LUA, VÉSPERA DE PRAIA

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

No horizonte, à esquerda, massa compacta de nuvens nos lembra o quanto choveu nesta primavera. Mas acima do teto, fiapos de algodão são incendiados pela lua quase cheia. As estrelas são diamantes fixos e espaçados, que o perfil de uma menina transparente, alta como o céu, recolhe numa cesta de vime. O lento rolar das pequenas nuvens fazem uma das estrelas vagar como um asteróide, um satélite, uma nave. Depois, na alta madrugada, saio para ver o cachorro que late. A luz intensa debate-se na varanda. Tudo está quieto no território das corujas. O manto quase azul promete mar na manhã seguinte. Amanheço acordado na vasta faixa de areia e lá está mar, claro, manso, tépido. Ao longe, contei 18 barcos de pesca, em prontidão diante dos cardumes. Tudo começa a fazer sentido depois de tanto inverno, tanta luta e tanta certeza de não pertencer a nada, a não ser a esta paisagem nem sempre amável, mas que sabe mostrar seus encantos quando o mesmo equilíbrio que mantém a lua no céu espalha-se pelos morros verdes.

LUGAR – Não pertenço à literatura, ocupada por tantos luminares. Não pertenço à política, com tanta gente se manifestando. Não pertenço ao sul ou ao norte, exilado do ambiente que me encara. Não pertenço às gentes, migrante eterno no país em obras. Não pertenço à rede, cheia de tudo e todos. Nenhuma profissão me comove, a não ser esse ofício com palavras, gratuito como um pedaço de pão abandonado. Não pertenço aos sonhos que se realizam, quando então emergem as caras satisfeitas dos bem resolvidos. Nem aos pesadelos definidos em bastidores escuros.

Dizem que o planeta está mais quente, mas só vi frio nos últimos meses. Que existe seca, mas a água não parou de correr. Não faço parte da metereologia, do noticiário, dos rankings, das opiniões, das posições, dos esgares, dos luxos e das misérias. Alguém me fala como fui há tempos e não me reconheço. Nada sei de mim e minha biografia, se é que existe uma. Pertenço apenas à memória e ao presente pontuado de dias e noites. Tardes que se derramam de potes imaginários, amargos momentos de desesperança, vestes gastas, cabeça em frangalhos. Textos crônicos que me servem de sentinela. Acenos, raros, na multidão com pressa.

Pertenço àquela calçada varrida pelas mulheres antigas, pela terra lavada de chuva, pelo rio que desce e sobe conforme a estação que se avizinha. Faço parte desse território sem história, o­nde medra o capim ralo, a flor precária, a vida escassa. Estou por toda a parte porque nenhum lugar me recebe.

POESIA – Não há crédito, há nação de menos, há medo demais. Desfilamos diante do nada como cidadãos sem rosto. Mas há poesia quando a criança se deslumbra com o vôo das gaivotas. Há o poema, que vem em socorro do que perdemos. Há livros que chegam, companheiros de uma viagem absurda. Algumas mensagens, sinais de vida longa, que jamais se cumpre. Quem somos nós, criaturas que Deus acolhe em seu regaço e atende súplicas e preces para continuar o caminho? Não fazemos parte do calendário, nem dos eventos, nem das homenagens. Passamos pela terra como o vento. O tempo enfim se mostra, com seu acervo de possibilidades. Colocamos a couraça e vamos para o trabalho. Lá, desistimos de ser o que plantamos. Viramos espigas ao sol, que deita sementes sem nenhuma proteção.

Códigos passam em vão por nossas mãos em brasa. Ninguém nos conhece, nós que arrumamos espaço nestes dois séculos que nos tingem de algo jamais decifrado. Vivo o minuto como quem recebe uma bênção. Há barulho de cascos, espadas retinindo em noite de lua quase cheia. O cachorro late para o infinito. Abro a porta e vejo. Deus está atento e dorme. O luar é seu espelho. Quando some, o mar assoma sua imensidão sagrada. Mergulho contra a o­nda e o corpo se move. Volto como um filho à casa materna que nos recolhe.

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