Crítica a Maquiavel

nicolaua maquiavel

Crítica
a Maquiavel

Ernani Fernandes *

Bolsista do PRP-Institucional/USP e articulista do Blog Escola Filosófica RFC http:// blog.escolafilosoficarfc.org/

Prefácio

     Para que se dê início a explanação quanto a
divergências do pensamento maquiaveliano, deve ser feita a ressalva de que,
para uma crítica com mais propriedade e livre de posições que podem aparentar
irreflexão, dado o foco crítico restrito a capítulos recomendados, seria
necessária a releitura da obra integral, além de uma contextualização com
informações de obras que já demonstram ser lugar-comum no pensamento acadêmico contemporâneo.

     A superficialidade do texto decorre, obviamente, do
caráter de resenha, dispensando maiores esclarecimentos.

Crítica
a Maquiavel

     Nos capítulos recomendados, o autor foca modos de
obtenção de poder, como a ascensão por apoio popular ou manipulação pelos
grandes, apresentando o contínuo conflito entre a busca de liberdade pelo povo
e a vontade de poder (em moldes nietzscheanos) da aristocracia ou
oligarquia dominante.

     Estabelecem-se vantagens de cada método, de modo que a
vantagem da ascensão com apoio popular decorre da estabilidade e poder
decorrente da possibilidade de uso do povo como massa de manobra, apresentando-se
como um líder carismático pela coragem ou conveniência temporal – mesmo que
efêmera – de seu controle para a obtenção de privilégios de classe ou amálgamas
familiares, com a ideologia como instrumento de domínio e legitimação racional
(em coerência com a moral vigente, por exemplo), mesmo que falha e parcial.

     Os grandes manipuladores de massa fazem uso, comumente,
da necessidade individual de um caminho ou guia (em que convém a frase de
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão: “Agrada aos homens quando lhes é afirmado
qual é o caminho a seguir, não só pelas vantagens primárias e particulares
dele, mas por quererem acreditar que existe um caminho”), ou seja, um
auto-engano para a supressão do provável niilismo ou desespero parcial advindo
de uma  postura apolínea, ou seja, orientada de modo “estritamente” racional.

     Destaca-se, nessa análise, Elias Canetti e sua obra
magna, Massa e Poder, a qual lhe garantiu o Nobel de Literatura em 1981,
que expõe, entre outros, o quase ilimitado poder social, político e mesmo
econômico daquele que figura como arquétipo unificador de uma malta ou massa,
em especial pela tendência generalizada entre indivíduos de todas as classes a
agir de forma irracional, imprudente e mesmo pueril, quando constituintes
físicos de um agrupamento coletivo denso, mas não necessariamente coeso (vide
histórico massacre de peregrinos palestinos, citado pelo mesmo autor). O autor
estabelece os diferentes tipos de formação de massa, os símbolos de massa de
nações (elementos definidores de coesão e coerência nas ações regidas pelo
Estado), meios de formação e outras particularidades, com a apresentação de
diversos exemplos, com destaque para o jivaros, ingleses e alemães.

     Sigmund Freud, apesar de divergir de Canetti por seu
foco no eu e não na autonomia conotativamente química apresentada pelo segundo,
em seu ensaio A Psicologia das Massas e a Análise do Ego também sustenta
a vulnerabilidade do indivíduo a hostilidades e avalanches sociais,
apresentando-se, desse modo, submisso a imposições exteriores, o que
contribuiria para a unificação de corpos massificados, dada a generalização
dessa condição. Desse modo, aquele que preenche o nicho de liderança de cada
grupo gozaria de significativo poder.

     Desse modo, conclui-se que, para a fortuna do príncipe,
a massa deve ser não só dominada moralmente (e mesmo emocionalmente), mas deve
ser posta em situação de constante dependência, de modo que o governante poderá
agir segundo o necessário interesse de outrem, sendo soberano e insubmisso à
improvável “boa vontade” de terceiros.

     Afigura-se, também, necessário o domínio e
desenvolvimento do aparato estatal, incluindo a concessão de benefícios
suficientes para a formação de lealdade (salários elevados a guerreiros e
magistrados, assistencialismo a classes baixas, o que encontra paralelo no
assistencialismo dos séculos XX e mesmo XXI, como o lulismo e o chavismo
bolivariano), seja essa pragmática ou emocional, considerando, obviamente, o
caráter pusilânime do que se submete à pura compaixão alheia.

     Ao comentar as atitudes do príncipe e a dicotomia dos
que se obrigam ou não à sua fortuna, pode ser notada uma possível ingenuidade
categórica por parte do escritor, visto que o submeter-se (ou aparentar
submissão) de forma efêmera e freqüentemente superficial à sorte do príncipe
pode figurar como dissimulação para posterior ataque, fato a que o autor, ironicamente,
não aplicou o seu arquétipo da raposa e sua dissimulação.

     Maquiavel discorre de forma clara sobre a criação do
carisma, mesmo que de forma efêmera, focando a configuração das atitudes e
meios para a criação de um personagem social conveniente às suas ambições.
Retorna à dicotomia, tão cara ao autor, agora para a divisão de dois temores:
os de ordem interna e externa, analisando, em outros pontos da obra, pontos em
que os dois se fundem.

     Retomando a discussão quanto à importância de agradar a
plebe, explana o escudo humano que se forma em torno do príncipe por ela
legitimado, de modo a proteger interesses particulares ou coletivos, o que pode
ser invertido pela manipulação ideológica dos valores sociais e atitudes do
governo, pela sedução, baseada no pragmatismo (em especial o econômico) humano,
com a oferta de espólios e regalias à classe ou malta coesa de cujo poder busca
servir-se.

     Nota-se, em especial pelos exemplos de manifestações
populares, como o caso dos Bentivoglio e Caneschi, a influência da moral
judaico-cristã no pensamento pessoal maquiavélico, admitindo-se duas
interpretações: resquício de idealismo platônico por parte do autor,
considerando que os homens agiriam simplesmente pela moral e busca do Bem, ou o
mais provável, a sua constatação da importância dada pelo homem medieval e
mesmo cinquecentista à moral enquanto manifestação, respectivamente
religiosa ou social, enquanto meio de coesão de massa ou manutenção do status
quo
(sendo este de interesse da classe dominante, amalgamada ao poder
clerical). Assim, subentende-se uma demonstração sociológica: os magistrados e
senhores priorizam a manifestação social moral, usando-se, quando necessário,
das armas, como meio de demonstrar politicamente sua conotação religiosa, evitando
incoerências que poderiam implicar instabilidade e sensíveis animosidades.

     Podem ser, também, expostas outras raízes para a
atitude moral refletida pela sociedade de sua contemporaneidade, como a crença
real em danação eterna aos pecadores e imorais; mimetismo social e ausência de
questionamento de valores herdados, por mais que estejam contra a vontades ou
instintos; transvaloração da vontade de poder nietzscheana, de modo patológico,
com provável origem em fraqueza interior de personalidade, surgimento de
compaixão ou ambição de modo idealista, nascida, provavelmente, em valores
arraigados em período anterior à formação da personalidade ou em momentos de
extremo irracionalismo, comumente oriundo de desespero, ou em pragmatismos
metafísicos, como a busca de eternidade, paraísos, ou luxúria e satisfação como
modos de satisfação ou sublimação metafísica de recalcamentos freudianos (vide
caso islâmico), entre outros.

     Sendo assim, o príncipe deveria estar em consonância
com as aspirações morais, econômicas, sociais e mesmo metafísicas das classes
detentoras do poder na base de sustentação estatal, sob a pena de pagar com
instabilidade e hostilidades por atos levianos ou irrefletidos.

     Nicolau apresenta, também, métodos de estabilização por
respeito social e “regras de conduta” e formação da honra e reputação, apresentados
de forma literária, posteriormente, por Fedor Dostoievski, em Memórias da
Casa dos Mortos
, demonstra o fato de que os homens, em geral, habituam-se a
tudo, até o cume em que é retirada a sua dignidade e o fato de que os
subordinados prestam maior respeito ao superior que os trata com firmeza,
distância e seriedade (excluindo-se o despotismo) do que ao que excede
demasiado nas liberdades e busca amizades ou proximidades, desconsiderando seu
amor-próprio para o agrado de outrem, culminando com a perda da majestade
superior ou imperial.

     O arquétipo do leão também é descrito em Crime e
Castigo
, como o homem invulgar que, por sua ousadia e não por sua razão e
clareza de raciocínio, conquista as massas, fato esse observado pelo autor no
período de ascensão do socialismo no século XIX.

     Ao discorrer quanto à maior importância dada ao povo
que aos militares, nota-se a defasagem do autor quanto à importância do poder
bélico, depreciada de um modo que seria impraticável aos dias de hoje, talvez
pela disparidade tecnológica ou moral com o período de análise do autor.

     No século XX, em especial, regimes amplamente
ditatoriais, tanto de direita quanto de esquerda, espalharam-se como metástase
pelos territórios de países em crises sociais, com a repressão de milhões de
cidadãos e apoio nas classes privilegiadas, com especial destaque para a
burguesia industrial na América Latina, e para a nomenklatura soviética,
além de África e Ásia. Nesses regimes, desconsiderou-se o apoio popular
pós-consolidação estatal, com coerção em níveis despóticos, o que incluiu,
entre outros, genocídios (sendo notórios os casos de Mao Tsé-Tung na China
Popular, Stálin e Pol Pot) e tortura (vulgarmente generalizada).

     A letargia da população pode ser explicada, entre
outros, pela manipulação ideológica (comumente denominada “pensamento de
colônia”), fruto de fraquezas de personalidade oriundos de culturas submissas à
mensagem externa de superioridade, nas direitistas, apoiadas pelas potências
hegemônicas, utilizando-se de sofisticado aparato, para o que contribuiu
sensivelmente o complexo desenvolvimento tecnológico, permitindo, como foi
demonstrado, mesmo que de modo caricatural, nas obras de Orwell(1984) e
Huxley(Admirável Mundo Novo), um singular controle, pelo Estado, da vida
privada, sufocando insurgências em suas raízes e exercendo domínio por pura coercibilidade,
além da despersonalização dos indivíduos por, por exemplo, meios de comunicação
voltados para a massa, como o rádio (vide Getúlio Vargas) e a televisão
(contemporaneidade).

     Maquiavel peca pela nulidade das categorias
quantitativas, em termos de poder de controle, repressão e manipulação. Ao
abordar a coexistência de antagônicos, (como senhores e povo, população e
militares), desprezou o fato de que a escolha de uma massa coesa e a criação,
mesmo que artificial, de animosidades com outra equivalente, pode implicar,
como se presenciou nos totalitarismos de base sectária, como o Nazismo o
Fascismo e o Comunismo (em especial nas vertentes leninistas, stalinistas e
maoístas), uma base e estabilidade políticas sensivelmente superiores à posição
de um mero mediador político, sujeito a levantes de massa, como o caso dos
liberais na República de Weimar.

     Aparece, também, o erro de generalizar um conceito de
massa a todas as populações, desprezando valores particulares, equívoco esse
que pode ser atenuado pelo fato de que sua escrita focou a massa italiana, que,
pelo óbvio caráter interno, representaria maior homogeneidade quando comparada
a fatores externos.

     Apesar de sua revolução ao separar a análise política
da religião, superando idealismos platônicos e o posterior pensamento
agostiniano, erroneamente se classificaria seu pensamento, em especial o
pessoal, como imoral ou mesmo semelhante à escola cínica (que ia contra os
valores morais da sociedade), pois que, apesar da metodologia política amoral,
todas as suas premissas são baseadas em valores éticos típicos do Cristianismo,
como a busca da estabilidade e a conseqüente paz, e a justificação da obtenção
do poder para a unificação de países e engrandecimento, ofuscando algo que
seria colocado, mais tarde, por filosofias ainda mais realistas: a motivação
egoísta das atitudes, regra geral entre príncipes e governantes e o imoralismo
quando se trata de preceitos cristãos. Propondo tais medidas como necessárias
para um suposto bem maior, não como algo natural, Maquiavel declarava
expressamente, em cartas pessoais, sua suposta bondade e justiça (também sob o
ponto de vista cristão).

     Desse modo, apesar da visão deturpada por uma busca de
equilíbrio matisseano, origem em irrefletido idealismo estético e
desconsiderando aspectos estratégicos e quantitativos para priorizar dicotomias,
algumas delas citadas na presente análise, que figuram demasiado simplistas,
tendo em vista sua possibilidade de análise de movimentos de massa, como as
heresias, em especial a cátara, na Idade Média, o valor de Maquiavel, enquanto
revolucionário da Ciência Política é comparado à revolução copernicana no campo
da Astronomia, não só pelo estabelecimento de novas bases, mas também pelo
desenvolvimento aguçado, mesmo que contemporaneamente obsoleto, de métodos e
observações dotadas de maior realidade do que as presenciadas na cultura
ocidental até então.
    

    

Referências

CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.

DOSTOIÉVSKI, Fedor. Memórias da Casa dos Mortos. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

DOSTOIÉVSKI, Fedor. Crime e Castigo. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2004.

FREUD, Sigmund. Psicologia de Grupo e Análise do Eu.
Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Bertrand
Brasil, 1991. cap. IX pp. 55-58, cap. XIX pp. 105-113.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo:
Escala.

* Ernani Fernandes é acadêmico de Direito do Largo de São Francisco, USP. Escreve sobre filosofia, literatura, psicologia e outros. Para contato, [email protected]

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