O BRILHO DAS ÁRVORES

dez 12th, 2009 | Por | Categoria: Contos, Crônicas        

Nei Duclós

Tanto para ser dito ainda, no ano findo. Por mais que escreva, mais coisa fica. Devemos nos entregar às evidências da mídia, sapatos que voam, morros que desandam, ou procurar o sinal humano afogado entre malandros e facínoras? Ninguém permite a ascensão desse surdo escoar de gritos. Está estabelecido, há séculos, o enterro explícito do que um dia foi poema e hoje é produto. Quites com a dívida, o fisco, resta o escândalo de permanecer mudo. É a morte prematura da palavra nua, a que vem ao mundo para soar no templo, e que acaba confinada ao feno apodrecido.

Do estábulo vemos a rua coberta de lances obscuros. Balbuciamos uma nova língua, mas só os bichos escutam. As pessoas se transformaram em mercadorias. Não há como escapar, dizem, nem mesmo o talento que afias diariamente, nem mesmo o sonho de acordar dessa loucura. Deves te ordenar na comunhão dos aflitos, enquanto envelhecem os bandidos e seus tesouros acumulados. Nenhum franco atirador postado na torre da capela, para mantê-los à distância, enquanto resistimos.

O escritor também é omisso. Permanece oculto, teclado entre víboras. Não pode apartar a briga pelo butim, nem encaminhar a mocidade, amarrada aos pés da violência e o desatino. Não é um líder. Faz parte da paisagem tomada pelo lixo, como os andarilhos, os bêbados comuns. Ele olha, pela vitrine, o bom mocismo dos escribas de aluguel fazendo conferências. Inclusive os transgressores, esses cabelos revoltos, esses andrajos medidos, essas expressões de falsa fúria, esses livros descartáveis e pífios, premiados em todas as instâncias.

O escritor faz parte do trigo, o que foi reservado num pequeno galpão do instituto de pesquisa. É um exemplar das sementes não modificadas, guardadas mais por curiosidade científica do que por esperança de que, no futuro, vençam a partida. Ao lado do grão, o escritor faz o balanço. Perde a conta do tempo escoado pela trilha. Seleciona os momentos em que esteve perto da literatura: foi quando, despido, enfrentou voragem e frio.

Agora, o que fazer com tanto trabalho guardado na pele, nos ombros, nos bolsos furados? Onde guardar a poesia que sobra em seu embornal? O linho do amor cobre seu rosto ainda vivo, enquanto o olhar se atira, aprendiz de sonhos, confessor de mendigos. O escritor esquece o que guardou para se jogar de novo na aventura da criação, a que é dita por compulsão e herança, e que se projeta como um míssil desgovernado espaço afora, em busca de um planeta solto sem estrela.

Lá, nesse território íntimo, ele exercita mais um gesto do espírito que não se entrega, mesmo sendo vítima de armadilhas. Foi levado para golpes de vista, apontamentos brutos, páginas de brita. Mas voltou e colabora com os feixes de luz do sol que inaugura, mais uma vez, a pesca sobre escombros, as pombas entre pálidos lampiões, as luas feridas. Um lápis sem ponta, um vídeo riscado, uma conexão tosca. Ei-lo de volta, o anunciador de espinhos, baú de murmúrios.

Tanto por dizer no ano que finda. Tanto para escrever, com a insistência das denúncias, até a demência absoluta. Recolham as palavras no campo recém lavado. Elas brilham nas árvores, como os pingos depois da chuva.

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