DEVE SER O VERÃO

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas, Memórias        

Nei Duclós

Vamos para a praia, nos dizia o pai na hora mais forte do calor, aí pelas três da tarde. Descíamos em disparada os dois quarteirões que nos afastavam o rio e caíamos na água. Era difícil entrar, porque as pedras do fundo, barrento, nos impunham cautela em cada passo. Água pelo peito os mais velhos, pela cintura a meninada. As mulheres mais velhas, água pela canela. As mais moças, dificilmente iam. Era programa de criança.

Quando crescemos e adquirimos confiança suficiente para ir sem acompanhamento dos adultos, preferíamos a prainha embaixo da ponte, que tinha uma vantagem, dava também para pescar piavas, os peixes corredores, e uma desvantagem, havia muito óleo boiando, resultado do comércio e do transporte gerados pela destilaria.

NADO LIVRE- Meu pai tentava me ensinar, em vão, a nadar. Não tinha paciência para professor e cada orientação era uma ordem que meu corpo não obedecia. Afundava toda vida. Rio correntoso, era difícil ficar à vontade naquelas águas. Admirava a capacidade que meu pai tinha de boiar, o que fazia com o maior desplante do mundo, colocando as mãos por trás da cabeça e fazendo aparecer a ponta dos pés para dizer que não estava pisando no fundo, ou seja, que não havia truque e essa era sua especialidade.

Só quando aos nove anos conheci o mar entendi o segredo o equilíbrio, porque a água leve e salgada me fazia flutuar e a onda servia de incentivo para eu dar as primeiras braçadas. Quando voltei para o rio naquele verão quis saber se o truque funcionava. Deu certo. Mas no rio aprendi apenas o nado livre, o popular nado que te deixa com a cabeça de fora, olhando tudo, pois em rio de muito imprevisto é preciso ficar atento.

Só na piscina pude desenvolver o nado cego, aquele em que você solta o ar pelo nariz dentro da água e adquire um ritmo de competição. A distância da piscina era 25 metros e eu não parava enquanto não chegava aos mil metros, coisa que me deixava completamente mareado, mas naquela época eu acreditava em exercício. Hoje sou como os índios, que gostavam mesmo era de ficar na rede. Nada mais natural.

VENTOS – Depois de um ano frio, nublado, chuvoso e ventoso, o verão começa a dar as caras e com ele a volta do povo inseto. É a aglomeração compulsiva de todos os espaços. O trânsito é feito de carros, caminhões, ônibus, pedestres, bicicletas, motos, tudo junto, ao mesmo tempo. Dá-se ré na estrada que virou avenida. Uma pequena curva para fazer a manobra é completamente tomada por adolescentes em convescote. Você desvia do carro apressado e tem que cuidar o ciclista. A preferencial é onde cada um anda.

Não se trata de regras, mas de vontade. Cruzam-se os espaços na maior sem cerimônia e fique atento se a placa do seu carro não é local. Mas o verão de dia claro e quente, com uma leve brisa, é sempre um acontecimento. De manhã, as ondas fazem repuxo e redemoinho e um mergulho sempre implica um esforço de se manter perto da praia. Mais tarde, o mar fica mais amigável e te banha sem pedir pedágio.

Mas pode haver um caranguejo de tocaia, uma concha afiada, um bicho qualquer que gruda no calcanhar. Bem na beirinha, é o momento de se deixar levar pela onda que finda e volta para brincar mais até o quebra-mar. É quando você fica à mercê desse deus travesso, a divindade sem fim azul e gigantesca, que se mostra cor de chumbo todo o inverno e que agora torna-se transparente como alma de anjo. Lembro o tempo que fiquei longe daqui. Parece um outro mundo, em que as ruas nunca acabam na praia.

VIAGEM – Conheci poucos lugares que possuem o mar como companhia. Viajei quase nada e nunca fui à Bahia ou ao Nordeste. Jamais peguei um avião para Mar Del Plata e desconheço outra identidade que não o Atlântico. Preso no país continental, numa parte mínima dele, o vasto espaço que disponho do Brasil soberano me basta, porque viagem para mim é mudança radical e o pouco que me desloquei serviu para transformar minha cabeça.

Quando viajo, vou duas horas antes para a rodoviária ou aeroporto e ninguém agüenta esperar comigo. Sou um habitante da espera, coisa ensinada por minha mãe, que não queria nunca perder o horário da partida. Talvez seja uma resistência à viagem, vontade de ficar, de voltar logo. Talvez. Mas toda partida tem uma recompensa: a paisagem muda e o coração se transporta para longe das amarras. Assim como você entra no mar: tudo se descarrega e você volta habitado pelos esplendores do verão.

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