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Tradução de Odorico Mendes
Fonte: Clássicos Jackson
Resumo e apresentação da Ilíada de Homero
Argumento do Livro I da Ilíada
Exposição
do assunto. — Crises, sacerdote de Apolo, vem ao campo
dos gregos para resgatar sua filha. — Repelido e ultrajado por
Avamémnon,
invoca a protecção de Apolo. — A peste, como um castigo
ilivino,
lavra pelo exército grego e mata muitos de seus heróis. —
Aquiles
convoca a reunião dos chefes, promete sua protecção ao
adivinho
Calcas, e lhe pergunta a causa da cólera de Apolo. — O
adivinho
a revela e indica como único meio de afastar o flagelo a
instituição
de Criseida. — Cólera de Agamémnon contra Calcas: suas
ameaças
contra Aquiles. — Este lança mão da espada, Minerva lhe
aconselha,
e dócil à voz da deusa limita-se a responder apenas com
insulto
o recebido ultraje. — Agamémnon forçado a restituir Criseida
n
seu pai, toma de Aquiles a cativa Briseida. — Aquiles, indignado,
não
quer mais combater pelos gregos; invoca sua mãe Tétis, que o
consola
e lhe promete vingança. — Volta de Criseida à sua pátria;
sacrifício
em honra de Apolo. — Entrevista de Tétis e de Júpiter con-
sentindo
em dar a vitória aos troianos. — Queixas de Juno e ameaças
de
Júpiter em presença dos habitantes do Olimpo. — Graças à inter-
venção
de Vulcano, restabelece-se a paz na assembleia dos imortais.
Canto I
Canta-me,
ó deusa, do Peleio Aquiles
A
ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes
no Orço lançou mil fortes almas,
Corpos
de heróis a cães e abutres pasto:
Lei
foi de Jove, em rixa ao discordarem
O
de homens chefe e o Mírmidon divino.
Nume
há que os malquistasse? o que o Supremo
leve
em Latona. Infenso um letal morbo
No
campo ateia; o povo perecia,
Só
porque o rei desacatara a Crises.
Com
ricos dons remir viera a filha
Aos
alados baixéis, nas mãos o ceptro
E
a do certeiro Apolo ínfula sacra.
Ora
e aos irmãos potentes mais se humilha:
"Atridas,
vós Aqueus de fina greva,
Raso
o muro Priâmeo, assim regresso
Vos
dêem feliz do Olimpo os moradores!
Peço
a minha Criseida, eis seu resgate;
Reverentes
à prole do Tonante,
Ao
Longe-vibrador, soltai-me a filha".
Que,
aceito o preço esplêndido, se acate
O
sacerdote murmuraram todos;
Mas
desprouve a Agamémnon, que o doesta
E
expele duro: "Em cerco às naus
bojudas
Não
me apareças mais, quer ouses, velho,
Deter-te
ou retornar; nem áureo ceptro,
Nem
ínfula do deus quiçá te valha.
Nunca
a libertarei, té que envelheça
Fora
da pátria, em meu palácio de Argos
A
urdir-me teias e a compor meu leito.
Sai,
não me irrites, se te queres salvo."
Taciturno
o ancião treme e obedece.
Busca
as do mar fluctissonantes praias.
Ao
que pariu pulcrícoma Latona
Afastando-se
impreca: "Arcitenente,
Ouve,
Esminteu, que Ténedos enfreias,
Crisa
proteges e a divina Cila,
Se
de festões colguei teu santuário,
Se
de cabras e touros coxas pingues
Te
hei queimado, compraze-me os desejos,
A
tiros teus meu choro os Dânaos paguem."
Febo,
a tais preces, arco e aljava cruza,
Do
vértice do céu baixa iracundo;
Vem
semelhante à noite, e a cada passo
Tinem-lhe
ao ombro as frechas. Ante a frota
Suspenso,
a farpa do carcás descaixa,
Terrível
o arco argênteo estala e zune:
Moles
primeiramente a cães e a mulos,
Depois
com vira acerba ataca os homens,
De
cadáveres sempre a arder fogueiras.
Al
tropas dias nove asseteadas,
Ao
décimo as convida e ajunta Aquiles;
Inspiração
da bracinívea Juno,
Que
seus Dânaos morrer cuidosa via.
Ele,
em pinha o congresso, velocípede
Si alça e diz: "A escaparmos, julgo, Atrida,
Retrocedermos
errabundos cabe:
Peite
os nossos consome e os ceifa a guerra.
Eia,
adivinho, arúspice, ou de sonhos
(Jove
os envia) conjector se inquira,
Qe
explique a ofensa do agastado Febo:
Sc
a votos e hecatombes lhe faltámos;
Se,
para desarmar-se, olor de assados
Cordeiros
nos reclama e nédias cabras."
A
seu lugar tornou. De augures mestre,
No
passado e presente e porvir sábio,
Surgiu
Calcas Testórides, que a Tróia
Por
influxos de Apolo as naus guiara,
E
concionando exordiou prudente:
"Mandas-me,
ó caro a Júpiter, o agravo
Do
grã frecheiro expor. Aqui prometas
Com
braço e voz cobrir-me: o fel eu temo
Do
amplo-reinante que domina os Graios;
E
ao fraco se um monarca ódio concebe,
Cose-o
e concentra, enquanto o não sacia.
Tu
me assegura." — "Afouto, brada Aquiles,
Vaticina. Por Febo, a Jove grato,
A
quem rogas e oráculos te ensina,
Nenhum,
desfrute eu vivo o térreo aspecto,
Nenhum
violentas mãos te porá, Calcas;
Nem
que seja Agamémnon, que entre Aquivos
De
mais prestante e augusto se ufaneia."
Anima-se
o bom velho: "Sacrifícios
Nem
votos pede Apolo; em nós o ultraje
Punindo
vai do Atrida, que ao ministro
O
livramento rejeitou da filha;
Nem
grave a dextra poupará castigos,
Se
não reverte a jovem de olhos pretos,
Sem
resgate ou presente, ao pai querido,
Remetendo-se
a Crisa uma hecatombe.
Com
isto por ventura o deus se aplaque."
O
áugur mal se abancava, o rei suberbo,
Senhor
pujante, merencório ergueu-se:
Raiva
as entranhas lhe intumesce e afuma,
Cintila
a vista em brasa; esguelha a Calcas
Tétrico
senho: "Desastroso vate,
Nunca
essa boca aprouve-me: o teu ponto
Ê
pregoar desditas; nem palavra
Nem
obra tens que preste. Agora os Dânaos,
Pena-os
Febo em vingança da retida
Criseida
em quem me inflamo, a quem pospunha
Clitemnestra
gentil que esposei virgem,
Que
não lhe cede em garbo, engenho e prendas.
Pois
mais convém, liberta a restituo;
Sadio
o anseio, não padeça o povo.
Mas
preparai-me um prémio; eu só dos Gregos
Dele
excluído ser não me é decente;
O
meu, testemunhais, me foi roubado."
Controverte
o Peleio: "Vanglorioso
Avidíssimo
Atrida, que outra paga
Exiges
dos magnânimos Aquivos?
Por
dividir ignoro onde haja espólio;
Partiu-se
o das cidades saqueadas;
Hoje
um novo sorteio é repugnante.
Ao
deus concede-a; recompensa triple
E
quádrupla terás, quando o Satúrnio
Derrocar
nos outorgue a excelsa Tróia."
Retorque
o rei: "Se és bravo, ó divo Aquiles,
Com
dolo e subterfúgios não me enganes;
Possuis
tua cativa, eu perco a minha;
E
impões que de perdê-la me contente?
Meu
peito satisfaçam de igual prenda
Os
liberais Aqueus; senão, teu prémio,
De
Ulisses ou de Ajax, trarei comigo:
Amargará
quem for. Sobrestejamos
Nisto
por ora. Ao pélago deitemos
Negra
nau bem remada, que transporte
A
hecatombe e Criseida esbelta e linda.
Um
dos cabos, Ajax, o egrégio Ulisses,
ídomeneu
comande-a, ou tu Pelídes,
Tremendíssimo
herói, para que Apolo
Nos
tentes granjear com sacrifícios."
"Ah!
como, o vulto fecha e estronda Aquiles,
Vulpina
alma sem pejo, a teus acenos
Há
quem marche a conflitos e emboscadas?
Não
vim bater os valorosos Teucros
Por
queixa pessoal; corcéis nem reses
Me
furtaram, nem agros destruíram
Da
altriz guerreira Ftia; entre nós muita
Serra
medeia opaca e o mar sonoro.
Viemos,
cão protervo, para em Tróia
A
Menelau e a ti lavar a nódoa.
Alardeias,
ingrato, e nos desprezas;
Audaz
cominas arrancar-me a escrava,
A
dádiva de Aqueus por tantas lidas.
Caia
llion famosa: embora o peso
Da
guerra em mim carregue, o mais opimo
Quinhão
terás; com pouco eu volte a bordo
Sem
boquejar, de choques fatigado.
A
Ftia me recolho e os meus navios,
Já
que aviltas a mão que de tesouros
A
fome te fartava: eu te abandono."
"Foge,
Agamémnon replicou-lhe, foge,
Se
é teu prazer; que fiques não te imploro:
E formam-me outros, e em Júpiter confio.
Dos
reis alunos dele és quem detesto;
Só
respiras discórdias, rixas, pugnas.
Tens
valor? agradece-lho. Os navios
Recolhe
e os teus; nos Mírmidões impera:
Não
te demoro; esse rancor desdenho.
Priva-me
de Criseida Febo Apolo:
Em
nau minha esquipada vou mandá-la.
À
tenda hei-de ir-te mesmo, eu to previno,
Tomar-te
a elegantíssima Briseida;
Sentirás
em poder como te excedo,
E
outrem se me antepor e ombrear trema."
Chameja
o herói, no hirsuto peito volve
Se
de ante o fémur desbainhe o estoque
E
por entre os Aqueus lho embeba todo,
Ou
se o furor no coração reprima.
Já
meia espada a cogitar sacava:
Eis
da alva Juno, que os escuda e preza,
Por
ordem Palas desce, e aos mais invisa,
Atrás
o aferra pela flava coma.
Volta-se
ele espantado e a reconhece
Pelo
medonho olhar, e sem demora:
"A
que vens ó do Egífero progénie?
A
assistir aos convícios de Agamémnon?
Pois
to declaro, e conto já fazê-lo,
Tem
de acabar a vida esse orgulhoso."
E
a deia olhicerúlea: "Vim, de acordo
Com
Juno albinitente, amiga de ambos,
Comedir-te
e amansar. Anda, em palavras
Tu
desabafa, a lâmina embainha.
Por
esta injúria, to predigo certo,
Inda
haverás em triplo insignes prémios.
Sê-nos
pois dócil, a paixão modera."
"Cumpre,
o fogoso torna-lhe, é cordura
Mesmo
irado curvar-me a tais preceitos:
Quem
se submete, os deuses mais o escutam."
Logo
a pesada mão no argênteo punho
Conteve,
encasa e esconde o gládio horrendo.
Ela
a Júpiter se ala e às mais deidades.
Não
deposto o furor, contra Agamémnon:
"Ébrio,
acérrimo Aquiles vocifera,
Cara
de perro e coração de cervo,
Nunca
te armas e à liça te abalanças,
Nunca
às ciladas os homens acompanhas:
Isso
te é morte. Em vasto acampamento,
Sim,
mais vale esbulhar os que te arrostam:
Cobardes
reges, vorador do povo;
Senão,
tanta insolência aqui findara.
Por
este ceptro juro, que estroncado
Jamais
rebentará, pois na montanha
Folhas
e casca cerceou-lhe o gume;
Por
este, que os Grajúgenas arvoram
Do
justo guarda e das leis divinas,
Juro,
Atrida, é solene o juramento,
Suspirarão
sem falta por Aquiles;
Nem
lhes serás de auxílio, quando em barda
Esse
Heitor homicida os vá segando.
Então
de raiva e nojo hás-de comer-te,
Porque
o maior dos Gregos rebaixaste."
Nisto,
arrojando o ceptro auricravado
Sentou-se. O Atrida em cólera abafava.
Nestor
Pílio intervém, de cuja língua
Doce
eloquência mais que o mel fluía.
Dos
falantes que, nados na alma Pilos,
Criaram-se
com ele, idades duas
Decorridas,
reinava na terceira.
Discreto
e afável, o discurso tece:
"Numes
eternos, oh! que luto à Grécia!
Oh!
que júbilo a Príamo e seus filhos!
Folgue
llio à nova de que assim litigam
Os de mor pulso e tino. Obedecei-me,
Sou
velho, ó moços. Tido em boa conta
Com melhores que vós me dava outrora.
\Varoes vi nunca, nem verei, qual Drias
Das
gentes regedor, Ceneu e Exádio,
Um Pirítoo, um divo Polifemo,
Teseu Egides a imortais parelho.
Outros como estes não nutria a terra:
Feros
pugnaram trucidando a feros
Montícolas
Centauros. Lá de Pilos,
Da
Ápia eu vinha rogado; conversava-os,
Quanto
era em mim nas lutas me exercia.
Ninguém
dos vivos de hoje os contrastara;
Atendiam
contudo os meus conselhos:
Atendê-los
vos praza. Ao mais estrénuo
Tu
não tomes dos nossos a só paga;
Nem
de ao rei contravir, Pelides, cures;
Dos
eleitos que Júpiter estima,
Ceptrígero
nenhum se lhe equipara:
Mãe
deusa te gerou, valor te sobra;
Tem
ele mais poder, que impera em muitos.
Eu
to suplico, Atrida, a fúria amaina,
Sê
brando para quem nesta árdua empresa
É
baluarte e escudo aos Gregos todos."
E
Agamémnon: "Com tento nos
falaste,
Recto
ancião. Primar quer sempre esse
homem,
Poderio
se arroga, e eu não lho sofro.
Se
os imortais invicto o constituíram,
Pcrmitcm-lhe
por isso os impropérios?"
"Fraco
eu seria e vil, o atalha Aquiles,
Sc
inda me sujeitasse: os mais o aturem;
Cesse
em mim teu domínio, eu to recuso.
Digo,
e na mente o grava: ao retomares
Meu
galardão, contigo nem com outrem
Pendência
travarei; mas não me toques
Al
do que encerro em leve bojo escuro.
Ousa-o:
que saberão como o defendo,
Como
em teu sangue impuro ensopo a lança."
Finda
a rixa, o congresso Aqueu dissolvem.
O
herói para seu bordo retirou-se,
A
escolta e o seu Menécio. Ao mar o
Atrida
Baixel
deita, e remeiros vinte elege;
Conduz
no embarque a nítida Criseida,
Mais
a hecatombe: sob o cauto Ulisses
Fendem
rápido as húmidas campinas,
Com
lustrações o exército Agamémnon
Expurga
e n’água a lavadura atiram;
Cabras
e touros cento a Febo ao longo
Do
inesgotável pego sacrificam:
Monta
ao céu pingue cheiro envolto em fumo.
Ali
mesmo efeitua o chefe Argivo
Sua
ameaça: dois arautos chama,
Taltíbio
e Euríbate, expeditos servos:
"Ide
ao Pelides e agarrai-me a escrava;
Aliás,
mais agro transe, à força aberta
A
formosa Briseida eu vou tirar-lha."
E
com ríspidas ordens os despede.
O
infrugífero mar cercando invitos,
Junto
ao real e à capitânia quedo,
Entre
os seus Mírmidões na praia o acharam:
Por
certo não gostou de os ver Aquiles.
De
assombro estacam, nem tugir se atrevem
Ante
o herói formidável, que o percebe:
"Salve,
núncios de Jove e dos guerreiros;
Sos,
não vos culpo, arautos. Agamémnon
Vo-lo
ordenou. Vai tu, celeste aluno,
Vai
por ela, Patroclo, e a moça levem.
Aos
mortais, ao rei sevo, às divindades,
:;
mo atesteis, se for mister meu braço
A
desviar dos outros a vergonha. . .
Que
furor cego! alheio do presente,
O porvir não prevê, nem como os Dânaos
Das
naus sem risco em derredor pelejem."
Da
tenda, à voz do amigo, traz Patroclo
E entrega-lhes Briseida fresca e bela,
Que os seguiu pesarosa à esquadra
Argiva.
Só, carpindo-se, Aquiles na espumante
Beira ficou-se; o ponto azul esguarda,
As palmas tende e à boa mãe recorre:
"De curta vida, ó Tétis, me pariste;
Sequer me engrandecesse o Altipotente;
Mas ele não me outorga a menor
glória.
Em
meu despeito o soberano Atrida
Arrebatou-me
o prémio e dele goza."
Ao
pé do anoso pai, lá no áqueo
fundo
Sentiu-lhe
o pranto a veneranda ninfa:
Da
salsa espuma, como névoa, surde;
Conchegada
ao Pelides lamentoso,
Com
mão fagueira consolando o anima:
"Choras?
que ânsia te aflige? Nada encubras,
Comunicame,
filho, as penas tuas."
Do
íntimo o celerípede suspira:
"Sabes;
que vai dizer-to? A sacra Tebas
De
Eetion depredada, o espólio todo
Arrecadou-se,
e em regra o dividimos :
Teve
o Atrida a pulquérrima Criseida.
Remir
a filha com riqueza imensa
Do
Longe-vibrador veio o ministro
Às
lestes naus de cobre encoiraçadas;
Nas
mãos facha Apolínea e o ceptro de ouro,
Roga
e aos dois potentados mais se abate:
Que,
em reverência ao cargo, se receba
O
esplêndido resgate, afio aprovam,
Menos
o Atrida, que o repulsa c afronta.
Parte
o velho indignado; e o deus que o ama
Dele
a instâncias, vibrou feral contágio,
De
que a gente em cardumes fenecia,
Pestíferas
as setas rechinando
Por
todo o exército. Eminente vate
O
oráculo solveu-nos; c eu primeiro,
A
apaziguar o nume exorto os sócios.
Furente ergue-se o rei, minaz fulmina,
E
não debalde; que olhi-espertos gregos
Em
ágil nau Criseida reconduzem
Com
pios dons, e arautos mesmo agora
Do
pavilhão transferem-me a donzela
Que
os Dânaos me doaram. Tu, que o podes,
Socorre
o filho, ao grã Tonante ascende;
Se
o já serviste com palavras e obras,
Hoje
o depreca. A mim, no pátrio alvergu«,
De
única blasonavas que entre os deuses
Preservaste
o nubícogo Satúrnio
Do
feio opróbrio, quando, à frente a esposa
E
Minerva e Neptuno, o encadearam:
Mas
tu, madre, lhe acorres e o desprendes,
Convocas
em auxílio o Centimano,
Que
é nos céus Briareu, na terra Egéon.
Mais
robusto que o pai, da honra altivo,
De
Jove a par se teve, e de assustados
Os
imortais do empenho desistiram.
Recorda-lhe
isto, abraça-Ihe os joelhos:
Que
ajudar queira os Troas; que os Aquivos,
Té
às popas e ao mar cerrados, paguem
Por
seu tirano e a maldizê-lo expirem.
O
amplo-dominador confesse a culpa
De
insultar o fortíssimo dos gregos."
E
em lágrimas a deia: "Ai! filho, como
Te
amamentei gerado em hora infausta?
Oh!
se de mágoa ileso a bordo fosses!
Urge-te
a Parca, e mais que todos penas:
Malfadado
nasceste em régios paços.
Em
paz, nas prestes naus, teu ódio ceves;
Que
hei-de ao nevoso Olimpo ir ver se dobro
Quem
se deleita com trovões e raios.
Ele
e sua corte, às abas do Oceano,
De
inocentes Etíopes desd’ontem
A
mesa logram. No dozeno dia,
Ao
voltar à mansão de aénea base,
Revolvida
a seus pés tocá-lo espero."
Nisto,
sumiu-se-lhe e o deixou raivando
De
o desfalcarem da mulher garbosa.
De
Crisa em funda barra entrava Ulisses.
Ferram-se
as velas, no atro bojo as metem;
Enxárcias
afrouxando, o mastro arreiam;
A
remo aportam, a âncora seguram,
E atadas as rajeiras, desembarcam;
Pós
a hecatombe do arci-argênteo Febo,
Da
sulcadora nau saiu Criseida.
No
altar o sábio Ulisses a apresenta,
Vira-se
ao pai querido: "Aqui mandou-me,
Crises,
o rei dos reis trazer-te a virgem
E
estas cem reses com que o deus mitigues
Que
em dores nos soçobra."
Alvoroçado
O
velho ao peito ansioso aperta a filha.
A
perfeita hecatombe então colocam
Em
torno da ara; e, os dedos já lavados,
Pegam
do salso bolo. O sacerdote
Orando
eleva as palmas: "Se a meus
rogos,
De
Ténedos senhor, ó tu que amparas
Crisa
e a divina Cila, em desagravo
O
campo Argeu feriste, hoje me escuta,
Remove
a peste que devora os Dânaos."
Febo
o escutou. Completa a rogativa,
Esparso
o farro, à vítima o pescoço
Vergam
atrás, e degolada a esfolam;
Cérceas
as coxas, no redenho envoltas,
Cobrem-nas
vivas postas. Ao tostá-las
Crises
na lenha tinto baço asperge:
Quinquedentado
espeto lhe sustinha
Cada
servente. Provam-se as fressuras,
Já
combustas as coxas, e em tassalhos
A
mais carne enroscada assam peritos,
E
a obra é feita. Apronta-se o
convívio:
Ninguém
do seu quinhão queixar-se pôde.
Exausta
a sede e a fome, das crateras
Coroadas
almo vinho os moços vertem;
Cada
qual auspicando os copos liba.
Por
captarem favor, o dia inteiro
Jovens
Dânaos entoam ledo péan,
E
seus cantos o deus regozijavam.
Cedendo
o sol à treva, ao pé repousam
Do
amarrado navio, e assim que alveja
A
aurora dedirrósea, o porto largam.
Erecto
o mastro, as pandas brancas velas
A
brisa enfuna que o certeiro Apolo
Bafeja,
e a ressoar cerúlea vaga
Do
buço em derredor, cortava a quilha
O páramo salobre. No abordarem
O
arraial dos Aqueus, varado em seco
Sobre
longos roihões o bruno casco,
Por
tendas e outras naus se repartiram.
Sempre
enfadado nos baixéis, o ardente
Generoso
Pelides na assembleia
De
heróis não comparece ou nas batalhas;
Do
ócio porém seu coração ralado,
Almeja
o alarma e pela guerra brame.
Ao
duodécimo dia, à casa etérea,
Em
testa Jove, os numes se encaminham.
Dos
mares Tétis, sem que olvide o filho,
Surgindo
matutina, ali se alteia;
Semoto
encontra o providente Padre
No
fastígio do Olimpo cumioso;
Pára,
da sestra prende-lhe os joelhos,
Da
dextra o mento afaga, e assim lhe implora:
"Se
entre imortais, senhor, te fui profícua
Por
dito e acção, preenche-me este voto:
Orna
a meu filho a vida, já que é breve;
Que
o rei possante o assuberbou de insultos
E retém-íhe o só prémio. Glorifica-o,
Ó
pai celeste; aos Frígios dá vitória,
Té
que de honras os Dânaos o acumulem."
O
anuviador calou-se, e ela mais insta:
"Pois
que receias? ou concede ou nega;
Que
a deusa ínfima sou prove-se agora."
Do
imo geme o Tonante: "É mau que
incites
A
com seus ralhos molestar-me Juno,
One,
assídua em me aturdir perante os numes,
Desses
Troianos parcial me acusa.
Vai-te,
ela não te enxergue. A mim o tomo:
Do
certíssimo aceno entre as deidades,
Selo
à minha promessa
irrevogável."
Então
franze as cerúleas sobrancelhas,
Da
cabeça imortal sacode a coma,
E
estremece abalado o imenso Olimpo.
Obtido
o fim, do éter puro Tétis
Pula
ao mar, e o Satúrnio à régia passa.
Nenhum
dos deuses o esperou sentado;
Vão
respeitosos cortejá-lo todos.
Ele
entronou-se; e Juno, que aventara
Da
Nereida argentípede o segredo,
Assaltando
o invectiva: "Quem, doloso,
Fora
de mim se conluiou contigo ?
Sempre
agradam-te ajustes clandestinos;
Nunca
um só pensamento me descobres."
E
o rei supremo: "Em penetrar não
cuides
Arcanos
meus; esposa embora sejas,
Penosos
te serão. Nem deus nem homem
Quanto
ouvir devas me ouvirá primeiro;
Mas
o que a parte no ânimo concebo,
Não
mo perguntes, nem mo inquiras, Juno."
A
augusta irmã contesta: "Que
proferes?
Jamais
pergunto nem te inquiro nada;
A
teu sabor tranquilo deliberas.
Mas
temo te seduza, ó cru Satúrnio,
A
branca filha do marinho velho:
Madrugou-te
abraçando-te os joelhos;
E
suspeito anuíste a que ante a frota
Sucumbam
Dânaos por amor de Aquiles."
Redargui
o que as nuvens amontoa:
"Ruim
maliciosa, eu não te escapo;
No
desagrado meu com isso incorres.
Trago
pior terás; que lucro esperas?
Se
é verdade o que dizes, foi meu gosto.
Não
mais, submissa em teu lugar sossega:
Se
as mãos te calmo invictas, pouco importa
Que
te acudam do pólo os moradores."
A
olhitáurea, tremente e silenciosa,
Volve
a seu posto, na alma a dor sopeia;
Os
demais carregaram-se tristonhos.
Por
consolar a bracinívea madre,
Vulcano
ínclito fabro assim começa:
"É
praga intolerável que aos Supremos
Questões
humanas alvoroto excitem;
Se
o mal grassa, os festins seu preço perdem,
À mãe discreta aviso a que amacie
Meu
pai dilecto; a repreensão de novo
Não
nos turbe as delícias do banquete,
Pois,
se tal se lhe antoja, o Omnipotente
Destes
assentos nos derriba a todos.
Sim,
com ternos obséquios o acarinhes;
Plácido
ele nos seja." E em tom mais
baixo,
Duplicôncava
taça, erguido, oferta:
"Paciente,
cara mãe, sufoca o anojo;
Estes
olhos batida ah! não te vejam.
Meu
zelo e meu pesar que prestariam?
Contra
o fulminador árduo é lutarmos
No
acorrer-te uma vez, do pé travado,
Precipitou-me
do limiar divino.
Toda
a noite rolei na imensidade;
A
Lemnos, posto o Sol, fui ter exânime,
Ei
os Síntios ao cair me agasalharam."
Sorrindo,
a clara deia o copo aceita.
Pela
dextra em redor, seu filho aos numes
Da
cratera entornava o doce néctar.
Os
beatos celícolas romperam
Numa
infinita cachinada, quando
Vulcano
a escancear se azafamava.
É
já tarde, e regalam-se os convivas
De
iguais porções de opíparos manjares.
Lange
na lira Apolo, e as Musas cantam
Com
suave cadência e melodia.
Dês
que a diurna luz desaparece,
Desencostados,
cada qual procura
Seu
domicílio no esplendente alcáçar,
Do
coxo mestre fábrica estupenda.
O
fulgurante Olímpio ao toro sobe,
Onde
usa o meigo sono acometê-lo;
Dorme-lhe
em braços a auritrónia Juno.
[Canto I ]
[ Canto II] [Canto III]
[Canto IV]
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