OS SETE PILARES DA POESIA

maio 23rd, 2005 | Por | Categoria: Livros        

Nei Duclós

Marco Celso diz a que veio quando anuncia um assassinato: “Vou matar este poema com uma faca de trinchar,/ dividi-lo ao meio como um figo/ expor seu ventre hediondo ao público.” Diz o que faz quando define o fruto que lhe sai das mãos: “Ele é um furo no escuro, um buraco cinza.” Ou quando faz sua advertência de profeta irado: “Ele ficou incompleto/ estou amassando-o e dissecando-o para que nenhum leitor o devore com facilidade.” Mas, além de se entregar à própria contundência, mostra sua doçura ao falar da origem dos poetas: “Eles são de outro mundo, de outros mundos/ eles caem aqui como estrelas cadentes.” Quem são eles? “Conversam com seres que ninguém vê/ e ainda olham para a lua, para a lua!” Esses dois momentos estão na parte intitulada Poemas e poetas que dormiam na estante, um dos sete compartimentos em que ele dividiu Poemas para ler em voz alta (Office Editora, 136 págs., R$ 18), obra de estréia tardia. Junto com os outros, compõe uma sabedoria única, cevada no mais profundo segredo, pois Marco Celso é da estirpe dos poetas que se retiram porque não suportam a vala comum em que sempre transformaram a poesia.

Seu trabalho nasceu no final dos anos 60, quando ainda menino, antes dos 20 anos, tornou-se um deserdado dos movimentos políticos estudantis e abriu caminho próprio, expondo poemas na praça e publicando um livro mimeografado que tinha como título uma profecia: Tombam os primeiros homens nos trigais. Tive o privilégio de participar com Celso desse movimento, precursor em todos os sentidos, da geração mimeógrafo, detectado só nos anos 70 pela universidade, assim mesmo confinado ao centro do país e não à Porto Alegre que explodiu em 1968 e provou o sal do exílio precoce já em 1969, época da exposição na praça.

Mas não é a esse passado que Marco Celso se reporta (apesar de dar seu recado sobre a exclusão na orelha do livro que custeou do próprio bolso). O livro não é importante, avisa, o importante é a sua razão de ser. Sobre isso é que nos debruçamos. No primeiro pilar, Quase canções, o leitor conhece os sinais mais expostos desse terremoto poético, escutando coisas como: “Já fui frade, rabino, santo, imã/ um pecador e tanto e tive tato/ com todos os sentidos/ babei um tanto, comi rato e fugi da peste.” No que se transformou essa criatura? “Sou artista, burlesco, saltimbanco/ saltinvento,/ saltimento, pinto todo/ o muro branco.” Grafiteiro de uma revolução, o poeta celebra o pão (“a saga que perseguimos/ onde somos/ os únicos heróis”) e o amor, que “é tão completo que até o mal dele necessita para ser amado/ é desta matéria incombustível que arde em nós, que somos compostos/ e não há fogo, água, não há mágoa que o detenha”. De amor é feito o poeta: “Hoje é um bom dia para morrer de amor por ti e nada mais”.

Depois desse impacto inicial, que ocupa metade do livro e apresenta o poeta em toda a sua lúcida demência, um Intervalo sugere o dimensionamento emocionado das perdas, especialmente daqueles que se foram por terem voz e que foram calados. Os ossos do amigo morto servem para se referir à “tua mulher que nunca te esqueceu e que ainda te chama baixinho”. A música da sua poesia tem ligamentos profundos, tornando-se inútil separá-la em versos, porque nos surpreende pela composição soberba, pela grandeza sinfônica com que fala da morte e do esquecimento, essas coisas duras demais para a poesia de hoje, que mais parece jogo de armar do que o instrumento cortante de que se serve Marco Celso.

Mas o poeta não foge da herança poética e dedica uma das partes a um exercício lúdico: Atirando sonetos italianos na parede, onde fala em faces roubadas que não nos pertencem e na do tempo e seu colar de ossos, do amor desesperado que é confundido com amizade ou do amor perfeito que reina acima de tudo o que é e considerado essencial. Os Hai-Kais também merecem sua atenção de poeta múltiplo, onde é possível tecer com a linha do horizonte, construir a casa na asa do pássaro e saber que um único mantra entoa tudo o que existe. No capítulo seguinte, já citado, ele se dedica a interagir com alguns poetas, como Lorca, Pessoa, Bandeira, Drummond. Desde muito cedo, Marco Celso gostava de implicar com os mestres, numa afirmação de identidade que tinha tudo de adolescente e que nesta obra revela a maturidade do poeta que assume a vanguarda sem se entregar a vanguardismos.

Em Armações, Celso novamente nos deslumbra com o ritmo que consegue captar na arte popular (no rap, por exemplo), nas quadrinhas e nos temas como a beleza, que aqui são virados de cabeça para baixo. O sétimo pilar é Para ler em silêncio: nele, a profunda percepção do mito encarnado por palavras e letras é um fecho de sabedoria cifrada, que ele traz à luz como um predestinado. Marco Celso tem esse perfil: o poeta que todos apostaram que já tinho ido embora, mas quando surge nos diz que sempre esteve conosco e traz a boa nova da poesia sem máscara, a que tem o dom do encantamento e a força da vocação que jamais pode ser negada.

Deixar comentário