Emil Cioran e a crítica ao pensamento utópico

Emil Cioran e a crítica ao pensamento utópico

Daniel
Artur Emidio Branco
(*)

 

RESUMO

 

A explanação do pensamento do filósofo Emil Cioran (1911-1995),
apresentando a sua relevância para a intelectualidade contemporânea, é o fim a
que se propõe este artigo. Tendo como ponto de partida as obras História e
Utopia
(1960) e Breviário de Decomposição (1949), sem deixar
no esquecimento as demais obras do autor e entrevistas, se verá, nas linhas que
se seguem, a idéia de que é na negação que o ser humano encontra a lucidez e
que toda forma de utopia, toda crença no progresso, é vã. Desse modo, sendo
Cioran, pensador romeno radicado na França, investigado no presente tratado, as
inevitáveis críticas às instituições e ao pensamento sistemático e, inclusive,
ou até principalmente, à tradição filosófica terão grande ênfase, na medida em
que a própria subjetividade, o Nada, a Lucidez, o Tempo e a História vão sendo
também estudados. Portanto, o lúcido Cioran, ao mesmo tempo um ser que passa
pela experiência da insônia, sentindo a realidade que lhe fora revelada, a
saber, a inércia, o anonimato, a negação e a Queda, emite crítica ao
progressismo, ao utopismo, afirmando o mundo interior e não o exterior como
fonte de lucidez. Se buscará aqui exprimir fielmente o pensar deste autor de
suma importância não só para a contemporaneidade, porém para todas as eras.

 

 

Palavras-Chave: Insônia, Negação, Utopia, Progresso, Queda.

 

ABSTRACT

 

The explanation of the thought of philosopher Emil
Cioran (1911-1995), showing their relevance to contemporary intellectuals, is
the purpose it is proposed here. Taking as its starting point the works History
and Utopia (1960) Decomposition and Breviary (1949), while forgetting the other
author’s works and interviews, will be seen, the lines that follow, the idea
that is in denial that human being is clarity and that every form of utopia,
all belief in progress, is vain. In this way, and Cioran, Romanian philosopher
living in France, under investigation in this Treaty, the inevitable criticism
of institutions and the systematic thinking and even, or even mainly, to the
philosophical tradition have great emphasis to the extent that our own
subjectivity, Nothing, Lucidity, Time and history will be also studied.
Therefore, the lucid Cioran, while a being who experiences insomnia, feeling
the reality that had been revealed, namely, inertia, anonymity, denial and
Fall, issues critical to the progress, utopianism, saying the inner world and
not the outside as a source of clarity. If you seek here to express faithfully
the author think of this very important not only for the contemporary, but for
all ages.

Keywords: Insomnia, Denial, Utopia, Progress, Fall.

 

 

 

Introdução

 

Este artigo tem a finalidade de investigar, mediante
a obra História e Utopia (1960), principalmente, auxiliada, porém, de
outras obras, como Breviário de Decomposição (1949), e entrevistas, a
crítica que o filósofo Emil Cioran faz à idéia de progresso histórico, visto
que tal crítica, por defrontar-se com o pensamento progressista da Filosofia
Moderna, tem uma grande relevância para a Filosofia Pós-Moderna. O pensamento cioraniano
é polêmico, utiliza-se de uma linguagem soturna e exprime bem o momento da
humanidade. A decadência da racionalidade filosófica, simultânea a queda da
escrita sistemática e o rompimento com a perspectiva de uma História linear
fazem de Cioran, com o estilo epilético, escrita fragmentada e indiferente às
utopias, um filósofo cuja leitura é necessária a todo intelectual pós-moderno.

 

Natural de Rasinari, condado de Sibiu, na Romênia,
filho de um padre ortodoxo e mãe pouco religiosa, embora líder de grupo de
senhoras religiosas, Cioran teve, obviamente, influência da religião do seu
lugar de origem. Acabou por se radicar, porém, na França, berço da cultura, do
secularismo, obtendo um estilo que varia entre o Nada e a prosa, o ódio e a
tragicomédia, o rancor e a abstinência.

 

Desde as suas obras na Romênia como Pe Culmile
Disperarii (1934) até suas principais obras, já em solo francês, História e
Utopia
e Breviário de Decomposição, Cioran propõe que é preciso, se
se quer ser lúcido, ser envolvido pela nulidade. Este contraste com o
pensamento sistemático e até progressista da tradição filosófica marca o seu
pensamento.

 

O título do artigo, portanto, tem a finalidade de
sintetizar o pensamento do autor. A idéia de que o otimismo é vão e que o
pensamento sistemático não é lúcido, presente nas suas obras, é valorizado nas
linhas que se seguem. Cioran não é plenamente um filósofo. No entanto, não
deixa de sê-lo. Ele é mais do que isso justamente porque não deseja ser alguma
coisa. O verdadeiro filosofar, para ele, é abandonar o pensamento, a ação, toda
forma de utopia, deixando que o corpo o domine e o espaço o obscureça, em uma
revelação soturna e cruel, na medida em que é totalmente lúcida.

 

1. O tempo
como realidade imutável

 

 

Na obra História e Utopia Cioran exprime, por
meio da análise da Queda do primeiro homem, segundo consta no livro bíblico do Gênesis,
a trágica condição do gênero humano diante da História. Esta, por sua vez,
advinda com a Queda, nada mais é do que a repetição da essência desse primeiro
ser. Desta forma, se desenvolve a idéia de que todas as eras e civilizações
nada sabem de novo, pois, embora existam diferentes civilizações, costumes e
épocas, a essência do homem sempre é a mesma. Daí parte a crítica à Modernidade
e a Filosofia Moderna que, segundo Cioran, não puderam perceber que, por mais
que se tente fazer da História um veículo de esperança para o progresso, há na
humanidade uma essência caída que é irreversível:

 

O exercício filosófico não é fecundo: é apenas
respeitável. Sempre se é filósofo impunemente. (…) Os verdadeiros problemas
só começam após havê-la percorrido ou esgotado, após o último capítulo de um
imenso tomo, que põe o ponto final em sinal de abdicação ante o Desconhecido,
onde se enraízam todos os nossos instantes, e com o qual precisamos lutar,
porque é naturalmente mais imediato, mais importante que o pão cotidiano. Aqui
o filósofo nos abandona: inimigo do desastre, ele é sensato como a razão, e tão
prudente quanto ela  (CIORAN, 1989, p.55).

 

Mediante a Insônia é que, entretanto, para Cioran, um
indivíduo pode tornar-se lúcido diante desta realidade, como relatado em Breviário
de Decomposição
. Para tanto, é preciso ser escolhido. A Insônia, segundo o seu
pensamento, não é buscada pelo homem. Ao contrário, ela é que o escolhe. Este
domínio, tanto da fisiologia como da meteorologia, marca o pensamento
cioraniano. Desta forma, com a crítica ao progresso histórico, o autor revela
que a sociedade pós-moderna, uma vez caído o espírito de progresso da
modernidade, tende a reviver sentimentos negativos. Tais sentimentos, como
tirania, rancor e ódio, inerentes a períodos de decadência, são pré-requisitos
para a decência intelectual.  Sendo assim, a filosofia cioraniana “investiga” o
seu tempo e não propõe ao atual momento mudanças, utopias ou progresso, o que
faz deste período um pequeno alívio diante da trágica História:

 

Ela [a História] não é o fundamento do ser, mas sua
ausência, o não de toda coisa, a ruptura do vivente consigo mesmo: não
sendo constituídos pela mesma substância que ela, nos recusamos a cooperar em
suas convulsões. Pode nos esmagar à vontade, só atingirá nossas aparências e
nossas impurezas, esses restos de tempo que ainda arrastamos, símbolos
de fracasso, marcas de escravidão (CIORAN, 1994, p.141).

 

Quem está sozinho em uma rua, em meio a uma madrugada
sombria, mesmo que seja um mendigo, um homem iletrado, é mais lúcido do
qualquer filósofo ou intelectual acadêmico. Isto porque, malgrado ser dotado de
razão, o homem racional não pode alcançar a verdade. O Ser almejado pelo
racionalismo socrático, fundamentador da tradição filosófica, não passa de uma
ilusão, de uma utopia. Ter um alvo, um objeto de estudo, não é possuir como
finalidade a matéria, o corpo. Ao contrário, o fim a que se marcha em direção,
quando se possui um caminho a seguir, é o “percorrer”, o “caminhar”. O homem
não quer o Ser propriamente, quer é o “conhecer”. Acontece que o conhecimento
não pode criar algo, porque aquilo que o intelecto busca, sempre lhe é superior.
Uma vez subindo até ao mais alto monte da sabedoria, o homem desmorona,
frustrado por não ter encontrado o que ainda procura. Com este pensamento, o
autor franco-romeno sintetiza a História humana como a eterna repetição do
pecado de Adão:

 

Ontem, hoje, amanhã: categorias para uso de criados. Para ocioso suntuosamente instalado
no Desconsolo, e ao qual todo instante aflige, passado, presente e futuro são
somente aparências variáveis do mesmo mal, idêntico em sua substância,
inexorável em sua insinuação e monótono em sua persistência. E esse mal possui
a mesma extensão do ser, é o ser mesmo (CIORAN, 1989, p. 60).

 

Quando o cientista afirma: “descobri algo novo”, se
prova que ele está demasiadamente iludido com a sua utopia. Cioran afirma que
ninguém pode sobreviver sem uma utopia. Envolver-se com esta, no entanto,
requer a perda da lucidez. Quem é lúcido, contudo, não o é por escolha. A
realidade se apresenta a tal homem sem que ele peça.

 

Não obstante houvesse uma ausência de pedido, sendo
que Adão e Eva não pediram para serem criados, o real se lhes apresentou. No
entanto, quiseram conhecer a realidade, na medida em que deram ouvidos à
afirmação da serpente de que, se comessem do que lhes havia sido proibido, se
ultrapassem os limites do corpo, se tornariam deuses, seriam conhecedores do
bem e do mal. Por isto foram expulsos do Paraíso.

 

Uma das razões por que se
pode negar a liberdade é o nosso fator meteorológico. A liberdade é uma ilusão,
pois depende de coisas que não deveriam me condicionar. Minhas idéias são
sempre ditadas pelos meus órgãos, os quais, por sua vez, são sempre ditados
pelo clima. (…) Meu próprio mal-estar, de ordem climatológica, está ligado ao
mal-estar metafísico (CIORAN, 1983)[1]

 

Cioran exprime que a história de Adão e Eva é a
história da humanidade. Todos são, por essência, Adão e Eva. Caído no pecado,
em dores de parto constante, o ser humano não pode mais retornar ao Paraíso. O
conhecimento é a sua mácula. Uma vez maculado, não se pode mais estar face a
face com o criador:

 

De tanto louvar as vantagens do trabalho, as utopias
deveriam tomar a direção oposta do Gênese. Neste ponto particularmente,
são a expressão de uma humanidade absorvida pelo trabalho, orgulhosa em
comprazer-se com as conseqüências da queda, das quais a mais grave é a obsessão
pela produtividade. (…) O homem, uma vez excluído do paraíso, para não sofrer
e não pensar mais nele, obteve como compensação a faculdade de querer, de
tender para o ato, de perder-se nele com entusiasmo, com brio  (CIORAN,
1994, p. 111).

 

Ser lúcido como foi Cioran não é sinônimo de estudo
acadêmico. O filósofo franco-romeno foi acometido de insônia durante sete anos
de sua vida, mais precisamente na juventude. Tal fato o revelou que o tempo, ao
contrário do que pensam os homens comuns, não passa. Quando se está acordado
por toda a noite, tudo o que há às dez da noite há, da mesma forma, às dez da
manhã. Portanto, a idéia de “quebra” no tempo, ou seja, o pensamento de que,
após uma noite de sono, as coisas que agora estão disponíveis a uma pessoa são
“novas” ou estão renovadas, sendo que tudo o mais permaneceu no dia anterior, é
passado, é falsa. Quem experimenta as noites de vigília, sabe que essa sensação
de “quebra” no tempo advém do sono. Este, por sua vez, impede que o homem tenha
a revelação da realidade, pois adormecem os seus órgãos, os seus músculos,
fazendo-o toda noite fechar os olhos para a imutabilidade do tempo. Por isso,
um ser que vive nas ruas, que vive à margem da sociedade, que adentra a
escuridão da noite, tem a lucidez que falta a um erudito.

 

2. A Ilusão da Utopia

 

A gnosiologia é lúdica. Conhecer é pensar que existe
no horizonte um objeto de estudo. Já Cioran diz que o Ser que a tradição
filosófica procura alcançar por meio da razão, não está no horizonte, senão no
alto. A marcha do ser humano em direção ao Ser tem como causa a idéia de que Este
se encontra no mundo exterior:

 

O destino histórico do homem é levar a idéia de Deus
até o seu final. Havendo esgotado todas as possibilidades da experiência
divina, experimentado Deus sob todas suas formas, chegaremos fatalmente à
saciedade e ao asco, após o que respiraremos livremente. Há, entretanto, no
combate contra um Deus que encontrou seu último refúgio em certos recônditos de
nossa alma, uma doença indefinível, doença nascida de nosso medo de perdê-Lo.
Como se alimentar de seus últimos restos, como poder gozar com toda
tranqüilidade da liberdade consecutiva à sua liquidação? (CIORAN, entrevista)[2].

 

Seja no solo, nos mares, na atmosfera ou nas galáxias, a ciência busca
desvelar a causa primeira da realidade. O que se chama de “horizonte” é o
equivalente a “cosmos”, o conceito de que a realidade está para além do corpo
humano, de que os entes estão fora do Ser e que, por isso, se pode conhecê-lo. 
O pensamento científico, contudo, para Cioran, se esquece que, em todas as
demais eras, homens pensaram estar descobrindo coisas novas, estarem dando um
passo a mais em direção ao conhecimento da realidade. A História mostra que
tais pessoas, posteriormente, tiveram as suas teses refutadas por pessoas de
outras épocas e que aquilo que para muitos de seus contemporâneos era genial
não tem nenhuma utilidade para a civilização que emerge sobre os seus túmulos:

 

A liberdade, eu dizia, exige o vazio para
manifestar-se; o exige e sucumbe a ele. A condição que a determina é a mesma
que a anula. Ela carece de bases: quanto mais completa for, mais vacilará, pois
tudo a ameaça, até o princípio do qual emana. O homem é tão pouco feito para
suportar a liberdade, ou para merecê-la, que mesmo os benefícios que recebe
dela esmagam, e ela acaba lhe sendo tão penosa que aos excessos que suscita ela
prefere o terror  (CIORAN, 1994, PP.
34-35).

 

Toda idéia corrompe a realidade. Militar, ter uma
causa, é manchar aquilo que até então estava puro, intacto, despido de ação.  Cioran
sabe que a História conta a ação do homem, as suas utopias e também a suas
frustrações. Agir é possuir utopia e possuir utopia é iludir-se. Quem tem um
pensamento lúdico, quem sonha, não vê que o mesmo ar que habita as noites
vazias das cidades é o mesmo ar que se respira na cama ao acordar. Quando
alguém pensa estar apresentando algo novo a outro, quando o emissor do discurso
tem a idéia de que suas palavras irão fazer a vida do receptor progredir,
iludi-se, pois, o sono o fez fechar os olhos para o vazio da noite, dando-o a
impressão de que, ao amanhecer, o ar que se respira é outro que não o de ontem.

 

Para o insone o tempo se exaspera. Ele se reconhece
um ser caído, impossibilitado da redenção divina. Diferentemente da noção do
sonolento, quem enfrenta as noites de vigília sabe que o tempo é o mesmo ontem,
hoje e sempre, não há “quebra”, novidade. As coisas não criadas e depois
recriadas como faz pensar o amanhecer de quem dorme. Cioran mostra que o insone
é lúcido por saber que, uma vez criatura caída, não existe uma nova criação,
nada desaparece, nada se cria, tudo está presente no momento atual assim como
esteve no passado e estará no futuro:

 

 

Não há mais passado, nem futuro; os séculos se
desvanecem, a matéria abdica, as trevas se esgotam; a morte parece ridícula, e
também a própria vida. E essa comoção, mesmo que só a tivéssemos sentido uma
vez, bastaria para nós reconciliar com nossas vergonhas e com nossas misérias,
das quais ele é sem dúvida a recompensa  (CIORAN, 1994, PP. 141-142).

 

Mais do que mero simbolismo, mediante o estudo das
obras de Cioran, pode-se dizer que, para ele, a Queda e a Insônia são funções
orgânicas. Tais funções revelam que o homem é dominado tanto pela fisiologia
como pela meteorologia. Um homem é tão comandado pelos seus sentidos quanto uma
nação é influenciada pelo clima.

 

Cada civilização pensa ter superado a sua antecessora
por meio de artimanhas, técnicas, estratégias que lhe são peculiares. A
inteligência, no entanto, segundo o pensamento cioraniano, é una, assim como o
tempo, não se divide. Sempre, ao longo da História, soube-se todas as coisas no
essencial. As mudanças (tecnológicas, estéticas, arquitetônicas etc.) de uma
civilização para outra se dão por causa da eterna repetição da natureza caída do
homem.

 

Cada nação que emerge só repete a essência da outra,
construindo obras, pensamentos, sistemas que até então não haviam sido
materializados, seja em livros, projetos tecnológicos etc. A forma como as
coisas são construídas, porém, é a mesma. Tudo o que se faz no mundo advém de uma
única razão: a necessidade de se conhecer a verdade final, a realidade em
totalidade, o Ser. Desse modo, embora uma civilização possua substâncias
materiais e tecnológicas que a anterior não possuiu, tudo o que nela se realiza
não é novo, pois remonta a uma mesma necessidade, a uma mesma utopia. A mesma
queda, o mesmo fim, que se efetivou nas nações de todas as épocas então se
efetivará também na nação presente, inevitavelmente:

 

Apesar de sua precariedade,
estamos tão apegados a esse tempo que, para afastar-nos dele, seria preciso
mais do que uma alteração de nossos hábitos: teria que ocorrer uma lesão no
espírito, uma rachadura no eu, por onde pudéssemos entrever o indestrutível e
alcançá-lo, graça concedida apenas a alguns condenados como recompensa ao fato
de haver consentido em sua própria ruína  (CIORAN, 1994, p. 126).

 

Cioran demonstra em suas obras e entrevistas que o
homem não age livremente. A “liberdade” é a idéia de que o homem é individuado,
diferente dos demais entes, e que, por isso, a sua ação não pode ser movida,
por ser externo ao Ser. Por exemplo, uma pessoa A difere da pessoa B e ninguém
em todo o universo é igual a A ou a B, desta forma, a ação de A só pode ser
realizada por A e a ação de B por B. Para o autor franco-romeno, em
contrapartida, quem assim pensa ainda não experimentou a revelação da
realidade. As noites de vigília, segundo ele, revelam que o tempo “continua” o
mesmo seja na manhã, tarde e noite, dias, meses e anos, décadas, séculos e
milênios! Sendo o tempo imutável, a sensação de ação é falsa. Não havendo ação,
o homem não é individuado e, portanto, não é livre:

 

Repetir-se mil vezes por dia: ‘Nada tem valor neste
mundo’, encontrar-se eternamente no mesmo ponto e rodopiar totalmente como um
pião. (…) Pois não há progresso na idéia de vaidade de tudo, nem desenlace; e
por mais longe que nos arrisquemos em tal ruminação, nosso conhecimento não
cresce de modo algum: é em seu momento presente tão rico e tão nulo como o era
em seu ponto de partida  (CIORAN, entrevista)[3]

 

A fisiologia e a meteorologia movem as ações humanas.
O conhecimento que separa o sujeito do objeto é tido por Cioran como uma
ilusão. Para tanto, a vida desse ser vivente dotado de razão se condiciona
pelos órgãos corporais e funções climáticas nas quais está inserido. A “razão”
é o pecado do homem. Pensar, dividir o tempo e o espaço, sistematizar, tem como
finalidade a busca por Deus. Tal busca, utópica, aparenta ser fértil, assim
como o conselho da serpente no Gênesis foi atraente. Quando, porém, se
esgota o pensamento, quando o conhecimento chega ao seu limite, vem a loucura,
a total falta de sentido, pois a queda faz de quem pensava chegar ao trono do
criador um simples bêbado que cai na calçada suja de lama, beijando os pés dos
transeuntes mais vis:

 

Viver verdadeiramente é recusar os outros; para
aceitá-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra sua própria
natureza, enfraquecer-se; só se concebe a liberdade para si mesmo: ao próximo
só a concedemos a duras penas; daí a precariedade do liberalismo, desafio a
nossos instintos, êxito breve e miraculoso, estado de exceção oposto a nossos
imperativos profundos. (…) Função de um ardor extinto, de um desequilíbrio,
não por excesso, mas por falta de energia, a tolerância não pode seduzir os
jovens. (…) Dê aos jovens a esperança ou a ocasião de um massacre e eles lhe
seguirão cegamente  (CIORAN, 1994, p. 14).

 

A história do homem é a história do mal. Só há
História com vida e só há vida com ação. Agir, entretanto, é retirar a pureza
do objeto até então inexistente. Por isto Cioran, ao mostrar que a humanidade é
condicionada pelo corpo e pelo clima, revela que rebelar-se contra tais
elementos condicionantes, agindo utopicamente, vendo um mundo exterior, para
fora dos seus órgãos e para além da tempestade que o envolve, é ser mal. A ação
não pode trazer nem a si nem a outro algo real. Para tanto, quando um parto é
realizado o recém-nascido é maculado pelas palavras e gestos das pessoas, que
nada mais são do que folhas soltas no ar, sem fundamento, sem solidez, meras
impressões. Portanto, como o homem já é maculado desde que nasce pelo pecado da
ação, é preciso agir o menos possível para “pecar” o mínimo que se puder:

 

História universal: história do mal. Suprimir os
desastres do devir humano é o mesmo que conceber a natureza sem estações. Se
você não contribuiu para uma catástrofe, desaparecerá sem deixar vestígio.
Interessamos aos outros pela desgraça que semeamos à nossa volta. “Nunca fiz
ninguém sofrer”- exclamação para sempre estranha para alguém de carne e osso
(CIORAN, 1989, p. 108).

 

Se a História nada mais é do que a marcha utópica do
homem em direção a Deus e tal “peregrinação”, pois uma vez caído não se pode
alcançar o Paraíso e ver o Criador, é vã e pecaminosa, porque a palavra macula tanto
o emissor quanto o receptor, Cioran propõe outro “estado” da História. Este é o
“estado negativo” da História, que não tem forma, é negação, nulidade,
ausência. Sendo o que a História vê, “capta”, é a “ação” do homem, o estado
negativo da História se “efetua” na total subjetividade, no poderio do corpo,
do clima, na recusa de agir. O anonimato que advém com isto confirma a lucidez
de quem “sente” ao invés de “conhecer”:

 

Jamais houve eclipse de lucidez tal que o homem fosse
incapaz de abordar os problemas essenciais, pois a história é apenas uma
perpétua crise, uma quebra da ingenuidade. Os estados negativos- que são
precisamente os que exasperam a consciência- distribuem-se diversamente,
contudo estão presentes em todos os períodos históricos (CIORAN,
1989, p. 144).

 

Cioran constata ainda a existência de um subterrâneo
que antecede cada ação. Ele é mais profundo que qualquer ato porque não está
presente no passado, não é visto no presente e nem é esperado no futuro. Quanto
mais denso, comprimido e doloroso for este subterrâneo, menos lúdica é aquela
ação. Desta forma, segundo o filósofo franco-romeno, o ódio e o rancor são mais
lúcidos do que a paz e o amor. Isto se dá porque as ações advindas dos
sentimentos negativos não buscam construir o Paraíso, senão destruir o que é
visto fora de si. Tal destruição é precisa para retirar do corpo, do “lar”,
qualquer invasor. Ao contrário das ações positivas, que querem se relacionar,
iludindo tanto a si como os outros, as ações negativas são realizadas nas tentativas
de isolarem-se após a destruição do mundo exterior. Só restando então o mundo
interior. Por isto estas ações são, para Cioran, mais lúcidas do que aquelas:

 

Não vingar-se é submeter-se à idéia de perdão, é
afundar-se nela, é tornar-se impuro por causa do ódio que se sufoca dentro de
si. O inimigo poupado nos obseda e nos perturba, sobretudo quando decidimos não
detestá-lo. (…) Nada nos torna mais infelizes do que a obrigação de resistir
a nosso fundo primitivo, ao apelo de nossas origens  (CIORAN, 1994,
p. 74).

 

Se a História revela que a essência caída do gênero
humano e toda forma de utopias, incluindo a construção de sistemas, é vã, falso
também é o utópico “culto” à razão da tradição filosófica. Para tanto, Cioran
afirma que esta tradição tem como finalidade desvelar a verdade final, chegar
ao “topo” do real. Valorizando as “idéias” em detrimento do corpo, buscam o
Paraíso no mundo exterior e, por isso, sempre se frustram. Pode-se constatar
isto na Filosofia Moderna, onde a idéia de progresso foi exaltada.

 

 

3. A subjetividade como alternativa

 

Seja com materialismo dialético de Karl Marx
(1818-1883) ou o idealismo de Friedrich Hegel (1870-1831), os filósofos
modernos buscaram substituir o filosofar metafísico da Idade Média por um
filosofar que redescobre a História. Esta, por sua vez, é vista por estes
pensadores modernos como uma construção ainda inacabada. Há, nesta lógica, algo
a se fazer, algo a se mudar. Tanto Marx como Hegel, materialista e idealista,
respectivamente, não perceberam, porém, que os seus pensamentos estavam sendo
condicionados pelo “clima” propício da modernidade, onde tudo parecia novo e
festivo.

 

Não pode haver, para Cioran, sinal de lucidez na
Filosofia, pelo menos enquanto tradição. Qualquer pessoa que tem um pensamento coerente
com alguma academia deixa de sentir a verdade fisiológica. Quando se escreve um
ensaio filosófico aprovado pela academia, o autor não põe no mesmo a verdade
que habita no seu interior. Isto porque o pensamento sistemático é objetivado,
enquanto que a lucidez se dá no maior grau de subjetividade:

 

Se minha dependência da fisiologia não fosse tão
grande, nunca poderia ter tido que utilizar esta alegria aparente. (…) Conta
Kierkegaard que, ao regressar a sua casa, depois de haver estado a rir a todo instante
no salão, só tinha desejo de se suicidar. Crise existencial que é comprovado em
muitas ocasiões (CIORAN, 1983, entrevista).

 

A poesia, em contrapartida, pode ser lúcida, segundo
afirma Cioran em entrevistas. Se precisa, contudo, conhecer o grau de subjetividade
do autor. Despido dos pecados da academia, um poeta que também não se preocupa
com o lucro da sua obra pode não estar distante da real face do mundo. A
“vagabundagem”, a falta de compromisso que, vez por outra, fazem parte da
conduta de poetas é sinal de lucidez. Não há, pois, lugar, estado, nação ou
planeta que possa ser alvo de alguém que tem em si a revelação da realidade por
meio da noite. A vigília nas ruas sujas e fétidas fazem do insone um ser que,
mais que versos direcionados, recita, com gemidos, os poemas soturnos escritos
no seu corpo pelo Ser:

 

A morte é um tema na história da
filosofia, mas não como vivência íntima. Em Baudelaire existe a morte, em
Sartre não. Os filósofos têmse esquivado da morte fazendo dela uma questão, ao
invés de experimentá-la como algo existente. Não a consideram como algo
absoluto, mas entre os poetas é diferente. Eles adentram profundamente o
fenômeno, rastreando-o. Um poeta sem sentimento de morte não é um grande poeta.
Parece exagerado, mas é assim  (CIORAN, 1995, entrevista)[4].

 

 

O pensar filosófico só pode
encontrar alguma relevância para Cioran se os sistemas forem abandonados. A
instituição, a academia, objetiva. Por isso, é “má”. Objetivar, agir segundo
normas, segundo tradições, é perder-se na ilusão. Da mesma forma, pensar que as
tradições podem ser destruídas, ter utopias, são ações vãs. A História não
muda. Tanto a passividade quanto o ativismo são erros. No entender do autor
franco-romeno tem-se que “não ser” para que o Ser se lhe revele:

 

Quando Cristo assegurou que o ‘reino de Deus’ não era
‘aqui’ e nem ‘lá’, mas dentro de nós, condenava de antemão as construções
utópicas para as quais todo o ‘reino’ é necessariamente exterior, sem nenhuma
relação com nosso eu profundo ou com nossa salvação individual. Quanto mais as
utopias nos tenham marcado, mais esperamos nossa libertação de fora, do curso
das coisas ou da marcha das coletividades. Assim se delineou o sentido da
história, cujo sucesso superou o do Progresso, sem acrescentar-lhe nada de novo
 (CIORAN, 1994, p. 112).

 

Por fim, mediante História
e Utopia
, Breviário de Decomposição e conhecimento de outras obras e
entrevistas, pode-se concluir que Cioran apresenta ao mundo contemporâneo um
filosofar “pré-histórico”. Tal “filosofia” não se efetua na consciência, senão
no corpo e no espaço. Ao abster-se de qualquer pensamento sistemático, sem, no
entanto, desejar fazer parte de qualquer “tendência” literária, Cioran mostra
que é na total negação, na plena abstinência da história, que a lucidez se
revela. Portanto, torna-se evidente a importância do autor franco-romeno para o
leitor contemporâneo, pois as suas obras revelam onde os sistemas e as utopias
do mundo pós-moderno conduzirão a humanidade. E não é para o Paraíso!

 

Conclusão

 

As obras de Cioran não são,
definitivamente, um apanhado de sistemas, não fazem uma investigação científica
da realidade. Isto se dá pelo fato de que, acima de tudo, a subjetividade é
preservada pelo autor. O mundo exterior, habitat das utopias, é falso, segundo
o seu parecer. Não se pode, portanto, ver o pensamento cioraniano como linear,
“coerente”. Ao contrário, suas idéias são fragmentadas, seu estilo, paradoxal.

 

A crítica que Cioran faz a
toda forma de utopia, tudo o que for constituído de método, tem as suas raízes
na experiência interior. Quem possui tal experiência, não a reconhece como
“conhecimento”, pois isto seria afirmar que existe um sujeito que conhece e um
objeto a ser conhecido. O filósofo franco-romeno chama de lucidez é o “sentir” a
realidade crivada em um tempo que não passa e sob um céu eternamente cinza.

 

A fisiologia e a
meteorologia são elementos constitutivos das ações humanas. Para Cioran, este
conceito não advém de uma empiria, porém, sobretudo, da negação. Negar, no
entanto, é abstinência e, como tal, não requer ação. Pode-se, portanto, se
escolher a negação? A reposta é não! Lendo-se com atenção as obras do autor
franco-romeno, se verá que o “ato” de negar é justamente “desaparecer” por
causa dos órgãos que regem o corpo e natureza. São eles que, na verdade, que
impedem que o homem aja, para darem-lhe a lucidez. Desse modo, negar não é “agir”,
senão ser envolvido por esta força maior e anônima que escolhe uns lúcidos,
para verem a real perdição do mundo caído, e outros, utópicos, iludidos, para
pensarem chegar ao paraíso.

 

O mundo é, portanto, no
entender de Cioran, um lugar onde se busca a fuga do trágico destino em que
todos estão destinados. Todas as formas institucionalizadas de pensamento
(Filosofia, Sociologia, Psicologia etc.) são medidas utópicas tomadas pelo ente
em busca de sair do tormento que está ao seu redor.  Não se pode, no entanto,
fugir da natureza caída do homem, não há fuga para isso. Nenhum mecanismo,
nenhum sistema, livra o gênero humano de tamanha tragédia.

 

Desta forma, se conclui que
a relevância de Cioran para a Filosofia e o modo de pensar que se desencadeia
na atualidade é o fato de as suas obras exprimirem como o modo de pensar
progressista, utópico, possui um fim falho. Com esta revelação, os já lúcidos e
os que tendem ao subjetivismo são convocados a deixarem que o Nada, que já de
antemão começava a se lhes apresentar, os domine por completo!

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Fontes
Primárias

 

CIORAN, Emil. Antologia do Retrato [1952]Trad. br. José Lourenço
de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

_________, Emil. Breviário de Decomposição [1949]. Trad. br. José
Thomaz Brum, Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

 

________, Emil. Exercício de Admiração [1986]. Trad. José Thomas Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

 

_________, Emil. História e Utopia [1960] Trad. br. José Thomaz Brum, Rio de Janeiro: Rocco,
1994.

 

_________, Emil. Silogismos da Amargura [1952]. Trad. br. José
Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

 

 

Fontes
Secundárias

 

 

ELIADE, Mircea. História das Crenças e das
Idéias Religiosas
[1983]. Trad. br. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de
Janeiro, Zahar, 1984.

 

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Trad.br. Paulo Alves. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

PECORARO, Rossano. Cioran a Filosofia
em Chamas. Porto Alegre:
Edipucrs 2004.

 

NIETSZCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra [1885]. Trad. br.
Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2002.

 

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e
Representação
. Trad. br. M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto,
2001.

 

(*)
Daniel Artur Emidio Branco. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará(UECE), cursando especialização em História do
Brasil pelo Instituto de Teologia Aplicada(INTA) e cursando Teologia na
Faculdade de Teologia do Ceará(FATECE). E-mail: [email protected]


[1]
Entrevista com Cioran concedida à Gabriel Liiceanu em
novembro de 1983, disponível no site: http://planetcioran.blogspot.com/2006/10/entrevistas-espaol.html.

 

[2]
Citação de Cioran disponível no site: http://planetcioran.blogspot.com/2006/10/citaes-portugus.htmlm

[3]
10Citação
de Cioran disponível no site: http://planetcioran.blogspot.com/2006/10/citaes-portugus.htmlm

[4]
Entrevista com Cioran concedida à Heinz-Norbert Jocks
no ano de 1995, disponível no site: http://www.weblivros.com.br/entrevista/a-filosofia-irritada-ltima-entrevista-com-cioran.html.

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