OS LIMITES DO HUMANO SÃO A SUA TRANSCENDÊNCIA

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Não existe nada mais datado e morto do que enxergar-se como a coisinha de Jesus que todos precisam admirar. Dostoievski e Kafka atingiram a permanência ao compor uma literatura que devassa nosso esqueleto. Pode ser que apenas repassaram para a literatura o que a ciência estava descobrindo, mas com isso deram a chave para virar de pernas para o ar a pressão conservadora de olharmos admirados nossos eleitos (nesta época de comodistas de traseiros presos, nós mesmos). Esses autores destituíram a humanidade do pedestal que costuma refazer-se em cada geração, já que somos tabula rasa e precisamos de um esforço supremo para alcançar o mesmo patamar de gerações anteriores, e só depois disso tentar superá-las.

Claro que inverteram tudo: a desconstrução dos mitos cristalizou-se. Agora o espírito conservador cinzelou em mármore o que ele entende por modernidade e lá vamos nós de novo em regressão absoluta. Só se atinge a transcendência com a visão clara dos nossos limites. Não adianta perguntar ao espelho viciado em você quem é o rei da cocada preta, que ele responderá o óbvio. O truque é mirar-se na diferença e pela diferença sintonizar-se com o Outro. Esse encontro só é possível se definirmos os contornos do humano que habita em nós.

Transcender não significa ser aplaudido, mas habitar uma das moradas eternas (algumas delas são invisíveis). Também não implica auto-esculacho, que no fundo é pura vaidade, isca para o reconhecimento alheio, que se for puxa-saco o suficiente, irá discordar, a não ser que você viva no Brasil.

Aqui, toda autocrítica é levada a sério. Nunca diga, nem murmurando: como sou idiota! Todos irão sacudir afirmativamente a cabeça. Você é mesmo esse asno auto-punitivo. Definir os limites não é dito aqui no sentido pedagógico-babaca do termo: precisa dar limite para esta criança! Falo em descobrir os contornos, saber onde nos identificamos, onde está a fronteira que nos revela, e não a escassez que nos flagela.

Quem somos nós? Não sabemos. Mas podemos vislumbrar alguma coisa se identificarmos onde estão as linhas que nos fazem reais. Por exemplo: não sei perguntar, ou não sei dar a resposta a adequada, ou jamais saltarei de para-quedas, ou subir montanha é para espécimes caprinas peludas. Não sou pintor, mas desenhista, diz Rodolfo Mesquita na entrevista a Urariano Mota. Aí você decide: Mesquita é um tremendo de um artista, um desenhista único, um pintor magnífico. Ou não. Mas veio dele algo que o define.

Ele sempre parte do desenho. Isso não é uma radiografia, um insumo para a crítica de arte, mas exatamente a ação de definir os contornos do humano para atingir a transcendência. Não que ele queira atingir, mas chega lá porque deixou-se levar pela sua natureza, pela transparência com que se enxerga, pela maneira tranqüila de se auto-definir.

Vamos pegar outros exemplos. José Sarney se coloca como o grande pacificador, o reinventor da democracia no Brasil. Será lembrado como o presidente da Arena que consolidou o regime de 64. Lula diz que nunca houve um presidente como ele. Pode ser uma profecia, mas não muito obediente ao profeta. FHC enche de elogios o grande assassino Henry Kissinger (conforme denúncias, o sinistro mandatário do golpe chileno de 1973; foi também Nobel da Paz por pacificar, quá quá quá, o Oriente Médio). FHC será lembrado como o grande pulha que entregou de bandeja o país à sanha estrangeira em troca de alguns títulos de Honoris Causa (certamente não foi só esse o pagamento). Uma biografia não funciona se o objetivo for jogar confete no biografado.

Samuel Wainer entendia do riscado e passou o encargo da sua autobiografia para o competentíssimo Augusto Nunes, que fez um primor de texto, sem trair o jeitão do velho Samuel de contar uma história. Samuel fazia auto-crítica, me olhando debaixo daquelas grossas sobrancelhas brancas. Era um repórter de si mesmo.

Um escritor de verdade está sempre armado de um punhal, não apenas para cortar as abobrinhas, mas porque tem um encontro com a morte. Ele está preparado diante da ameaça fatal da obra morta ao nascer. Ele vive da superação, de seu livro sobreviver a ele mesmo. Poucos conseguem. Nascemos para virar pó do esquecimento. Mas, às vezes, um anjo nos visita.

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