O TRÁFICO DE ESCRAVOS – D. JOÃO VI NO BRASIL – OLIVEIRA LIMA

D. JOÃO VI NO BRASIL – OLIVEIRA LIMA

CAPÍTULO XO TRÁFICO DE ESCRAVOS

Além de estatuir a interdição da Inquisição, o tratado de
paz e ami­zade de
1810 abordava outra matéria de moral pública tanto quanto de administração. Com o artigo X encetava com efeito a
Grã-Bretanha a sua longa e perseverante campanha de quase meio século em favor
da aboli­ção do tráfico de escravos. Por esse artigo, dizendo-se
"convencido da in­justiça e má política do comércio de escravos", o
príncipe regente de Por­tugal comprometia-se a coadjuvar os filantrópicos esforços britânicos,
co­meçando por
proibir desde logo aos seus súditos o tráfico fora dos seus próprios domínios africanos.

A promessa portuguesa daria posteriormente pretexto a
intervenções indébitas
da Inglaterra na economia nacional, sendo tão pouco cumprida pelo governo do Rio de Janeiro
quanto, pelo de Londres, o compromisso contraído por um artigo secreto do tratado, de prestar
seu eficaz apoio para
serem restabelecidos "os antigos limites da América Portuguesa pelo lado de Caiena, no sentido dado
constantemente pela coroa portuguesa às
cláusulas, relativas a esse assunto, do tratado de Utrecht".

Tão pouco de harmonia estavam porém em Dom João VI seus senti­mentos e responsabilidades de
governante com essa imposta orientação abolicionista que, segundo escrevia o cônsul Maler,280
era aquele um as­sunto
que o príncipe discutia sempre com calor (avec feu), "desenvolven­do com força e abundância todas
as razões e motivos que o prendiam a tal comércio, o qual representava e considerava sempre
como indispensá­vel
à prosperidade das suas colônias e mormente à deste vasto continen­te". Mais de uma vez aliás
manifestou o representante da França idêntica impressão.

A 30 de dezembro de 1817 comunicava que o rei tinha a peito a conti­nuação do tráfico, certamente por
julgá-lo necessário à economia brasileira, contando poder obter novas
prorrogações do prazo para sua expira­ção por intermédio da corte da Áustria, à qual mais
intimamente acabava de ligar-se pelo enlace do herdeiro da coroa. Era o único
lado que se lhe antolhava
um recurso possível, pois que o rei da França, em carta de 24 de novembro de 1818, instava com
"seu bom irmão e primo" para con­cluir a obra liberal a que anuíra em
dar início em 1810 e incremento em 1815, decretando de uma vez a abolição do
tráfico, cujo princípio já fora proclamado. Mais tarde, em resultado das deliberações do
Congresso de Aix-la-Chapelle,
os outros soberanos da Santa Aliança escreveram no mes­mo sentido ao rei de Portugal, Brasil e Algarves.281

Sobre
a escravatura não tinham contudo ficado limitadas à promessa contida no tratado de 1810 as
providências tomadas durante o reinado de Dom João VI. A 24 de novembro de 1813 um alvará datado da fazenda de Santa Cruz e referendado por
Galvêas, ao mesmo tempo que justifica­va a necessidade para o trabalho da continuada
importação de braços afri­canos, sobretudo por causa da falta de população, descrevia as práticas desumanas do tráfico e
determinava uma série de medidas tendentes a mi­norar a crueldade no tratamento dos escravos.
Versavam as diferentes no­vas disposições sobre a lotação dos navios negreiros "na razão de
cinco negros por cada duas toneladas"; quantidade e qualidade da
alimentação distribuída, compreendendo feijão, arroz, milho, mendubi, peixe e
carne seca, tudo
preparado em caldeirões de ferro e não de cobre; asseio da em­barcação;
obrigação de uma enfermaria e um cirurgião a bordo, dando-se prêmios
pecuniários aos navios em que fosse diminuta a mortalidade, ve­rificada pelo livro de carga em
que se iriam consignando os óbitos ou des­cargas; abolição das marcas com ferro quente; precauções
contra molés­tias contagiosas e conveniência de um lazareto para isolar os
negros que chegassem enfermos.

Os melhoramentos assim introduzidos no transporte dos
negros da Mina e
Moçambique para o Brasil foram em grande parte devidos à pres­são das denúncias e do alarido
(sic
na correspondência de Funchal) que no Parlamento Britânico promoviam
os defensores da abolição da escra­vatura. Lord Castlereagh ameaçou mesmo o embaixador
português de que na
Colônia do Cabo da Boa Esperança seriam de então em diante nega­dos todos os socorros aos navios
que, partindo da costa oriental e haven­do amontoado sem piedade nos seus
porões a mercadoria negra, ali arri­bassem fiados no auxílio britânico para consertar suas
avarias e prosse­guir seu rumo. Funchal, ao transmitir esta admoestação,
ajuntava de sua lavra: "A religião e a piedade de S. A. R. bem merecem por
si sós e sem influência estrangeira uma Investigação de motu próprio, para
remediar o mal se
necessário. Também da mesma sorte e de inteligência com os In­teressados e sem aparência de
tributo para lucrar, mas antes para dimi­nuir, podia estabelecer-se a imposição sobre os escravos
de luxo ou urbanos."282

Dadas as disposições inglesas, era óbvio que no Congresso
de Viena a questão do tráfico se agitaria. Em 1814 a Câmara dos Lords dirigira
um memorial ao príncipe regente da Grã-Bretanha, pedindo-lhe que, na paci­ficação geral iminente,
interviesse com as demais potências a fim de se extinguir o comércio da escravatura. Ao fazer a
moção, lord Grenville referira-se
extensamente ao Brasil, incitando o governo a forçar a corte do Rio a abolir
semelhante comércio nos domínios portugueses; ao que no seu dizer davam direito
os recentes serviços prestados pela Inglaterra a Portugal, os quais entretanto já tinham na
verdade sido bem reciproca­dos de fato e
mais ainda de intenção.

O apelo dos filantrópicos lords correspondia a intentos do gabinete ou encontrou no seu seio
inequívoca simpatia, porquanto nos artigos adi­cionais do tratado geral de paz de Paris, de 30
de maio de 1814, já se acha que o rei da França prometia unir seus esforços aos do rei da
Grã-Bretanha para
fazerem pronunciar no Congresso por todas as potências cristãs a abolição do tráfico, cessando
este definitivamente por parte da França ao cabo de cinco anos. No seu governo
dos Cem Dias Napoleão confirmou aliás este acordo, por decreto abolindo imediatamente o
tráfico em todas as colônias francesas.

Portugal e Inglaterra entraram em Viena em duas
convenções con­cernentes
a escravos. Pela primeira, de 21 de janeiro de 1815, conveio a Inglaterra em
pagar a Portugal a quantia de 300.000 libras esterlinas para ser distribuída
por quem de direito, em compensação dos carregamentos não restituídos de navios
negreiros ilegalmente apresados pelos cruzeiros britânicos antes do 1º de junho de 1814.
Justificadas reclamações tinham-se levantado contra os abusos em águas africanas dessa
cruzada, com a qual o
Brasil tinha tanto a perder, pois que o estancar do manancial escravo, sem o
contrabalançar a colonização européia, podia num rápido lapso de tempo torná-lo improdutivo e até
deserto. E à Inglaterra não era por certo alheia a consideração egoísta da
desigualdade que, para suas colônias sem escravos, resultava da crescente produção agrícola
brasileira graças ao braço servil.

 

Estranho à conclusão dessa
convenção não foi seguramente o fato, mencionado na Câmara dos Comuns, de ser boa parte da
indenização destinada
a encher os bolsos de especuladores britânicos que faziam uso da bandeira portuguesa para cobrir o
seu nefando tráfico.283 Também a In­glaterra concordara em conceder a referida
indenização pelas capturas ile­gítimas ou ilegais de navios negreiros, na esperança de que Portugal ce­desse
da sua atitude e conviesse em breve na total abolição do comércio de escravos. Para isto prometera
em 1844 a ordem da Jarreteira ao prínci­pe regente, a elevação de Canning, ministro em Lisboa, a
embaixador, e outras
demonstrações de amizade envolvendo para Portugal satisfações de vaidade.284

Alguma coisa conseguiu a diplomacia britânica. Pela outra conven­ção, de 22 de janeiro de 1815,
obrigava-se o príncipe regente de Portugal a abolir o tráfico ao norte do equador. Os juriconsultos
da coroa britâni­ca referiam necessário e o governo britânico instava muito
para que si­multaneamente
promulgasse o príncipe um alvará com força de lei deter­minando as penas contra
o crime de traficar em escravos acima da linha. Recusava-se porém o governo português a
satisfazer essa exigência, adu­zindo que a ratificação e publicação de um tratado, demais transmitido às autoridades competentes do
país para seu conhecimento e efeitos con­seqüentes,
davam ao documento internacional força bastante de lei.

Nem por seu lado se queria a Inglaterra prestar a
convencionar medi­das
ou estipulações particulares contra os seus cruzadores que transgre­dissem o
acordo, interrompendo o tráfico pactuado legal abaixo da equi-noxial. Em qualquer dos lados não
imperava neste assunto a boa fé: mui­to menos nos compromissos estabelecidos
para o futuro. Declarando nu­lo o tratado de aliança de 19 de fevereiro de 1810, por terem cessado as
circunstâncias de
natureza temporânea que o haviam ditado, renovavam todavia as duas partes
contratantes os antigos tratados de amizade "e se obrigavam a determinar, por um
tratado separado, o período em que o comércio em escravos cessaria absolutamente, e seria
proibido em todos os domínios de
Portugal".

Também a Inglaterra aboliu, posto que temporariamente, com a paz geral, o Alien act que
destituía de reciprocidade a situação dos portugue­ses em território britânico,
aproveitando os plenipotenciários portugueses em Viena o ensejo destas revisões e abolições,
ligadas com a remodelação européia, para insistirem na necessidade de um novo tratado de comércio que substituísse aquele que
tamanha celeuma despertara.

Lord Castlereagh envidara os maiores esforços para
arrastar o Con­gresso
até a unânime integral abolição do tráfico. Resistiram-lhe porém com êxito as potências mais interessadas
no trabalho escravo, que eram Espanha e Portugal — Portugal
especialmente por causa do Brasil — no intuito de salvaguardarem o futuro
econômico das suas possessões. Palmela, ao declarar que o seu governo esperava
no prazo de oito anos poder condescender com o generoso desejo das potências
sem colônias ou já pre­paradas para a cessação da importação negra, fez
depender muito habil­mente a questão, conexa com o sistema comercial de
Portugal, das discus­sões mercantis pendentes com a Grã-Bretanha, e não deixou
de salientar, o que era um fato, o tratamento geralmente e mesmo
comparativamente humano dos escravos no Brasil.

A legislação portuguesa do tempo tinha até reais
contemplações com o escravo: verdade é que dificilmente passavam da teoria à
prática. Dava-lhe por exemplo, no caso de estar descontente com o senhor, o
direito de ser avaliado por dois peritos legais e adquirido por outro senhor
que qui­sesse pagar o preço estipulado. Tudo estava na aplicação da disposição,
porque poucos quereriam no seu egoísmo de proprietários de escravos
intrometer-se com os escravos de outrem, e quase nenhum perito avaliaria um
negro por um preço razoável que outro senhor estivesse disposto a dar. A lei
igualmente mandava castigar o escravo no poste público de açoites, proibindo
que fosse açoitado nos domínios particulares, e bem assim al­forriar a escrava
com quem o senhor houvesse coabitado. Entretanto am­bas as disposições eram a
cada passo transgredidas, visto ser impossível obter o testemunho necessário
para a decisão judicial.

Quaisquer regulamentos em benefício dos escravos
tendiam natural­mente a relaxar-se e cair em desuso, dada a extrema diferença
de condição daqueles que a lei visava proteger. A índole e os costumes dos
senhores eram que tornavam o tratamento dos escravos ordinariamente benigno, ao
ponto de alguns marinheiros escravos dos navios empregados no tráfi­co não
fugirem na costa da África, por bem saberem que sua situação se­ria pior no
meio da sua raça. Poucos eram de resto os negros, escreve Luc-cock, que queriam
voltar para a África depois de terem estado algum tempo no Brasil. Nem os podia
apertar muito forte a nostalgia, sendo o Brasil de então, na aparência e nos
hábitos, uma espécie de sucursal africana, tanto havia o elemento escravo
permeado o livre.

A argumentação de Palmela nas conferências de Viena
consta exata­mente da nota dirigida pelos plenipotenciários portugueses aos
outros plenipotenciários da comissão, logo em seguida à declaração coletiva de
8 de fevereiro de 1815 que condenava o tráfico, e na qual prometiam os so­beranos
representados no Congresso concorrer para a execução mais pronta e mais eficaz
da sua abolição. A Grã-Bretanha não conseguira contudo que o comércio de escravos fosse declarado em absoluto
ilícito, como pre­tendera,
para assim ter um pretexto de atacar os navios nele empregados.

Protestaram os plenipotenciários portugueses naquele
documento con­tra
qualquer ação das potências tendente a obrigar uma nação indepen­dente a não exceder o prazo dos
cinco anos estipulado por lord Castle-reagh, ameaçando essas potências com represálias no caso
de proibições aduaneiras. Por fim arrancaram do plenipotenciário britânico, a
13 de fe­vereiro, o compromisso da substituição do tratado comercial de 1810
por outro mais agradável às vistas de ambas as nações, posto que desligando sua negociação da relativa à abolição do tráfico.

O Congresso de que saiu a Santa Aliança mostrava
interessar-se tan­to pela liberdade natural dos negros, mas esquecia-se, na
frase incisiva de Hipólito,
de interessar-se igualmente pela liberdade natural dos brancos da Europa, que já estavam ou iam
ficar privados da liberdade de impren­sa, da liberdade de discussão, da liberdade religiosa e
de outras liberdades civis
e políticas. Neste tópico era a Inglaterra que tomava a dianteira po­rém, e no seu seio se combinavam
o sentimento altruísta pelos negros e o respeito aos direitos dos cidadãos.
Tinha ela portanto título a dirigir a campanha
abolicionista, e bem ativa se revelou nas suas operações.

A 20 de novembro de 1815 subscrevia um artigo adicional
ao tratado geral
com a França, pelo qual se obrigavam as duas potências a renovar seus esforços para o final e
completo sucesso dos princípios abolicionistas proclamados na Declaração de 4
de fevereiro: aliás Luiz XVIII concorda­ra
por ocasião da sua segunda restauração em que ficasse inteiramente abo­lido o tráfico em todos os
domínios franceses, perfilhando o decreto do imperador após a ilha d’Elba.

Lord Castlereagh não ficou no entanto aí. Logo depois de ajustadas as questões territoriais sobre
que tinha a pronunciar-se o Congresso de Viena, no ano de 1816 manifestou o gabinete de Saint
James os seus dese­jos
de continuarem em Londres as negociações para a terminação do trá­fico, renovando-se assim as
conferências das potências signatárias da De­claração. Sabemos porém pela correspondência
reservada de Palmela. quando
em Londres,285 que mercê provavelmente do projetado enlace de príncipe real português com a
arquiduquesa Maria Leopoldina, Metternich dera instruções positivas ao embaixador Esterhazy
para auxiliar Por­tugal na sua
resistência à pressão inglesa.

Era Portugal o único estado verdadeiramente interessado em que não cessasse imediatamente o comércio
de escravos já que, para captar a boi vontade, de resto bem manifesta, do governo britânico na
questão da Banda Oriental,
se mostrava a Espanha disposta em fins de 1816286 a renunciar por completo ao tráfico em 1S19,
contentando-se com as 400.000 libras de indenização pelas perdas sofridas pelos seus armadores
negreiros por motivo
de capturas ou apresamentos ilegais como os ocorridos com em­barcações
portuguesas. Imediatamente reclamou contudo mais o gabine­te de Madri a
garantia da Inglaterra para um empréstimo de 700 ou mes­mo 600.000 libras, debaixo da
promessa de serem admitidas em Espanha as
fazendas inglesas de algodão.

Tendo a Inglaterra, por causa do estado das finanças públicas, que recusar peremptoriamente sua
aquiescência à sugestão, romperam-se tem­porariamente as negociações,287 acabando
entretanto por ser assinada em 1817 a convenção hispano-britânica, estipulando que o tráfico se extinguiria
em 1820. Ainda em 1817 obtinha o gabinete de Londres da corte portuguesa a proibição para os
navios espanhóis de aparelharem nos por­tos brasileiros, ou antes, do Reino Unido, com destino à
costa da África, onde
lhes era lícito traficar entre o equador e o 10? grau de latitude norte.

O retraimento momentâneo da Espanha, a atitude das outras potên­cias informadas pelos ministros
de Portugal nelas acreditados e muito me­nos interessadas na questão do tráfico do que a
Inglaterra, e os ciúmes por esta nutridos da política russa, a qual ia criando
simpatias e esten­dendo
relações pelas nações de preferência afetas ou ligadas à Grã-Bretanha — Suécia, Holanda, Espanha,
França — foram melhorando a situação de
Portugal urgido pela tenacidade inglesa.

"Parece-me — escrevia Palmela com bastante previsão a 13 de março de 1817 — que se as vistas d’el
rei Nosso Senhor se limitam a conservar por alguns anos mais com perfeita tranqüilidade o
recurso do Tráfico de escravos
ao sul da linha para os seus estados do Brasil pode sossegar a esse respeito o seu real ânimo.
É certo que se não deve contar com uma duração ilimitada desse recurso porque o governo
britânico jamais perde­rá de vista a extinção total do tráfico, daqui a alguns
anos nem acharemos nas outras potências um apoio suficiente para o perpetuar,
mas estou per­suadido
que a condição da abolição do tratado de comércio de 1810 será concedida por este governo como
um equivalente da extinção do trafi­ca"288

Para o governo português o negro era, além de fator
econômico con­siderado
insubstituível, também recurso financeiro, constituindo matéria a tributar. Nem se esqueceu o
governo, depois de ter começado por agra­var os direitos de polícia e de saúde, de reforçar as
taxas diretas que cobra­va sobre essa propriedade humana. Em 1818 cada negro novo acima de 3 anos, importado da África, entrou a pagar, afora um direito existente
de 6.000 réis, um
adicional de 9.000 réis; metade desta quantia para ser depositada no Banco do Brasil a
fim de formar ações destinadas à funda­ção de colônias de cultivadores brancos, porquanto o
grande e sem dúvi­da verdadeiro argumento que Portugal invocava para adiar a
abolição do tráfico, era a carência de trabalhadores europeus no seu império
tropical.

Para evidenciar a sua boa vontade, prestara-se no entanto Portugal a tomar parte nas conferências
resultantes do artigo suplementar do tra­tado de Paris de 20 de novembro de
1815, o qual não assinara e portanto o não obrigava, tanto mais quanto tinham os seus
plenipotenciários até rejeitado
no Congresso de Viena a idéia dessas novas conferências. Ade­ria em princípio o governo do Rio
ao apelo reiterado da Grã-Bretanha, mas com a condição de que nas negociações fossem
acatadas as seguintes bases:
respeito, de acordo com a declaração solene do Congresso de Vie­na, aos capitais, hábitos e mesmo
prejuízos dos súditos das nações que ainda permitiam o tráfico; liberdade para cada uma das
potências interes­sadas de fazer a abolição final do comércio de escravos na
época que en­tendesse
conveniente, sendo a data determinada por meio de convênios entre as potências representadas
nas conferências; segurança de que a ne­gociação geral não prejudicaria o estipulado no artigo IV do tratado de 22 de janeiro de 1815 celebrado
entre Portugal e a Inglaterra, a saber, que a abolição nos domínios portugueses seria fixada por
tratado separado entre as duas partes
contratantes.289

Em oposição à intentada inércia portuguesa, não perdia a
Grã-Bre­tanha ocasião alguma de agitar a questão, tanto mais quanto depois de 1815, tendo cessado o direito de
visita exercido pelos beligerantes, recru­descera o tráfico negro. No Congresso de Aix-la-Chapelle
insistiram de novo
os ingleses pela abolição do comércio de escravos. Sabemos como, por efeito dessa insistência,
foram os soberanos reunidos levados a dirigirem-se por escrito a el-rei Dom João VI, convidando-o nos termos mais
cordiais e respeitosos a adotar para aquela abolição o termo fixado pela Espanha que era o mês de maio de 1820.

O
movimento abolicionista torna-se muito considerável e a cada dia ganhava mais terreno na Inglaterra. Precisava
lord Castlereagh poli­ticamente de
proceder como estava procedendo para conter e satisfazer a vigorosa oposição parlamentar. Não podendo de
resto encontrar em Aix-la-Chapelle
solução a questão, foi ela remetida à conferência de ple­nipotenciários que
outra vez se havia de estabelecer em Londres para discutir, formular e apressar, não logrando
Palmela com suas memórias e suas
cartas desviar inteiramente a atenção das outras potências para as piratarias
barbarescas e norte-americanas.

Na repressão dos assaltos barbarescos no Mediterrâneo achava Por­tugal também conveniência
direta, pois que por aquele tempo se manifes­tara, como conseqüência do enlace dinástico de
Bragança e Habsburgo e
da aproximação das nações austríaca e portuguesa, o intuito de desen­volver o
comércio entre os portos do Adriático e os do Brasil. Correria porém esse comércio o risco de
ser gravemente comprometido pelos pira­tas se os não perseguissem as potências navais fortes.
Portugal não pos­suía marinha de guerra suficiente para guardá-lo, condição tão
indispensável que os
próprios Estados Unidos conservavam para semelhante fim força marítima no Mediterrâneo,
constituindo até os dares e tomares da jovem república anglo-saxônica com os bens de Túnis e
Argel um capítulo interessante
da história diplomática norte-americana no alvorecer do século XIX.

As piratarias norte-americanas não pertenciam, é de ver, diretamente à iniciativa do governo de
Washington. Marrocos numa de suas cartas290 feia mesmo de dois navios
portugueses, "que os Ingleses haviam tomado, por virem de fazer escravaturas
nos portos vedados pelo último tratado, e
que se dirigiam para a Bahia". Os americanos, então em guerra com os ingleses, tiveram ensejo de retomá-los, e
restituíram-nos a seus primiti­vos donos.

Realizavam-se tais piratarias, com relação a navios portugueses, à som­bra da bandeira de Artigas e por
meio de embarcações que, na maior parte,  nunca tinham saído de Montevidéu, bloqueada como se
achava por uma
esquadra portuguesa a entrada do rio da Prata. Praticavam-nas cor­sários americanos que algumas
das colônias revoltadas da Espanha che­gavam a repelir, não consentindo que ali fossem vender suas
presas, pelo que as levavam mal disfarçadas para
portos dos Estados Unidos. Na exe-nação de suas proezas marítimas afoitavam-se eles até a
costa portuguesa, a
cuja vista faziam ondular o pavilhão desconhecido do chefe oriental, esobretudo infestavam a costa brasileira.

 

No ano justamente da reunião do Congresso em Aix-la-Chapelle, escrevia o representante francês no Rio
de Janeiro detidamente ao seu governo sobre a extensão e importância da
pirataria dirigida contra o comércio do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. "Os piratas aumentam diariamente em número e audácia e o êxito
excita especuladores imorais a empregarem seus capitais em armamentos que são a vergonha e a ruína do comércio. As costas
deste país andam inquietadas por uma transportadas pelos navios de guerra estrangeiros. Os ingleses, que natu­ralmente se encarregavam de quase
todos estes transportes, tiravam até daí sua
boa comissão.

Em Lisboa tratou-se de restabelecer, para proteção dos navios mer­cantes, o velho sistema dos
comboios, muito empregado nos séculos XVII e XVIII. A proteção não era demasiada, pois quase não há despacho do cônsul Lesseps que não fale em
presas feitas pelos corsários americanos com pavilhão de Artigas, que tão graves perdas
acarretavam ao comércio nacional e em tão grande consternação o punham, prevendo-se maiores prejuízos ainda e temendo-se
pela sorte de todos os navios saídos da índia ou do Brasil para a antiga capital da monarquia.

A base principal de operações desses corsários parecia
ser nas Ilhas dos
Açores e imediações, donde singravam a capturar as embarcações que regressavam quer do Velho, quer
do Novo Mundo. A perspectiva econô­mica mais sombria se fazia assim para
Portugal e, como devia acontecer, desafogava-se o desgosto em recriminações contra a
mudança da corte e as
conseqüências que determinara a preeminência concedida aos interes­ses brasileiros. "Também,
escrevia Lesseps, as vítimas destes sucessos pouco poupam nos seus dizeres o
gabinete brasileiro cuja ambição, segundo elas, sacrificou tantas riquezas reais à esperança
incerta de engrandecer-se, e cuja imperícia esgota cada vez mais os recursos de Portugal."297

É verdade que o gabinete brasileiro consumia muita da sua
atividade em
arredar a solução do problema do tráfico, que se impunha, persistin­do a Inglaterra até a
independência e o tratado de reconhecimento em ur­gir a fixação de um prazo fatal
para a terminação daquele comércio. Palmela, em Londres, não se iludia contudo, nem deixava
ilusões ao gabinete do
Rio sobre a possibilidade de remover de todo da arena da discussão diplomática essa já velha mas
sempre aguda questão: "Esteja V. Ex? bem persuadido que, por melhores que sejam as razões que nos assistem, o go­verno britânico não cessará de
empregar todos os meios que estiverem ao seu alcance, sem excluir mesmo os da violência, para
induzir o nosso a condescender
nesse ponto com os seus desejos; e considerando que somos já agora os únicos que nos
achamos em campo para sustentar a continua­ção do tráfico da escravatura além do ano de 1820, e que
nos demais gabi­netes
da Europa, facilmente se deixam induzir a seguir as idéias filantró­picas quando delas lhes não
resulta prejuízo, creio que nenhum objeto me­rece mais, do que este, de ser
tomado por S.M. em muito séria considera­ção… Só pretendo anunciar que, vista a certeza quase
completa que deve­mos
ter de que tarde ou cedo nos veremos obrigados a ceder, convém desde já antecipar as medidas necessárias
para que essa resolução final seja o menos nociva que possível for para os
interesses do Brasil."298

Mais de uma vez assim se manifestou com sua habitual lucidez, o em­baixador de Dom João VI em Londres, tentando abrir os
olhos à sua cor­te:
"Julgo-me na consciência obrigado a declarar e a repetir que a idéia de continuar sem limite de tempo
à importação de escravos para o Brasil é impraticável e que nos atrairá,
se não nos precavermos, as mais fatais conseqüências. Basta para provar essa asserção o
refletirmos que o Brasil é já agora o único país do mundo para onde se
levam, sem ser por contra­bando, novos escravos. Em todo o resto da América se acha esse tráfico abolido, e a Inglaterra está bem
determinada (porque quando mesmo o governo o não quisesse, a nação o exigiria) a conseguir
finalmente a abo­lição
geral. O que podemos ainda é ganhar tempo, e para preparar-nos para o sacrifício, mas não evitá-lo afinal."’299

Dom João VI conseguiu todavia regressar para Portugal sem que es­tivesse resolvida a questão, o
que neste caso era sinal de vitória. O mais a
que pôde a Inglaterra coagir foi à convenção adicional do tratado de 22 de janeiro de 1815, assinada em Londres a 28 de
julho de 1817 por Pal­mei a e
Castlereagh e na qual, conforme a própria declaração parlamentar do ministro de estrangeiros da Grã-Bretanha, se
sancionava pela primeira vez, como
princípio novo no direito público da Europa, a admissão da busca em tempo de paz, ainda que em casos
limitados, nos navios mer­cantes de outras
nações pelos navios de guerra de qualquer potência. É fato que resultava mútua a faculdade, podendo
também os navios de guerra portugueses
dar busca nos navios mercantes ingleses; mas a quem se detiver um instante em refletir na importância naval dos
dois países, acudirá de pronto quão ilusória era mais essa
reciprocidade.

Declarava a nova convenção ter por fim vigiar por parte dos dois go­vernos, que os seus respectivos
vassalos não exercessem o comércio ilícito de escravos. Comércio ilícito denominava-se todo o dessa
natureza feito em navios britânicos, ou por conta de vassalos britânicos, e
qualquer feito em navios
portugueses fora da zona estipulada no tratado anterior, ou por súditos de
outra potência debaixo da bandeira portuguesa. Ambos os governos seriam, cada um pelo que
lhe competisse, responsáveis pelos navios que injustamente detivessem e
ilegalmente capturassem as embarca­ções das duas marinhas reais, munidas para isso de
instruções especiais.

Três comissões mistas, compostas igualmente de indivíduos
das duas ações
contratantes, funcionariam no Brasil uma, outra na costa da Áfri­ca e a terceira em Londres,
decidindo as duas primeiras sobre as presas futuras dessa natureza, e a última sobre as
presas realizadas no período entre 1 de junho de 1814 e a data da instalação das duas outras
comissões. Como
conseqüência da mesma convenção de 28 de julho de 1817, o alvará de 26 de janeiro de 1818
estabelecia penas de confisco da mercado­ria, multas e degredo para o capitão, piloto e
sobrecarga das embarcações que traficassem ao norte do equador, e dispunha várias providências hu­manitárias
com relação ao passadio e mais tratamento dos negros arreba­nhados para suprirem o mercado
brasileiro de escravos. Outra coisa não logrou
alcançar a tenacidade inglesa da tenacidade de Dom João VI.

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