferior seriam Mooroops ou espíritos que lhe teriam causado a morte pela magia19. Encontraram-se desenhos semelhantes nas cabanas dos tasmânios. "Nas montanhas do oeste, diz Calder, descobriram-se choças ornadas com desenhos grosseiros feitos com espinhos. O primeiro desses desenhos representava um canguru, cujas pernas anteriores eram duas vezes mais compridas que as posteriores. Outro desenho representava um casoar. Um terceiro, um animal que podia ser um cão, um cavalo ou um crocodilo. Mas, a obra-prima da coleção era um quadro de batalha; uma escaramuça entre indígenas, com combatentes e homens feridos e mortos"20.

Fig. 24 — Desenho australiano (segundo Brough Smyth).

 

 

Fig. 25 — Tela funerária australiana feita na casca (segundo Brough Smyth).

(18) Brough Smyth, II, 258.

(19) Brough Smyth, I, 289.

 

Tentemos agora resumir as descrições isoladas precedentes e determinar os traços característicos gerais da arte australiana. As obros de arte australiana são, na maioria, desenhos, havendo muito poucos quadros policromos. Os australianos empregam em suas pinturas as mesmas cores da arte ornamental: o vermelho, o amarelo e o branco, que são quase sempre de origem mineral, o preto feito de carvão de madeira e o azul, cuja origem desconhecemos. Misturam-se essas cores com gordura, adi-cionando-se-lhes, em seguida, uma goma resinosa e indelével, como se pode verificar nas cavernas do Glenelg21.

Nos quadros australianos, nunca se vêem linhas de sombras. Gravam-se os desenhos na pedra ou na madeira. Pintam-se duma só cor na rocha, que às vezes se unta previamente de uma camada de cor, que serve de fundo ao quadro. Em regra geral, limita-se a traçar os contornos das figuras, que se completam depois com tinta. Preferem-se as vistas de perfil, sem empregá-las, entretanto, exclusivamente. Apenas um grupo mostra o esforço do artista na observação das leis da perspectiva, o que talvez não passe de um acaso.

Pode dizer-se, sem risco de erro, que a perspectiva linear e estereoscópica é inteiramente desconhecida pelos australianos. Como outrora os egípcios, eles colocam uns sobre os outros os objetos que, na realidade, estão uns atrás dos outros. Em parte, os objetos representados pela arte australiana são figuras isoladas, sem relações entre si e, em parte, grupos, amiúde riquíssimos de figuras. Com poucas exceções, tais objetos fazem parte do meio habitual dos indígenas. É indispensável observar que nunca se encontra na arte australiana essa "fantasia sem limites", que com tanta freqüência se atribui aos "selvagens". Ao contrário, muito mais por falta de imaginação é que se poderia condená-los. A forma das obras de arte em questão é tão realista quanto os seus motivos: o artista esforça-se por traçar o mais fielmente possível as formas e os movimentos das coisas que exprime, conseguindo realizá-lo, apesar de seus instrumentos grosseiros, de maneira melhor que a maioria dos europeus com seus instrumentos aperfeiçoados.

(20) Calder, "Native Tribes of Tasmania. Journ. Anthr. Inst." 111, 21.

(21) Os indígenas extraíam uma cor vermelha de rochas decompostas, nas qi:ais se encontra sob a forma de argila, ou cozinhando o pórfiro ou o basalto. O ocre e a argila amarelos não são comuns, chegando a faltar inteiramente em algumas regiões. O branco existe sempre onde há granito e nas formações paleozóicas. Nas regiões terciárias, onde a argila branca não é encontrada à superfície, os indígenas fabricam uma preciosa cor com gesso e selenite. O sebo ou o carvão cie madeira fornecem-lhe o prelo (Brough Smyth, 1, 294). Encontra-se uma cor amarela no corpo de certas formigas que colecionam pó amarelo. Uma espécie de alga fornece também o amarelo. Ademais, empregam-se ainda sucos de piar tas como tinta, por exemplo, para pintar de vermelho (Waítz-Gerland, II, 761).

 

Esse talento artístico não é, porém, apanágio exclusivo de alguns indivíduos isolados. Ao contrário, parece achar-se generalizado entre os indígenas. "Numerosos jovens são capazes de desenhar objetos", diz Chauncy. "No Murray, onde os indígenas costumam cobrir suas choças com pedaços de cortiça, os jovens divertiam-se com freqüência, gravando ou traçando com espinho, na parte interior das cortiças, figuras ou cenas diversas, como recordação de algum acontecimento. Considerável número de jovens possui relativo talento artístico e executa muito rapidamente croquis"22. Albert le Soueff diz igualmente "que os indígenas possuem geralmente grande talento para a escultura e o desenho"23. É evidente que há graus de talento. Um olhar pelos exemplos que citamos é suficiente para convencer-nos dessa verdade. Na Austrália também há bons e maus desenhistas. Mas, o talento artístico parece ser mais generalizado na Austrália que na Europa.

Também se pretendeu negar aos bosquimanos "semi-ani-mais", como aos australianos, até mesmo o mais modesto talento artístico. Apesar disso, os bosquimanos possuem o dom de observar e de transmitir o que viram, cuja procura seria inútil nos antropologistas penetrantes, que em toda parte descobrem semelhanças com o macaco. As esculturas e pinturas nas rochas são tão freqüentes nas regiões habitadas pelos bosquimanos que seria impossível negá-las. Fritsch descobriu, numa cadeia de colinas, não longe de Capetown, milhares de pedras chatas, "em que se viam desenhos de diversos animais, em geral vinte ou mais em uma só pedra". "A distribuição geográfica dessas figuras, diz ele, é muito extensa. Vai desde as cercanias de Capetown, onde atualmente ainda há restos de tais obras (em Tulbaghkloof) através de toda a colônia e franqueia mesmo o rio Orange"24. Mark Hutchinson encontrou nas montanhas Draken cavernas habitadas outrora por bosquimanos, e cujos muros estavam cobertos de pinturas. Hubner viu, perto de Gestoppte Fontein, no Transval, duzentas ou trezentas figuras gravadas numa ardósia pouco sólida25. A técnica dessas obras de arte africanas é quase idêntica à que se acha em vigor entre os negros australianos. As figuras são gravadas em rocha escura, de modo que se destacam, ou então pintadas em cor nas rochas claras. A provisão de cores dos africanos não é mais rica que a dos australianos: um vermelho vivo, um ocre escuro, amarelo e preto. Parece que, às vezes, se encontra o verde. Misturam-se as cores com gordura ou sangue e aplicam-se com uma pena de pássaro26.

(22) Brough Smyth, II, 25S.

(23) Id., II, 299.

 

 

Fig. 26 — Desenhos nos rochedos dos bosquimanos (segundo Fritsch).

 

 

(24) Fritsch, "Eingeborne Süd-Afrikas", 426.

(25) "Journ. Anthr. Inst.", XII, 464. "Zeitschr. f. Ethnol.", III, 51.

(26) Wood, I, 298.

Os objetos que os bosquima-nos desenham são copiados do mundo em que o artista australiano encontra igualmente os seus: do seu meio habitual. É verdade que Fritsch diz "que os artistas às vezes se entregam à imaginação". O único exemplo que cita não nos convence, porém, dessa imaginação particular: "é uma figura humana nua, com ziguezagues vermelhos em volta dos rins e que na mão tem algo análogo a um guarda-chuva fechado. Essa figura acha-se em uma rocha de Key-Poort. É difícil interpretá-la"27. Em regra geral, o bosquimano representa somente as coisas que viu e que lhe interessam, como animais e homens. É claro que um povo que se alimenta quase exclusivamente de caça não desenhe plantas. A fauna superior da África do Sul, ao contrário, é abundantemente representada: elefantes, rinocerontes, girafas, alces, búfalos, antílopes (Üversos, avestruzes, hienas, macacos e também animais domésticos, cães, gado, cavalos. Tampouco os habitantes da África do Sul são esquecidos. Encontra-se o pequeno bosquimano com o seu arco, o grande cafre com seu dardo curto e finalmente o bôer, com o seu chapéu largo e o terrível fuzil. Essas figuras, na maioria, vêem-se umas ao lado

das outras, sem ter relações entre si. Entretanto, há casos em que o bosquimano concebe e executa composições inteiras: o exemplo mais curioso que conhecemos representa uma batalha entre bosquimanos e caíres, que Andrée reproduziu de M. H. Dieterlen, da Sociedade de Missões Evangélicas de Paris. O original acha-se numa caverna distante dois quilômetros da estação da missão Hermon. É um bando de bosquimanos que roubou um rebanho de gado, sendo perseguido pelos cafres. Enquanto alguns se afastam com os animais, os outros, com os seus arcos, opõem resistência aos inimigos que se aproximam, armados de lanças e escudos. "O que é notável, diz Andrée, é a exagerada diferença de estatura entre os pequenos bosquimanos e os grandes cafres. Pelo contraste, talvez o artista quisesse exprimir o heroísmo de que os bosquimanos davam mostra, resistindo àqueles gigantes"28.

As obras artísticas dos bosquimanos revelam as qualidades que admiramos nos australianos: a exatidão admirável com que os indígenas vêem e reproduzem as formas e os movimentos naturais. "Os sinais característicos das diversas espécies estavam tão bem reproduzidos, diz Buttner, que nunca duvidamos da significação de uma figura, ainda que o tempo não tivesse deixado subsistir grande coisa"29. O que chama atenção, antes de tudo, nesse quadro, é a fidelidade e a vivacidade com que estão desenhadas as atitudes, que somente a fotografia instantânea é capaz de revelar com tamanha exatidão. Ademais, esse quadro sofre da falta característica de perspectiva que notamos normalmente na arte australiana. Mas, entre os bos-quimanos, é uma exceção, porque os bons desenhistas desse povo conhecem pelo menos os rudimentos da perspectiva. "Há notar, diz Buttner, que as figuras dos vários grupos mais afastados são desenhadas em proporções menores". Mais adiante, menciona uma representação de caça à gazela, "em que se vê perfeitamente como os caçadores, distribuídos numa longa linha circular, conduzem os animais para o centro. As leis da perspectiva eram igualmente observadas nesse quadro, sendo menores os caçadores e os animais do segundo plano30. A perspectiva e os escorços estão bem realizados. Um desenho representando um boi ou um alce, visto de trás, é de tal modo notável que se poderia tomá-lo por um estudo ou uma demonstração destinada ao ensino do desenho31.

(27) Fritsch, 426.

(28) Andrée, "Ethnographische Parallelen. Neue Folge", 67.

 

 

Fig. 27 — Desenho esquimó gravado num dente de morso.

 

Tudo o que acabamos de dizer acerca das obras de arte dos australianos ou bosquima-nos se estende aos desenhos dos caçadores do norte. Todas as tribos que habitam o norte da Ásia e da América — os tchuktchis, aleutas e esquimós — são grandes admiradores da arte do desenho. Não há museu etnográfico que não possua alguma peça artística procedente desses povos. É inegável que as dimensões de suas obras artísticas são mínimas.

(29) "Zeirschr. f. Ethnol.", X, 17.

(30) "Zeitschr. f. Ethnol.", X, 17.

(31) "Journ. Anthr. Inst.", XII, 464. É verdade que Baines diz exatamente o contrráio. "O bosquimano ignora a perspectiva e não tem absolutamente a idéia de que se pode esboçar alguma coisa ou esconder um chifre ou um membro atrás do outro, tal como se apresenta ã vista". Evidentemente, Baines não observou — e isso decorre claramente do que diz — senSo desenhos mal feitos, como outros viajantes o fizeram, ao lado, porém, de bons desenhos. Encontra-se uma obra medíocre desse gênero em Wood, a que se refere Baines. Entretanto, êla é absolutamente insuficiente para dar uma idéia do talento artístico dos bosquimanos.

Em vão se buscariam no Norte as pinturas monumentais da Austrália e da África do Sul. O artista hiperbóreo grava as figuras em miniatura, num dente de morso, ou as pinta de ocre vermelho e carvão, misturados com óleo num pedaço de pele de morso32. Esses desenhos mostram, ademais, o caráter realista que os desenhos bos-quimanos possuem em comum com os dos australianos.

O hiperbóreo gosta também de representar figuras e cenas da vida cotidiana. Nos dentes de morso dos esquimós, vêem–se cabanas de neve e tendas cobertas de peles, ursos e mor-sos arpeados por um caçador, homens que numa embarcação se aproximam da costa, onde outros passam em trenós puxados por cães. Nos desenhos dos tchuktchis, observam-se cenas semelhantes e, principalmente, renas. Os aleutas adornam as viseiras de seus extravagantes gorros de caçadores com kayak perseguindo baleias e peixes. Ao contrário, os seres fantásticos são raros. Dentre os numerosos desenhos tchuktchis que Hildebrand reproduz, encontra-se apenas um ser que não pertence ao mundo real: o homem na luta é representado por um pequeno homem vestido como um tchuktchi e que está no centro de um- círculo muito mal traçado33. A mesma personagem sobrenatural vê-se também em alguns desenhos esquimós interessantes que Boas publica na sua tradução da legenda de Quand-jaqjuó34. Aí também o homem na lua não se distingue em nada de um esquimó ordinário. O estilo dos desenhos hiperbóreos não difere essencialmente do dos povos a que nos referimos atrás. A perspectiva não é mais conhecida dos esquimós que dos australianos, embora se possa notar certo progresso em alguns desenhos35. De outra parte, esses desenhos se parecem por suas qualidades. Os diversos grupos e figuras são executadas pelos hiperbóreos com o realismo admirável que vimos no estudo dos desenhos australianos e bosquimanos.

(32) Os desenhos dos esquimós são feitos em pedaços de dentes de morso, ligeiramente curvos, e em arcos que utilizam para movimentar o pau de produzir fogo ("firethrill"). Hildebrand, "Beiträge zur Kunst der nierden Naturvölker". Nordenskiöld, "Studien und Forschungen", 313. Veja_se "ibiden" na plancha da pag. 320 a reprodução de um pedaço de dente de morso com desenhos procedentes dos tchuktchis. Os demais desenhos tchuktchis reproduzidos por Hildebrand foram executados a lapis ou a ocre vermelho em papel da expedição de La Vega. Choris ("Voyage pittoresque autour du Monde") reproduz a viseira de madeira de um gorro de aleuta, em que se vê uma caça de baleias e focas.

(33) Hildebrand, "Beiträge", 311, fig. 6.

(34) "Annual Report Bureau of Ethnol.", 1884-85. Boas, "The Central Eskimo), 631,632.

(35) Cf. Hildebrand, 311, fig. 10, em que as renas mais afastadas são menores que as do primeiro plano. Veja-se principalmente Boas, 631, fig. 538.

Se os hiperbóreos, como desenhistas, não se acham acima dos demais povos caçadores que mencionamos, em compensação desenvolveram a escultura de maneira prodigiosa.

 

Os australianos e os bosquima-nos não a conhecem, mas os hiperbóreos destacam-se nessa arte. Com efeito, suas esculturas são as melhores obras da arte primitiva. Essas esculturas — sempre pequenas — representam homens e animais.

As figuras humanas são geralmente executadas de maneira muito sintética, embora sempre características, e são muito menos bem feitas que as de animais38. Estas são maravilhosas. Os diversos morsos, focas, ursos, cães, raposas, pássaros, peixes e baleias, enfim, todos os animais que desempenham um papel na vida dos hiperbóreos são tão bem imitados e vistos com tanta exatidão que essas esculturas poderiam servir de motivos de estudo para um zoólogo. Não se encontra nada semelhante em outros povos caçadores da época atual. Seria preciso remontar até à época da rena para encontrar obras equivalentes37. É necessário também mencionar aqui as máscaras dos esquimós, embora dificilmente possam passar por obras primitivas. São elas desconhecidas da maioria dos hiperbóreos, encontrando-se apenas entre as tribos da península do Alasca. É, pois, muito provável que os esquimós as tenham recebido, bem como as danças em que são usadas, de seus vizinhos ameríndios da costa noroeste, que as possuem numerosas e muito originais38. Contudo, não são desprovidas de valor para a compreensão do talento artístico dos esquimós.

(36) Mas há exceções. O Museu Etnográfico da cidade de Freiburg possui a moldagem de um torso de mulher, esboçada por um esquimó e que poderia passar por um esboço feito por escultor europeu.

(37) Veja-se Hildebrand, 324-34, e Boas, pl. VI II e IX.

 

A mais superficial observação revela imediatamente a grande diferença que distingue essas máscaras das demais obras de arte primitivas dos esquimós. Enquanto nestas, os desenhos e as esculturas encerram sempre um caráter muito realista, a maioria das máscaras parece ser produto de uma imaginação desregrada, principalmente — o que é muito significativo — entre as tribos do sul, que se acham na vizinhança imediata dos índios do Noroeste39. Se se atentar para a rica coleção que Jacobsen adquiriu para o Museu Etnográfico de Berlim e que Bastian publicou no livro "Ame-rikas Nordwestküste (Neue Folge"), tem-se a impressão de estar em face dos horrores de uma pesadelo. É verdade que o caráter realista da arte primitiva também aí se observa. As numerosas máscaras que representam animais possuem tanta expressão como as melhores figuras em osso, e em algumas máscaras que representam figuras humanas, o antropólogo pode estudar os traços característicos dos esquimós como se fossem seres vivos40. Entretanto, na maioria dos casos, as máscaras de animais ou de homens são careta» horríveis. Umas são rostos grotescos, com os dentes horríveis em uma grande boca, coberta e manchada de sangue. Outras mostram profundas feridas na testa. Outras ainda têm um olhar feroz, espantoso, enquanto da órbita do outro olho sai uma pequena cabeça que faz caretas. Em geral, vêem-se formas humanas e animais combinados da maneira mais estranha. Uma dessas máscaras representa um papagaio do mar, outra, uma lontra. Ambas são muito realistas, mas uma expressão diabólica surge detrás delas41. Uma cabeça de demônio com seis mãos. Duma outra saem duas asas. Esses seres recordam as criaturas caóticas de Lucrécio. As vezes, uma máscara desse gênero simboliza uma história inteira. Assim, cita-se a máscara cha-mane Amanguak, utilizada para atrair peixes às margens, sobretudo salmões e focas. A máscara representa, pois, o que a chamane é capaz de fazer. É uma figura pintada de cinzento e branco, tendo duas mãos em ambos os lados, e em cima da figura duas varinhas de chamane, entre as quais há uma foca. Em baixo, de cada lado, um buraco quadrado, e debaixo destes uma bola oca, pintada de vermelho, com diversos furos, que representam as embocaduras dos rios para os quais os salmões, também representados simbolicamente, devem ser compelidos pela força do chamane42. É claro que tais objetos muito complicados não são obras primitivas. Mas, se os estudamos minuciosamente é porque demonstram o quanto pode desenvolver-se, em condições favoráveis, o talento artístico de uma tribo de caçadores. As máscaras de dança dos aleutas, máscaras que desapareceram quase inteiramente, em virtude dos esforços dos missionários, não constituíam também obras primitivas. Sabemos apenas que representavam, na maioria, animais marinhos e que desciam até os ombros de quem as usasse. Mas, pelo menos, em parte, conservaram-se as máscaras que se depositam nos túmulos dos mortos. Dall recolheu numerosos vestígios.

(38) Cf. Andrée, "Ethn. Parall." N. F. 155.

(39) A julgar pelas peças recolhidas as máscaras das regiões mais setentrionais da Alasca "carecem quase inteiramente desse caráter grotesco tão surpreendente nas peças procedentes da baía de Bristol e do delta do Kuskoquim e do Yukon". Dall, "Masks and Labrets", Powell, "Publ. of the Bur. Ethn.", Ill, 122.

(40) Cf. Bastian Grünwedel, "Amerikas Nordwestküste, Neue folge", pl. I, 7, pi. V. 19-20v

 

 

 

"Eram todas de um só tipo, embora com diferenças de pormenores. Mediam cerca de 14 polegadas de altura por 10 ou 12 de largura. Todas possuíam um nariz largo e grosso, apesar de não achatado, sobrancelhas retas, lábios delgados e grande boca com dentinhos de madeira. Eram pintadas de diversas cores e, na maioria, de vermelho e preto. Tufos de pêlos indicavam a barba, e cabelos metidos na borda superior da testa, a cabeleira. As narinas e a boca, perfuradas. As orelhas, largas e chatas, eram colocadas muito alto. As faces apresentavam em geral curvas gravadas ou pintadas. Essas máscaras indicam uma grande habilidade da parte de seus autores, sobretudo quando se atenta para o fato de terem sido feitas com instrumentos de pedra ou osso"43.

Fig. 30 — Esculturas em ossos dos aleutas (segundo Hildebrand).

(41) Cf. "Amerikas Nordwestküste", N. F. pl. I, fig. 3, pl. Ill, fig. 5. Essas combinações são características da arte pele-vermelha.

42) "Amerikas Nordwestküste", N. F. pl. I, fig. 2.

MICHELANGELO BUONARROTIEscultor, pintor, poeta e arquiteto italiano. Nasceu em 6 de março de 1475, em Caprese, Toscana e faleceu em 18 de fevereiro de 1564, em Roma. Aos 13 anos de idade, e contra a vontade de seu pai fez-se aprendiz do mestre Ghirlandaio nas decorações das paredes de Santa Maria Novella. Os trabalhos que lhe eram confiados superavam os originais, motivo pelo qual Ghirlandaio, desprestigiado, o envia para Bertoldo no Jardim dos Médicis. Aí Michelangelo encontrou nesse escultor o seu verdadeiro mestre. Lorenzo de Médicis, o Magnífico, vendo-lhe o talento artístico, concedeu-lhe uma pensão mensal e o convívio entre numerosos doutores, escritores e artistas que, vindos de todas as partes da terra, se reuniam em seu palácio. Sob essa influência pagã, Michelangelo produziu a sua primeira obra, A Batalha dos Centauros. Com a morte de seu protetor, transferiu-se para Bolonha e em seguida para Roma, onde é incumbido, em 1498, de modelar Cristo e a Mãe para a Igreja de São Pedro. De regresso, em 1501, a Florença, ultimou a colossal Estátua de Davi. Essa escultura proporcionou-lhe a honra de ser convidado pelo Papa Júlio II, para talhar em mármore um túmulo que perpetuasse a sua memória. Desfeito mais tarde esse acordo, em virtude de superstições incutidas no chefe da Igreja Católica, Michelangelo retorna a Florença. Solicitada mais uma vez a sua presença no Vaticano, elabora durante 4 anos a pintura dos apóstolos na abóbada da Capela Sixtina. Após o falecimento de Júlio II, os seus herdeiros confiam–lhe o prosseguimento do túmulo que iniciara quando este ainda era vivo. Destacam-se em sua obra: Juízo Final, continuação do painel Criação, Pietà, Moisés, Os Escravos Acorrentados. Como poeta escreveu Rimas, etc.

*A Crucificação de São Pedro — (6,25 X 6,61 m) — Capela Paulina — Roma — Itália

 

O talento artístico do escultor é, pois, muito difundido entre os povos caçadores, não sendo, porém, geral. Há pelo menos três povos primitivos que não conhecem nem a escultura nem o desenho. Nada nos leva a atribuir o conhecimento dessas artes aos fueguinos e botocudos. E no que se refere aos habitantes das ilhas Andamã, disse expressamente

Man "que nunca tentam a representação de um objeto e que não possuem provavelmente nenhum talento natural para o desenho"44.

Antes de tentar a explicação das obras de arte primitivas, recordemos mais uma vez os traços característicos que lhes são comuns. A escultura e o desenho primitivos buscam seu motivo e forma na natureza, escolhendo-os, com raras exceções, entre os acontecimentos naturais e sociais que se passam ao seu redor, e esforçando-se por serem tão realistas quanto lhes permitam os meios primitivos. Os materiais que usam são grosseiros, a perspectiva deixa muito a desejar, mesmo nas melhores obras. Entretanto, conseguem dar às figuras representadas um caráter de verdade que em geral não se encontra nas obras artísticas dos povos superiores. É precisamente na mescla de grosseria e realismo que verificamos o caráter da arte primitiva. Surpreende-nos, portanto, que se comparem sempre os desenhos dos primitivos com os das crianças, pois nas garatujas da maioria destas não há o traço de observação exata revelado pelos desenhos e esculturas dos povos caçadores. As obras de arte com que nossas crianças revestem as mesas e paredes são mais simbólicas que realistas. A única semelhança verdadeira que existe entre a arte infantil e a dos selvagens é a ausência de perspectiva. Amiúde, tomam-se como caricaturas os desenhos de ambos, e, na maioria dos casos, o equívoco é evidente. Se um menino ou um australiano, no seu desenho, consegue dar um bom relevo a um membro do corpo ou a uma parte do vestuário, é porque acha que esse membro ou esse vestuário possui algo departicularmente digno de nota, a menos que exagere as proporções dos referidos objetos por falta de habilidade. Com efeito, as crianças e os selvagens têm certa tendência para a sátira. É, pois, possível que se deparem verdadeiras caricaturas entre as produções da arte primitiva. Contudo, nada mais fácil que distingui-las dos demais desenhos, de caráter sério. Será aconselhável, portanto, não tomar um desenho por caricatura, senão no caso em que seja bem clara a intenção do artista. Nós mesmos seguimos esse princípio e não ousamos qualificar de caricatura uma só das obras que analisamos.

Hg, 31 — Escultura em ossos dos. esquimós, (segundo Boa?)

(43) Powell, "Pub. Bur. Ethnol.", Ill, 140, 141. Vejam-se pl. XXVIII e XXIX, onde também se observa a reprodução de uma máscara para dança, conforme o relato de Sauer sobre a viagem de Billing, que mostra a fisionomia aleuta que já não se encontra mais nas máscaras fúnebres, como diz com justeza Dall. Estas recordam antes um tipo pele-vermelha.

(44) "Joum. Anthr. Inst.", XII, 115.

 

Dissemos anteriormente que a etnologia podia lançar nova luz sobre as esculturas francesas da época da rena. Tudo o que até agora escrevemos não resolveu, mas, ao contrário, estendeu o problema. Vimos que essas esculturas pré-históricas não são absolutamente exceções, mas que os povos mais primitivos da atual época tem produzido e produzem ainda semelhantes obras. O que não impede que as produções artísticas dos australianos, bosquimanos e hiperbóreos nos pareçam tão enigmáticas quanto as dos artistas desconhecidos da época da rena. Provar que um fenômeno é freqüente no espaço e no tempo, não é explicá-lo, a menos que essa verificação nos permita descobrir as causas dos fenômenos. Trata-se de saber se podemos descobrir as condições que possibilitaram o alto desenvolvimento artístico que verificamos entre os povos de uma civilização primitiva. As obras artísticas dos homens primitivos têm sido amiúde descritas, não, porém, explicadas. É provável que os sábios não encontraram a explicação, em virtude de ser muito simples.

Quais são, abstraindo-se os materiais, as qualidades que permitem aos povos caçadores executar as obras de arte que acabamos de passar em revista? Há duas principais: primeiramente, a faculdade de ver, observar e reter exatamente a forma dos modelos; em seguida, um desenvolvimento suficiente dos aparelhos motores e sensíveis que entram em atividade durante o trabalho artístico. Podemos admitir que os primitivos possuíam essas qualidades? Deviam possuí-las, porque sem elas teriam perecido. Australianos, bosqui-manos, hiperbóreos há muito teriam sucumbido na luta pela vida, se seus olhos e suas mãos, seus melhores e mais indispensáveis auxiliares, não tivessem atingido um alto grau de habilidade. A natureza compeliu esses povos à caça, se quisessem viver. Mas, a presa seria muito medíocre, mesmo nas regiões mais abundantes em animais, se o caçador primitivo não fosse excelente observador e seguidor de pistas, e não adquirisse com isso um conhecimento exato dos costumes das diversas espécies de caça. "A vista dos australianos é excelente, diz Collins, e, na verdade, sua existência depende freqüentemente da acuidade de seus olhos"45. O caçador australiano segue as pegadas de um canguru durante dias e dias, no pasto e nos brejos; descobre as marcas que as garras da sariguéia deixam na casca dos eucaliptos, marcas que um europeu mal distinguiria. Mas, não só as descobre, como também sabe quase a primeira vista se não recentes ou velhas e se o animal subiu ou desceu da árvore. "A memória dos sentidos dos australianos é verdadeiramente assombrosa. Conta Sturt que os indígenas que o viram outrora durante uma ou duas horas, o reconheceram catorze anos depois. Outros viajantes narram casos semelhantes"46. Referindo-se aos bosqumianos, Fri-tsch diz "que pela acuidade de seus sentidos, eles sobrepujam os demais africanos do sul". "O que mais me admirou, diz ele, foi a habilidade com que procuram e descobrem as pistas.

(45) Collins, "North West and Western Australia", I, 315.

(46) Waitz-Gerland, II, 736.

Seguem-nas a passos rápidos, mesmo no capim mais abundante, embora pareçam prestar pouca atenção. Quando a pista se desvia ou algo lhes atrai, um gesto revela o cuidado com que se consagram à mínima coisa"47. Quase todos quantos viajaram pelas regiões polares gabam o dom de observação dos hiperbóreos. "Conhecem muito bem sua pátria monótona, diz Kane, com referência aos esquimós. Observam todas as mudanças do tempo, do vento e do gelo, prevendo a influência dessas transformações sobre o itinerário dos pássaros migradores, com a mesma exatidão com que observam os costumes dos animais sedentários". O caçador não necessita só da vista, mas também da mão. Não lhe basta descobrir e observar a caça, pois precisa também matá-la e para tanto há mister, antes de tudo, de armas. Não é de admirar, portanto, que os povos caçadores se distingam precisamente pelo desenvolvimento prático de suas armas. Muitas razões existem para que aprimorem sua habilidade nesse setor, porquanto são as armas que os ajudam na luta pela vida. Em verdade seus instrumentos de caça atestam grande habilidade técnica, que parece tanto mais importante quando se sabe que os instrumentos com que fabricam tudo são muito rudimentares. Ao observador superficial, as armas dos australianos parecem demasiado toscas. Examinadas mais perto, porém, verifica-se a habilidade com que são feitas. Os boomerangs, sobretudo, não são tão simples quanto parecem48. O bosquimano constrói com instrumentos assaz simples as flechas envenenadas, responsáveis pela sua sobrevivência em face de inimigos poderosos.

A maior habilidade encontra-se entre os povos que a natureza obriga a uma tensão contínua de todas as suas forças, isto é, entre os hiperbóreos. "Se se pensa na sua rudimentar civilização, na posição geográfica de seus territórios quase sempre cobertos de neve, nos materiais relativamente pobres de que dispõem, tem-se a impressão de que são iguais, senão superiores, a qualquer tribo das ilhas do Pacífico." Assim alude Cook às tribos do príncipe William Sund e todos quantos estudaram as armas e os instrumentos dos hiperbóreos são da mesma opinião. Ao ver aqueles arpões, flechas e arcos, cuidadosamente executados, não há estranhar que os homens capazes de fazerem semelhantes armas sejam também escultores49. O dom de observação e a habilidade são as qualidades principais para exercer uma arte. Essas também são as qualidades que a profissão do caçador exige. A arte primitiva consiste, pois, na manifestação estética de duas qualidades que a luta pela existência devia dar aos povos primitivos e nela desenvolver. Sabemos agora porque o talento artístico se acha geralmente difundido entre os povos primitivos. Onde todo indivíduo deve ser bom caçador e bom desenhista, cada um pode ser facilmente muito bom escultor ou desenhista. Compreendemos igualmente por que esse talento artístico é tão raro entre os agricultores e criadores primitivos quanto freqüente entre os caçadores. Fritsch insiste particularmente no contraste entre os esboços vivos dos bosquima-nos e as figuras rígidas e grotescas de animais que o banto modela e esculpe com apreciável dificuldade. Esse contraste revela-se em toda a parte, entre todos os povos de ambos os graus de civilização, embora de modo não tão evidente quanto na África do Sul. À medida que os agricultores e criadores superam os caçadores, do ponto de vista da civilização em geral, mostram-se inferiores a estes em relação à arte. O que — diga-se de passagem — é uma prova de que as relações entre a civilização e a arte nem sempre são tão simples quanto julgam certos filósofos. A nosso ver, esse fenômeno, anormal na aparência, é muito claro. Os agricultores e os criadores não precisam possuir grande dom de observação nem de habilidade para prover a sua subsistência. Essas virtudes, pois, dissipam-se entre eles, juntamente com o talento artístico.

(47) Fritsch, "Die Eingeborenen Südafrikas", 424.

(48) Cf. as päginas sobre os boomerangs australianos em Brough Smith, I, 314, e seguintes.

 

Portanto, a etnologia resolveu o problema dos achados artísticos da época da rena. Essas esculturas, tão discutidas, são realmente obra de um povo primitivo. A prova de sua antiguidade reside precisamente no seu realismo.

Dissemos que as esculturas e os desenhos dos primitivos são obras de arte. Mas, possuem o direito de ostentar esse nome? Eis uma questão que se faz mister precisar. Nada mais certo do que deverem as referidas obras sua origem a uma necessidade estética. A filosofia da arte estaria disposta a acreditar antes em outra origem. Um de seus mais antigos e consagrados axiomas afirma que a arte não passou, a princípio, de um auxiliar da religião e só se libertou pouco a pouco. Os fatos que estudamos não comprovam, porém, a verdade desse venerável dogma. É certo que Grey afirma que as pinturas encontradas no Gle-nelg poderiam ter uma significação religiosa. Como outros sábios, todavia, não conseguiu mesmo descobrir essa significação.

(49) Vejam-se as armas dos esquimós, reproduzidos em "The Central Eskímo", de Boas.

 

A propósito dos demais desenhos e esculturas nas rochas do continente australiano, não se perguntou qual o sentido que poderiam encerrar. É naturalmente possível que alguns, pelo menos, sejam uma espécie de símbolo religioso. A idéia de reproduzir pela escultura ou pelo desenho os animais protetores e os bichos do brasão não deve ser de todo estranha aos australianos. Poder-se-ia mesmo aduzir a propósito numerosas analogias na arte egípcia e cristã. Mas, enquanto não se demonstrar que assim é efetivamente, não há absolutamente o direito de ver nas figuras animais ou humanas senão o que parecem ser. No que se refere aos desenhos em cortiça, sabemos’ de modo convincente que não. possuem nenhuma significação. religiosa50. Os desenhos dos rochedos da África do Sul não encerram nada de misterioso. Um dos homens que melhor conhecem os bosquimanos, Teófilo Hahn, diz expressamente que eles só exercem "sua arte pelo prazer que lhes propicia a atividade artística"51. As coisas tornam-se menos claras quando nos voltamos para a arte dos hiperbóreos. Todos quantos viram seus desenhos reconheceram conosco que não possuem nenhum caráter religioso. As esculturas, ao contrário pelo menos em parte, têm uma significação religiosa. Cranz diz "que os groenlandeses gostam de pendurar em seu kayak um pequeno modelo deste, contendo um pequeno boneco, para impedir que o barco afunde"52. A propósito das esculturas dos tchuk-chis, diz Hildebrand "que algumas dentre elas têm servido de amuletos e provam, pois, as relações místicas que se acreditavam existir entre a sorte dos homens e a dos animais"53. Jacobsen menciona modelos de arcos, kayaks, renas e baleias que os esquimós da costa sudoeste do Alasca colocam nos túmulos, "para significar que o morto, cuja memória assim se celebrava, tinha sucumbido na caça do morso, da foca ou da rena". Na mesma região, também se vêem monumentos funerários, "que consistem em figuras grosseiramente executadas e às vezes vestidas." Jacobsen diz ainda que numerosas moças "levam preso ao capuz de sua roupa de pele um ídolo de madeira"54. Mas, todos esses informes referem-se a uma parte apenas das esculturas. Além disso, conhecemos relatos que esclarecem nitidamente não possuírem as figuras em geral, significação religiosa. E se a filosofia da arte se lembrasse de invocar em favor de sua tese as máscaras dos chamanes dos esquimós do sudoeste, esqueceria que elas não são primitivas.

(50) Os desenhos australianos que parecem possuir uma significação religiosa, as figuras em varinhas mágicas por exemplo, têm caráter inteiramente diverso. São combinações de linhas incompreensíveis que às vezes recordam os ornamentos dos escudos e boomerangs, mas que diferem em tudo das reproduções das rochas e cortiças. Cf. por exemplo, Ratzel, II, 91 (ilustrações).

(51) "Zeitsch. f. Ethnol.", 1879. "Verh. der Anthr. Ges." (307).

(52) Cranz, "Historie von Grõland", 1765, 276.

(53) Hildebrand, "Beitrõge", 323.

 

Portanto, podemos dizer que, em regra geral, a arte dos povos mais primitivos não depende da religião. Mas, se é impossível provar que as obras artísticas dos primitivos não encerram um sentido religioso, isso não equivale a dizer que tenham caráter estético.

Não poderiam ser os referidos desenhos simples escrita pictográfica? Amiúde, tentou–se interpretá-los nesse sentido. Toda reprodução gráfica, em certo sentido, é uma escrita, porque toda imagem exprime um fato ou acontecimento. Assim, o desenho australiano, que representa um corrobori, o quadro sul-africano, que representa uma batalha entre bosquimanos e cafres, são certamente escritas, mas os afrescos de Rafael o sao igualmente. Uma imagem gráfica só se torna escrita propriamente dita quando não constitui o fim, mas unicamente o meio de sugerir uma idéia. Um desenho, um quadro devem impressionar o observador. A escrita, ao contrário, deve exprimir algo. A partir do momento em que as figuras não servem senão como meio de expressar uma idéia, não é mais indispensável que sejam executadas de maneira realista. Basta que sejam apenas reconhecíveis. Com efeito, distingue-se à primeira vista uma comunicação pictográfica de um quadro ou desenho pela maneira esquemática e convencional por que são tratadas as figuras. Em vão procuraremos o traço característico da escrita pictográfica nos desenhos de australianos e bosquimanos. Ao contrário, tudo prova que os artistas não pretenderam outra coisa senão uma reprodução o mais fiel e verdadeira possível dos modelos. Além disso, os australianos empregam outro método em suas comunicações pictográficas. Os sinais dos bastões de mensageiro nada possuem em comum com os desenhos: são linhas e pontos convencionais55. Mas, se se levam em consideração os desenhos que os hiperbóreos gravam em pedaços de madeiras e de osso, ver-se-á imediatamente serem alguns executados de maneira toda convencional: realmente, são escritas. Em seu trabalho instrutivo sobre os "Pictografhs of the North American Indians". Mallery reproduz e interpreta uma série de comunicações pictográficas56. Em muitas ocasiões são elas utilizadas. A que reproduzimos, segundo o referido autor, foi gravada num pequeno pedaço de madeira e fixada perto da porta da casa.

(54) Jacobsen, "Reise an der Nord West Küste Amerikas", 334.

(55) Howitt, "On Australian Messengers and Message Sticks. Journ. Anthr. Inst.", XVIII.

 

Constituía uma advertência de que o proprietário da choça partira para uma expedição de caça57. É desse modo que os caçadores, com fome ou em situação perigosa, invocam a assistência de seus companheiros. Todas as produções artísticas dessa espécie são, indubitavelmente, escritas pictográficas, mas todas se distinguem claramente dos quadros e desenhos propriamente ditos, a que nos referimos anteriormente. Ademais, a escrita pictográfica não parece ser propriedade comum a todas as tribos hiperbóreas. Todos os exemplos citados por Mallery vêm do Alasca, por conseguinte, de uma região de tal modo influenciada pelos ameríndios que se afasta em parte de nossas pesquisas. Não obstante, não temos a menor razão para considerar os desenhos dos hiperbóreos em geral — e fazemos completa abstração de suas esculturas — como escritas pictográficas.

Pelo exposto, podemos estar certos de que a arte dos primitivos, à parte algumas exceções isoladas, não possui nenhum objetivo exterior ou religioso. Portanto, somos levados a dar fé aos numerosos testemunhos em favor da hipótese que diz que os primitivos cultivam a arte pelo prazer que ela lhes proporciona. Embora nas condições menos favoráveis, o caçador encontra sempre muito lazer para dedicar–se à atividade artística, inútil na aparência. O hiperbóreo, em seu deserto de gelo, e o australiano e bosquimano, em suas regiões subtropicais. Não nos compete explicar a existência ou a origem da predileção que os caçadores têm pela arte. Concluiremos nossa tarefa, demonstrando que o prazer propiciado pela criação artística, juntamente com o dom da observação e a habilidade dos povos caçadores, basta para explicar tais obras artísticas.

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Fig. 32 — Escritura pictográfica do Alasca, (segundo Mallery).

(56) Em "Pub. Bur. of Ethn.", IV.

(57) O original foi desenhado para M. Hoffmann, de S. Francisco, por um indígena do Alasca, chamado Naumoff. Eis o que significam ag figuras: 1) O homem que faz a comunicação indica-se a si próprio com a mão direita e mostra com a esquerda a direção que os caçadores tomaram; 2) Um remo levantado, para dizer que partiram numa canoa; 3) A mão direita na cabeça significa "dormir", e o dedo erguido da mão esquerda, uma "noite"; 4) Um círculo com dois pontos no meio é igual a uma ilha com duas choças; 5) Repetição do número 1; 6) Um círculo, uma segunda ilha; 7) Repetição do número 3, mas com dois dedos, é igual a "duas noite; 8) O homem com um arpão faz com a mão esquerda um sinal que significa um morso; 9) um morso; 10) Um caçador com o arco; 11) Um barco com dois remadores; 12) As casa do homem. A tradução é a seguinte: "Sigo num barco, na direção indicada, para essa ilha, onde passo uma noite; alcanço outra ilha, onde passo duas noites, mato um morso e regresso em seguida". Mallery, 147, 148.

 

É evidente que essas criações artísticas encerram, pelo prazer que causam aos artesãos primitivos, um valor, cuja importância não se deveria ignorar. Resta saber qual a sua influência na vida social. Nos estágios superiores da civilização, a arte estatuária tem amiúde desempenhado um papel estético e prático mais poderoso que as demais. Foi ela que criou os palladiums das cidades gregas e italianas. Rainha das artes, ela incorporava, tanto na antiguidade quanto na Renascença, o ideal religioso e social, em torno do qual os cidadãos se reuniam, sentindo que faziam parte de um mesmo povo e de uma mesma comunidade. Pode dizer-se que a história das cidades livres da Grécia e da Itália é a história da sua própria arte. Além disso, o estudo da estatuária mostra-nos que não mais é permitido partir de uma civilização elevada para tirar conclusões sobre uma civilização anterior, nem vice–versa.

Nada nos autoriza a acreditar que a arte possua para as tribos primitivas a importância que tem para as sociedades civilizadas, a que nos referimos. Sua escassa influência na civilização primitiva reside no fato de que a civilização dos povos caçadores, que ignoram a arte, não se distingue essencialmente em nada da civilização das tribos que a conhecem. Uma ou outra obra de arte que estudamos, o quadro de guerra da África do Sul, por exemplo, que recorda às gerações seguintes os altos feitos da tribo, pode contribuir para consolidar os laços sociais. Em geral, porém, o horizonte da do, seus materiais são tão po-arte primitiva é muito limita-bres e grosseiros para que possa haver uma profunda influência social. Por mais notáveis que sejam certas obras de arte primitiva, o caráter da civilização que as produziu seria o mesmo se não existisse arte.

Fonte: Ed. Formar ltda.

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