A INVEJA – Capítulo V de O Homem Medíocre de Ingenieros

O Homem Medíocre (1913)

José Ingenieros (1877-1925)

Capítulo V – A INVEJA

I. a paixão nos medíocres. —II. psicologia dos invejosos. — III. os roedores da glória. — IV. uma cena dantesca: o seu castigo.

I — A paixão nos mediocres

A inveja é uma adoração que as sombras sentem pelos homens, que a mediocridade sente pelo mérito. É o rubor da face sonoramente esbofeteada pela gloria alheia. É a grilheta que os fracassados arrastam. É o áloc que os impotentes mastigam. É um humor veneno-no que se expele das feridas abertas pelo desengano da própria insignificância.

Por suas forças caudinas passam, cedo ou tarde, os que vivem como escravos da vaidade; desfilam, lívidos de angústia, trovos envergonhados da sua própria tristeza, sem suspeitarem que o seu ladrar envolve uma con sagração inequívoca do mérito alheio. A inextinguível hostilidade dos néscios sempre foi o pedestal de um mo numento.

É a mais ignóbil das torpes cicatrizes que afetam os carácteres vulgares. Aquele que inveja, rebaixa-se, sem o saber; confessa-se subalterno; esta paixão é o estig ma psicológico de uma humilhante inferioridade, senti da reconhecida.

Não basta ser inferior para invejar, pois todo ho mem o é de alguém, num sentido ou noutro; é necessá rio sofrer em conseqüência do bem alheio, da felicidade alheia, de qualquer enaltecimento alheio. Nesse sofrimento está o núcleo moral da inveja; morde o coração, como um ácido; carcome-o, como polilha; corrói, como a ferrugem, ao metal.

Das más paixões, nenhuma lhe leva vantagem. Plutarco dizia — e La Rochefoucauld o repete — que existem almas corrompidas até o ponto de se vangloriarem de vícios infames; mas nenhuma ainde teve a coragem de se confessar invejosa. Desconhecer a própria inveja, implicaria, ao mesmo tempo, declarar-se inferior ao invejado: trata-se de uma paixão tão abominável, tão universalmente detestada, que envergonha os mais impudicos, e se faz impossível para ocultá-la.

É surpreendente o fato de os psicólogos a terem esquecido em seus estudos sobre as paixões, limitando-se a mencioná-la como um caso particular do ciúme. Foi tão grande a sua difusão e a sua virulência, em todos os tempos, que já a mitologia grego-latina lhe atribuía origem sobrehumana, fazendo-a nascer das trevas noturnas.

O mito lhe empreta cara de velha horrivelmente fraca e exangue, com a cabeça cobreta de víboras, ao invés de cabelos. Seu olhar é torvo; seus olhos, fundos; os dentes, negros; a língua, untada com tóxicos fatais; com uma das mãos, agarra três serpentes, e, com a outra, uma hidra, ou uma teia; incuba, em seu seio, um monstruoso réptil que a devora continuamente e lhe instila o seu veneno; está agitada; não ri; nunca o sono fecha as pálpebras sobre os seus olhos irritados. Todo sucesso feliz a aflige, ou esporeia a sua angústia; destinada a sofrer, é o verdugo implacável de si mesma.

É a paixão traidora e propícia à hipocrisia. Está para o ódio, como a gazúa para a espada; empregam-na os que não podem competir com os invejados. Nos ímpetos de ódio, pode palpitar o gesto da garra que, num desesperado estremecimento, destroça e aniquila; no rep-to sobreptício da inveja, só se percebe o rastejar tímido daquele que procura morder o calcanhar.

Teofrasto julgou que a inveja se confunde com o ódio, ou nasce dele — opinião já enunciada por Aris tóteles, seu mestre. Plutarco ventilou a questão, preo ocupando-se com o estabelecimento de diferenças entre us duas paixões (Obras morais, II). Diz que, à primeira vista, se confundem; parecem brotar da maldade; quando se associam tornam-se mais fortes, como duas en fermidades que se complicam. Ambas sofrem em consequência do bem, e gostam do mal alheio; mas esta se melhança não basta para as confundir, se prestarmos atenção às suas diferenças. Só se odeia o que se julga mau u nocivo; ao contrário, toda prosperidade excita a inveja, como qualquer resplendor irrita os olhos en-fermos.

Podem-se odiar as coisas e os animais; só se pode invejar aos homens.

O ódio pode ser justo, motivado; a inveja é sempre injusta, pois a prosperidade não causa dano a ninguém.

Estas duas paixões, como plantas da mesma espécie, se nutrem, e se fortificam por causa equivalentes: ode-iam-se mais os mais perversos, e se invejam mais os que mais merecem. Por isso, Temístocles dizia, em sua juventude, que ainda não tinha realizado nenhum ato brilhan te, porque ainda ninguém o invejava.

Assim como as cantáridas prosperam nos trigais mais louros e nos rosais mais floridos, a inveja atinge os homens famosos por seu caráter e por sua virtude. O ódio não se desarma pela boa ou pela má sorte; a inveja, sim.

Um sol que ilumina perpendicularmente, do mais alto ponto do céu, reduz a nada, ou a muito pouco, a sombra dos objetos que estão em baixo: assim, observa Plutarco, o brilho da glória apouca a sombra da inveja, e a faz desaparecer.

O ódio que injuria e ofende, é temível; a inveja que cala e que conspira, ó repugnante. Certo livro admirável diz que ela é como as cáries dos ossos; esse livro é a Bíblia, com certeza, ou deveria sê-lo.

As palavras mais cruéis, que um insensato lança ao rosto, não ofendem a centésima parte do total da ofensa produzida pelas palavras que o invejoso vai semeando constantemente, às escondidas; este ignora as reações do ódio, e expressa o seu inquinamento balbuciando, incapaz que é de se encrespar em ímpetos viris; dir-se-ia que a sua boca está amargada por fel que êle não consegue tirar fora, nem engolir. Assim como o azeite apaga a cal, e aviva o fogo, o bem recebido reprime o ódio nos espíritos nobres, e exaspera a inveja nos indignos. O invejoso é ingrato, como o sol é luminoso, como a nuvem é opaca, e como a neve é fria: naturalmente.

O ódio é retilíneo, e não teme a verdade; a inveja é tortuosa, e elabora a mentira. Sofre-se mais invejando, do que odiando; como estes tormentos enfermiços, que se tornam horrorosos à noite, ampliados pelo pavor das trevas.

O ódio pode ferver nos grandes corações; pode ser justo e santo; é assim muitas vezes, quando quer destronar a tirania, a infâmia, a indignidade.

A inveja pertence aos corações pequenos. A conciencia do próprio mérito suprime qualquer pequena vilania: o homem que se sente superior, não pode invejar, e o louco feliz, que vive com o seu derírio de grandeza, também não sabe invejar. Seu ódio está de pé e ataca pela frente.

Cesar aniquilou Pompeu, sem rastejar; Donatelo venceu, com seu "Cristo", o velho Brunelleschi, sem se rebaixar; Nietzsche fulminou Wagner sem invejá-lo. Assim como a genialidade pressente a glória, e dá, aos seus predestinados, certos ademanes apocalípticos, a certeza do porvir obscuro transforma os medíocres em míopes e répteis. Por isso, os homens sem mérito continuam sendo invejosos, mesmo apesar dos êxitos obtidos pela sua sombra mundana, como se uma voz interior lhes gritasse que os usurpam, sem merecê-los. Essa conciencia da sua mediocridade é um tormento: compreendem que só podem permanecer nas alturas, impedindo que outros cheguem até eles, e os descubram. A inveja é uma defesa das sombras contra os homens.

Com as distinções enunciadas, os clássicos aceitam o parentesco entre a inveja e o ódio, sem confundir ambas as paixões. Convém subtilizar o problema, distinguindo outras que se parecem: a emulação e os zelos.

A inveja, sem dúvida, tem suas raízes, como eles, numa tendência afetiva, mas possue caracteres próprios, que permitem diferenciá-la. Inveja-se o que os outros já tem e o que se desejaria ter, sentindo que o próprio é um desejo sem esperança; têm-se zelos do que já se possue e se teme perder; sente-se a emulação em reve-ção a alguma coisa que outros, também anelam com possibilidade de atingi-la.

Um exemplo, tomado das mais notórias fontes, ilus-tra a questão. Invejamos a mulher que o próximo pos-sue, e nós desejamos, quando sentimos a impossibilida-de de a disputar. Zelamos a mulher que nos pertence, quando julgamos incerta a sua posse e tememos que outros possam compartilhar dela, ou roubá-la. Disputamos os seus favores, em nobre emulação, quando temos a possibilidade de os conseguir, em igualdade de condições, com outro que a eles aspira.

A inveja nasce, pois, do sentimento de inferioridade em relação ao seu objeto. Os zelos derivam do sentimento da posse comprometida. A emulação surge do sentimento de potência que acompanha toda nobre afirmação da personalidade.

Por deformação da tendência egoísta, alguns homens estão naturalmente inclinados a invejar os que possuem tal ou tal superioridade por eles desejada em vão; a inveja é maior, quando mais impossível se considera a aquisição do bem cobiçado. É o reverso da emulação; esta é uma força propulsora e fecunda, ao passo que aquela é uma peia que trava e esteriliza os esforços do invejoso. Bartrina bem compreendeu isto, na sua admirável quintilha:

La envidia y la emulación parienles dicen que son: aunque en todo diferentes, al fin tambiên son par/entes el diamante y el carbón.

A emulação é sempre nobre: o próprio ódio pode ser nobre, algumas vezes. A inveja é uma cobardia própria dos débeis, um ódio impotente, uma incapacidade manifesta de competir ou de odiar.

O talento, a beleza, a energia, desejariam ver-se refletidos em todas as coisas, e intensificados em inúmeras projeções; a estultícia, a fealdade e a impotência sofrem mais pelo bem alheio, do que pela própria desdita. Por isso, toda superioridade é admirativa, e toda subja-cência é invejosa. Admirar é sentir-se crescer na emulação com os maiores.

Um ideal preserva da inveja. Aquele que ouve ecos de vozes proféticas, ao ler os escritos dos grandes pensadores; aquele que sente gravar-se, em seu coração, com caracteres profundos como cicatrizes, o seu clamor visionário e divino; aquele que se extasia, contemplando as supremas criações plásticas; aquele que sente íntimos calafrios, em face das obras primas acessíveis ao seu sentido, e se entrega à vida que nelas palpita, e se comove até que seus olhos se encham de lágrimas, e o coração irrequieto seja arrebatado por febres de emoção; aquele — tem um nobre espírito, e pode alimentar o desejo de criar coisas tão grandes, como as que sabe admirar.

Aquele que não se emudece lendo Dante, contemplando Leonardo, ouvindo Beethoven, pode jurar que a natureza não acendeu, em seu cérebro, a tocha suprema.

A emulação pressupõe um afã de equivalência, implica uma possibilidade de nivelamento; saúda os fortes que vão a caminho da glória, marchando também. Só o impotente, convicto e confesso, empeçonha o seu espírito, hostilizando a marcha daqueles que não podem seguir.

Toda a psicologia da inveja está sintetizada numa fábula, digna de ser incluída nos livros de leitura infan-til. Um sapo ventrudo coaxava em seu pântano, quando viu resplandecer, no ponto mais alto de uma rocha, um vagalume. Pensou que nenhum sêr tinha o direito de revelar qualidade que êle próprio jamais poderia possair. Mortificado pela impotência, saltou até o local onde estava o vagalume, e o cobriu com o seu ventre gelado, O inocente vagalume ousou perguntar-lhe: "Por que me cobres?" e o sapo, congestionado pela inveja, só conseguiu interrogar por sua vez: "Por que brilhas?"

II — Psicologia dos invejosos

Sendo a inveja um culto involuntário do mérito, os invejosos são, apesar-de tudo, os seus sacerdotes naturais.

O próprio Homero encarnou, em Tersites, o invejoso dos tempos heróicos; como se suas cicatrizes físicas fossem exíguas para expô-lo à chacota eterna; em um simples verso, dá-nos a linha sombria da sua moral, di-zendo-o inimigo de Aquilles e de Ulisses; pode ser medido pela excelência das pessoas que inveja.

Shakespeare traçou uma silhueta definitiva em seu Yago feroz, amontoado de infâmias e cobardias, capaz de todas as traições e de todas as deslealdades.

O invejoso pertence a uma espécie moral raquítica, mesquinha, digna de compaixão ou de desprezo. Sem coragem para ser assassino, resigna-se a ser vil. Rebaixa os outros, não tendo esperança na própria elevação.

A família oferece variedades infinitas, pela combinação de outros estigmas com o fundamental. O invejoso passivo é solene e sentencioso; o ativo é um escorpião atrabiliário. Mas, lúgubre ou bilioso, nunca sabe rir o riso inteligente e sadio. Seu esgar é falso: ri a contra-pêlo.

Quem não n’os encontra em seu mundo intelectual? O invejoso passivo é de cepa servil. Se procura praticar o bem engana-se até o assassínio: dir-se-ia que é um cirurgião míope, predestinado a ferir os órgãos vitais e respeitar a víscera cancerosa. Não retrocede diante de baixeza alguma, quando um astro se levanta no seu horizonte: persegue o mérito até dentro da sua tumba. É sério, por incapacidade de rir; a alegria dos satisfeitos o atormenta. Proclama a importância da solenidade e a prática; sabe que seus congêneres aprovam tacitamente essa hipocrisia que serve de escudo à irremediável inferioridade: não vacila em sacrificar a vida de seus próprios filhos, impelindo-os, se fôr necessário, até a beira do túmulo.

O invejoso ativo possue uma eloqüência intrépida, dissimulando, com niagáras de palavras, a sua esterili-

dade de idéias. Pretende sondar os abismos do espírito alheio, sem nunca ter podido desenredar o próprio. Parece possuir mil línguas, como o clássico monstro rebe-lesiano. Por todas elas distila a sua insídia de víbora, em forma de elogio reticente, pois a viscosidade urticante do seu falso louvor, é o máximo da sua valentia moral. Multiplica-se até o infinito; tem mil pernas, e se insinua, seja por onde fôr; semeia a intriga entre os seus próprios cúmplices, e, em chegando a oportunidade, atraiçoa-os. Sabendo-se de antemão repudiado pela glória, refugia-se nessas academias onde os medíocres se ensopam de vaidade; se alguma inexplicável paternidade complica a quietude de sua madureza estéril, podeis jurar que a sua obra é fruto de esforço alheio. E é covarde, para ser completo; arrasta-se diante dos que perturbam as suas noites com a auréola do engenho luminoso, beija a mão do que o concebe e o despreza, humilha-se diante déle. Sabe que é inferior. A sua vaidade aspira somente a desquitar-se com as frágeis compensações dos ardis praticados terra-a-terra.

A-pesar-dos seus temperamentos heterogêneos, o destino sói agrupor os invejosos em camarilhas ou em círculos, servindo-lhes de argamassa o comum sofrimento em face da felicidade alheia. Ali desafoga a sua pena íntima, difamando os invejados, e vertendo todo o seu fél, como uma homenagem à superioridade do talento que os humilha. São capazes de invejar os grandes mortos, como se os detestassem pessoalmente.

Há quem inveje Sócrates e quem inveje Napoleão, julgando igualar-se a eles, ao rebaixá-lo: por isso, serão capazes de endeusar um Brunnetière ou um Boulan-ger. Esses prazeres malignos, entretanto, em pouco diminuem a sua desventura, que está em sofrer de toda felicidade, e em martirizar-se com a conseqüência de toda glória. Rubens pressentiu isto, ao pintar a inveja, num quadro da Galeria Medicéa, sofrendo entre a pompa luminosa da inolvidável regência.

O invejoso julga estar caminhando para o calvário, quando vê os outros escalando os píncaros. Morre pelo tormento de invejar aquele que o ignora, ou o despreza — gusano que rasteja sobre o pedestal da estátua.

Parece que todo rumor de azas o estremece, como se fosse uma burla aos seus vôos galináceos. Maldiz a luz, sabendo que nas suas trevas mentais não amanhecerá um só dia de glória.

Se pudesse organizaria uma caçada às águias, ou decretaria a extinção dos astros!…

O que, para os outros, é causa de felicidade, pode 6er objeto de inveja. A inaptidão para satisfazer um desejo, ou fartar um apetite, determina essa paixão que faz sofrer em virtude do bem alheio. O critério para valorizar o invejado é puramente subjetivo; cada homem julga ser a medida dos outros, segundo o juízo que forma de si mesmo.

Sofre-se a inveja apropriada às inferioridades que se sentem, seja qual fòr o seu valor objetivo. O rico pode sentir emulação ou zelos pela riqueza alheia; mas invejará o talento. A mulher bela terá ciúmes de outra formosura; mas invejará as ricas. É possível sentir-se alguém superior em cem coisas e inferior em uma só; é este o ponto fraco por onde a inveja tenta o seu assalto.

O indivíduo em evidência encontra a sua coórte de invejosos na esfera dos seus colegas mais imediatos, entre aqueles que desejariam estar em evidência da mesma forma.

Este é um acidente inevitável de toda elevação, embora seja mais comum em algumas profissões; os homens de letras não ficam atrás, mas os atores cômicos e as rameiras teriam o privilégio, se não existissem os médicos. A invidia medicorum é memorável deste a antiguidade. Hipócrates conheceu-a. A arte descreveu-a com freqüência, para deleite dos enfermos que sobreviveram aos efeitos das drogas.

O motivo da inveja se confunde com o da admiração sendo ambas dois aspectos de um mesmo fenômeno. Apenas, a admiração nasce no forte, e a inveja, no subalterno .

Invejar é uma forma berrante de prestar homenagem à superioridade.

O gemido que a insuficiência arranca à vaidade, é uma forma especial de louvor.

Todo píncaro é invejado. Na mulher, a beleza. No homem, o talento e a fortuna. Em ambos, a fama e a glória, qualquer que seja a sua forma.

A inveja feminina sói ser filigranada e perversa; a mulher arranha com unha afiada e lustrosa, morde com dentinhos perolizados, dilacera com dedos pálidos e finos. Toda maledicência lhe parece escassa, para traduzir o preces, em forma de calúnias, torvas, como o remordi-mento que as intoxica, mas não as detêm, seu despeito; Apeles, deve ter pensado nela, quando representou a inveja guiando, com mão felina, a Calúnia.

Aquela que nasceu bela — e a Beleza para ser com-críticas: os olhares oblíquos das sofredoras fuzilarão a sua beleza à traição; as almas tristes lhe elevarão suas pleta, requer, entre outros dons, a graça, a paixão e a inteligência — tem assegurado o culto da inveja. Suas mais nobres superioridades serão adoradas pelas invejo-sas; nelas cravarão os seus incisivos, como sobre um fruto, sem advertir que a paixão os converte em vestais. Mil línguas viperinas lhe queimarão o incenso de suas

Quem já leu a sétima metamorfose, no livro segundo de Ovídio, não esquecerá jamais que, a instância

de Minerva, Aglaura foi transfigurada em rochedo, castigando, assim, a sua inveja em relação a Herséa, a amada de Mercúrio. Ali está escrita a mais perfeita alegoria da inveja, devorando víboras, para alimentar seus furores, como não a perfilou nenhum outro poeta da era pagã.

O homem vulgar inveja as fortunas e as posições burocráticas. Julga que ser endinheirado funcionário é o supremo ideal dos outros, certo de que é o seu. O dinheiro permite ao medíocre satisfazer as suas vaidades mais imediatas; o destino burocrático assinala-lhe um sítio no quadro dos servidores do Estado e lhe prepara jubilacões ulteriores. Dai o fato de o proletário invejar o burguês, sem renunciar a substituí-lo; por isso mesmo, a escada do orçamento é uma hierarquia de invejas, perfeitamente graduadas pelas cifras das prebendas .

O talento — em todas as suas formas intelectuais e morais, como dignidade, como caráter, como energia — é o tesouro mais invejado entre os homens. Há, no domesticado, um sórdido afã de nivelar tudo, um obtuso horror à individualização excessiva; perdoa ao portador de qualquer sombra moral, perdoa a cobardia, o servilismo, a mentira, a hipocrisia, a esterilidade — mas não perdoa ao que sai das fileiras, dando um passo para a frente. Basta que o talento permita sobreelevar nas ciências, nas artes ou no amor, para que os medíocres se estremeçam de inveja. Assim se forma, em torno de cada astro, uma nebulosa, grande ou pequena — camarilha de maldizentes ou legião de difamadores: os invejosos necessitam reunir esforços contra o seu ídolo, da mesma forma que, para afear uma beleza venusina, aparecem, a milhares, pústulas da varíola.

A dita dos fecundos martiriza os eunucos, vertendo em seu coração gotas de fél, que o amargam por

toda a existencia; esta dor é a gloria involuntária dos outros, a sanção mais indestrutível do seu talento na ação ou no pensamento. As palavras e os esgares do invejoso se perdem no lamaçal onde êle rasteja, como silvos de répteis que saúdam o vôo sereno da águia que passa na altura. Sem ouvi-los.

III — Os roedores da glória

Todo aquele oue se sente capaz de criar um destino, com o seu talento e com o seu esforço, está inclinado a admirar o esforço e o talento nos demais; o desejo da própria glória não pode sentir-se coibido pelo legítimo enaltecimento alheio. Aquele que tem méritos, sabe o que eles custam, e os respeita: estima, nos outros, o que desejaria que os outros estimassem nele. O medíocre ignora essa admiração franca: muitas vezes le resigna a aceitar o triunfo que transborda das restrições da sua inveja. Mas, aceitar não é amar. Resignar-se não é admirar.

Os espíritos de azas breves são malévolos; os gran des engenhos são admirativos. Estes sabem que os dons naturais não se transformam em talento ou engenho, sem um esforço, que é a medida do seu mérito. Sabem que cada passo no sentido da glória, custa trabalhos e vigílias, meditações profundas, tentativas sem fim, con sagração tenaz — a esse poeta, a esse filósofo, a esse sábio; e compreendem que eles consumiram, porventura, o seu organismo, envelhecendo prematuramente: e a biografía dos grandes homens lhes ensina que muitos renunciaram ao repouso ou ao pão, sacrificando-se tanto um, como outro, afim de ganhar tempo para meditar, ou para comprar um livro iluminador de suas meditações. Essa consciência daquilo em que o mérito im-porta, o faz despeitar. O invejoso, que o ignora, vê o resultado a que os outros chegam, e êle, não, sem suspeitar quantos espinhos foram semeados no caminho da glória.

Todo escritor medíocre é candidato a critiscastro.

A incapacidade de criar impele-o a destruir. Sua falta de inspiração o induz a corroer o talento alheio, empanando-o com especiosidades que denunciam a sua irreparável inferioridade.

Os altos engenhos são equânimes na crítica dos seus iguais, como se reconhecessem, neles, uma consanguinidade em linha direita: no êmulo, não vêem, nunca, um rival. Os grandes críticos são ótimos autores que escrevem sobre temas propostos por outros, como os versificadores com pé forrado: a obra alheia é uma ocasião para exibir as próprias idéias.

O verdadeiro crítico enriquece as obras que estuda, e, em tudo o que toca, deixa um rastro de sua personalidade.

Os criticastros são, por instinto, inimigos da obra. Desejam diminui-la, pela simples razão de que eles não a escreveram. Nem saberiam escrevê-la, si o criticado lhes contentasse: "Faze-a melhor".

Têm as mãos travadas por fitas métricas: seu afã de medir os outros, corresponde ao sonho de rebaixá-los ató a sua própria medida. São, por definição, prestamistas, parasitas; vivem do alheio, pois se limitam a baralhar, com hábil mão, o mesmo que aprenderam no livro que procuram desacreditar.

Quando um grande escritor é erudito, reprocham-no como uma falta de originalidade; si não o é, apresssam-se a culpá-lo de ignorância. Se emprega um raciocínio que outros usaram, denominam-no plagiário, embora assinale as fontes da sua sabedoria; se omite a assimilação, por ser vulgar, acusam-no de improbidade. Em tudo encontram motivo para maldizer e invejar, revelando a sua angústia interna. O que os faz sofrer, em suma é o fato de serem os outros admirados e eles, não.

O criticastro medíocre é incapaz de alinhavar três idéias fora do fio que a rotina lhe sugere. Sua bojuda ignorância obriga-o a confundir o mármore com o micaxisto, e a voz com o falsete, inclinando-o a supor que todo escritor original é um heresiarca. Os pacóvios dariam o que não têm. para saber escrever um pouquinho, como para serem incorporados à crítica profissional. É o sonho dos que não podem criar. Permite uma maledicência medrosa e que não compromete, feita de medi-cidade prudente, restringindo as perversidades, para que resultem mais agudas, tirando, aqui, uma migalha, e dando ali, um arranhão, velando tudo o que pode ser objeto de admiração, rebaixando sempre com a oculta esperança de que possam aparecer a um mesmo nível os críticos e os criticados.

O escritor original sabe que atormenta os medíocres, aguilhoando-lhes essa paixão que os desespera em face do brilho alheio: o desespero dos fracassados é o louro aue melhor pode premiar o seu labor luminoso. O ridículo de um Zoilo chega sempre a andar passo a passo com a glória de um Homero.

Fermentam, em cada gênero de atividade intelectual, como pragas pediculares da originalidade: não perdoam àquele que incuba, em seu cérebro, essa larva sediciosa. Vivem para manchá-lo, ou destroná-lo, sonham com o leu extermínio, conspiram com uma intemperança de terrorista, e esgrimem sórdidas calúnias que fariam en-rubecer um paquiderme. Vêem um perigo em cada astro, a uma ameaça em cada gesto; tremem, pensando que tom homens capazes de subverter rotinas e prejuízos, de acender novos planetas do céu, de arrancar sua fôr ça aos raios e às cataratas, de infiltrar novos ideais nas

raças envelhecidas, de suprimir as distâncias, de violar a força de gravidade, de estremecer os governos…

Quando se eleva um astro, eles aparecem por todos os pontos cardiais, para entoar o coro involuntário da sua difamação. Aparecem às dúzias, aos milhares, como liliputianos, em torno de um gigante. Os rabequistas de arrabalde cobrirão de opróbrio a glória dos supremos sinfonistas. Gazetilheiros anodinos perpetrarão biografias relativas a um pensador longínquo, que os ignora. Muitos, que em vão tentaram acertar uma mancha de côr, deixarão cair o seu jorro de prosa, como se uma torneira de pús se abrisse sobre telas que viverão através dos séculos. Qualquer misturador de palavras arremeterá contra quem escrever pensamentos duradouros.

As mulheres feias mostrarão que a beleza é repulsiva, e as velhas sustentarão que a juventude é insensata; vingarão a sua infelicidade em amor, dizendo que a castidade é suprema entre todas as virtudes, quando já inutilmente se transformaram em rameiras, para oferecer a própria castidade aos transeuntes. E os outros, todos em coro, repetirão que o gênio, a santidade e o heroísmo são aberrações, loucuras, epilepsias, degeneração; negarão a excelência do engenho, a virtude e a dignidade; colocarão esses valores abaixo da sua própria penumbra, sem advertir que a mediocridade não chega ao ponto em que o gênio assoma. Se fizesse o medíocre eleger entre Shakespeare ou Sarcey, não vacilaria um minuto; murmuraria um trecho do primeiro, com a assinatura do segundo.

Os espíritos rotineiros são rebeldes à admiração: não reconhecem o fogo dos astros, porque nunca tiveram, em si, uma única chispa. Jamais se entregam de boa fé aos ideais ou às paixões que lhes assaltam o coração; preferem opôr-lhes mil raciocínios, para privar-se do prazer de admirá-los. Confundirão sempre o equívoco e o cristalino, rebaixando todo ideal até as baixas intenções que supuram em seus cérebros. Pulverizarão todo o belo, esquecendo que o trigo moído e feito farinha já não pode germinar em espigas áureas, à luz do sol.

"É um grande sinal de mediocridade — disse Leib nitz — elogiar sempre moderadamente".

Pascal dizia que os espíritos vulgares não encontram diferenças entre os homens: descobrem-se mais tipos originais, à medida que se possue maior engenho. O criticastro é miserável; admira um pouco todas as coisas, mas nada merece a sua admiração decidida.

Aquele não admira o melhor, não pode melhorar. Aquele que vê os defeitos e não as belezas; as culpas e não os méritos; as discordancias e não as harmonias: morre no baixo nível em que vegeta com a ilusão de ser um crítico.

Os que não sabem admirar, não têm futuro. Estão inabilitados para ascender a uma perfeição ideal. É uma cobardia aplacar a admiração; é preciso cultivá-la, como um fogo sagrado, evitando que a inveja a cubra com a sua patina ignominiosa.

A maledicência escrita é inofensiva. O tempo é um coveiro equânime; enterra numa fossa comum os criticastros e os maus autores. Enquanto os invejosos murmuram, o gênio, cresce. Com o andar do tempo, aqueles são oprimidos e este sente desejos de compadecer-se para impedir que continuem morrendo a fogo lento.

O verdadeiro castigo desses parasitas está no sorriso mudo dos pensadores. Aquele que critica um alto espírito, estende a mão, esperando uma esmola de celebridade; basta ignorá-lo e deixá-lo com a mão estendida, negando-lhe a notoriedade que lhe conferiria a réplica. O silêncio do autor mata o postulante; sua indiferença o asfixia. Algumas vezes supõe que o toma-

ram em consideração e que a sua presença foi advertida; sonha que citaram o seu nome, aludido, refutado, injuriado. Mas tudo é apenas um sonho; deve resignar-se a invejar na penumbra, da qual não consegue sair.

Aquele que tem consciência do seu mérito, não se presta a inflar a vaidade do primeiro indigente que lhe vem ao encontro, pretendendo distrai-lo, obrigando-o a perder o seu tempo; elege os seus adversários entre os seus iguais, entre os sus condignos. Os homens superiores podem imortalizar, com uma palavra, os seus lacaios ou os seus sicários. É preciso evitar essa palavra; de muito criticastros somente temos notícia, porque algum gênio os honrou com o seu pontapé.

IV — Uma cena dantesca: o seu castigo

O castigo dos invejosos estaria em cobri-los de favores, para fazê-los sentir que a sua inveja é recebida como uma homenagem, e não como uma punhalada. É mais generoso, mais humanitário. Os bens que o invejoso recebe, constituem sua mais desesperante humilhação; se não é possível agasalhá-lo, é necessário ignorá-lo. Nenhum enfermo é responsável pela sua doença, nem é possível impedir que êle emita acentos lamentosos; a inveja é uma enfermidade, e não há nada mais respeitável, do que o direito de se lamentar, quando se sofrem congestões de vaidade.

O invejoso é a única vítima do seu próprio veneno; a inveja o devora, como o cancro corrói a víscera; afoga-o, como a hidra, o azinho. Por isso, Poussin, numa tela admirável, pintou este monstro mordendo os próprios braços, e sacudindo a cabeleira de serpentes que o ameaçam sem cessar.

Dante considerou os invejosos indignos do inferno. Na sábia distribuição das penalidades e castigos, fechou-os no purgatório, o que está de acordo com a sua condição medíocre.

Jazem, acobardados, num círculo de pedra cinzenta, sentados junto a um paredão lívido, com os seus semblantes chorosos, cobertos de cilícios, formando um panorama de cemitério vivente. O sol nega-lhes a luz; têm os olhos costurados com arames, porque nunca puderam vêr o bem do próximo. Fala por eles, a nobre Sapia, desterrada pelos seus concidadãos; foi tal a sua inveja, que sentiu um regosijo louco, quando eles foram derrotados pelos florentinos. E falam outros, com vozes trágicas, enquanto que longínquos fragores de trovões recordam a palavra que Caim pronunciou, depois de matar Abel. Porque o primeiro assassino da lenda bíblica tinha de ser um invejoso.

Todos eles já levam o castigo na sua própria culpa. O espartano Antístenes, ao saber que o invejavam, respondeu com acerto:

"Pior para eles; terão que sofrer o duplo tormento dos seus males e dos meus bens".

Os únicos gananciosos são os invejados: é agradável sentir-se adorado de joelhos.

A maior satisfação do homem excelente está em provocar a inveja, estimulando-a com os próprios médios, acossando-a, cada dia, com virtudes maiores, para ter a felicidade de ouvir as suas preces. Não ser invejado é uma garantia inequívoca de mediocridade.


 Fonte: Livraria Paratodos, 1953

 

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