Platão – Diálogos Platônicos – Críton, ou do Dever

Diálogos Platônicos

De Platão, Críton, ou o DEVER

Extraído do livro Diálogos, da coleção Clássicos
Cultrix.
Tradução: Jaime Bruna. Personagens: Sócrates e Críton, dois velhos.
( 360 a.C )



edição virtual por Miguel Duclós


Os números entre colchetes [] se referem aproximadamente à paginação padrão adotada a partir da edição genovesa de Henri Estienne (Stephanus) de 1578 .

Partes do diálogo:
Argumento de Críton (43a-46a)
A resposta de Sócrates (46a-50a)

O Discurso das Leis (50a-54e)

Cena: Uma cela, na prisão de Atenas.


[43a]
Sócrates– Por que viestes a estas horas, Críton? É
madrugada ainda, não é?

Críton– Perfeitamente.

Sócrates– Que horas, precisamente?

Críton– Mal começa a clarear.

Sócrates– Admira-me que o guarda da prisão te haja
atendido.

Críton– Ele já se acostumou
comigo, Sócrates, de tanto eu freqüentar este lugar; ademais, deve-me alguns
favores.

Sócrates– Acabas de chegar ou
faz tempo?

Críton– Faz já algum tempo.

[43b]

Sócrates- Então, porque não me acordaste logo e
sentaste aí calado?

Críton– É que, por Zeus, Sócrates, em teu lugar, eu não
gostaria de passar muito tempo acordado numa aflição assim; estou mesmo
admirando, há tempo, a placidez do teu sono. Não te acordei de propósito; para
que pudesses gozar quanto mais dessa tranqüilidade. Já muitas vezes antes, em
toda a nossa vida, te considerei feliz pelo teu gênio, porém muito mais agora,
na presente desgraça, pela facilidade e brandura com que a suportas.

Sócrates- Realmente, Críton, eu destoaria, se na
minha idade, me agastasse por ter de morrer em breve.

[43c]
Críton– Outros também, Sócrates, passam por
provações assim na mesma idade; no entanto, os anos não os dispensam de se
agastarem com a sorte que lhes toca.

Sócrates– Assim é. Mas, afinal, para que vieste tão
cedo?

Críton– Para trazer uma notícia, Sócrates, dolorosa
e desoladora – não assim para ti, pelo que vejo – mas dolorosa e desoladora
para mim e para todos os teus amigos; acho que a poderia contar como uma das
que mais o sejam.

Sócrates– Que vem a ser? Chegou de Delos o navio a
cuja chegada devo morrer?

Críton– Bem, chegar não chegou, mas calculo que deve
aportar hoje, pelo que noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As
novas dão a entender que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã, Sócrates
que terás de cessar de viver.

Sócrates– Pois bem, Críton, à boa ventura! Se assim
apraz aos deuses, assim seja. Todavia, acho que não vai aportar hoje.

[44a]
Críton– Em que te baseias?

Sócrates– Vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia
seguinte ao da chegada do navio.

Críton– Ao menos assim dizem as autoridades
competentes.

Sócrates– Por isso, acho que não vai aportar no dia
de hoje, mas no de amanhã. Baseio-me num sonho que acabo de ter esta noite.
Talvez mesmo tenha sido oportuno não me haveres despertado.

Críton– Como foi o sonho?

Sócrates– Parecia-me que
vinha uma mulher formosa, de [44b] lindas feições, vestida de branco, me chamava e
dizia: "Sócrates, depois de amanhã poderás ter chegado às férteis campinas
de Fétia".

Críton– Sonho esquisito, Sócrates!

Sócrates– De sentido claro, ao que penso, Críton.

Críton– Por demais, penso eu. Contudo, meu pobre
Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se
vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como
não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a
mim e a ti, pensará que eu, [44c]
podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar
dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação vergonhosa do que a de fazer
caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não
quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo.

Sócrates– Mas para nós, meu caro Críton, é tão
importante assim a opinião do povo? A gente melhor, com quem mais importa que
nos preocupemos, cuidará que as coisas se terão passado tal como se tiverem
passado.

[44d]
Críton– Mas bem vês, Sócrates, que não se pode
deixar de fazer caso também da opinião do povo. Os fatos mesmos de agora dizem
claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como
que os maiores; basta que entre eles se espalhem calúnias contra alguém.

Sócrates– Oxalá, Críton, fosse o povo capaz de
praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria
esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem
como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso.

[44e]
Críton– Vá lá que assim seja. Mas dize-me uma coisa,
Sócrates: estás procurando evitar, não é? que eu e os outros amigos teus, caso
saias daqui, venhamos a ser molestados pelos sicofantas, sob a acusação de te
subtrair daqui, e obrigados a abrir mão de todos os nossos haveres, ou pelo
menos de grossas quantias, ou a sofrer, além disso, qualquer outra pena? [45a] Se é
isso que temes, manda o medo às urtigas. É justo que nós, para salvar-te,
corramos esse perigo, e maiores ainda, se for preciso. Vamos, dá-me ouvidos e
não proceda de outra maneira.

Sócrates– Estou evitando isso tudo, Críton, e muitas
outras coisas.

Críton– Pois não tenhas esse receio. Não é muito o
dinheiro que certas pessoas querem receber para levar-te daqui e salvar-te.
Depois, não vês como são baratos esses
sicofantas? Que não seria preciso gastar
[45b] muito com eles? Os meus haveres
estão a tua disposição e acho que são suficientes; além disso, caso apreensivo
por mim, te pareças não devas despender o meu, aí estão aqueles estrangeiros,
prontos a gastar; um, até trouxe exatamente para isso dinheiro suficiente,
Símias de Tebas; Cebes também está pronto e muitíssimos outros. Por isso,
repito, não seja por este receio que desistas de te salvar; tampouco te
embaraces, como dizia no tribunal, com a possibilidade de, partindo, não teres
do que viver.[45c] Em muitos lugares, mesmo no exterior, onde fores parar, acharás
amizade; se quiseres ir para a Tessália, tenho lá hóspedes que te darão grande
apreço e te oferecerão segurança, de sorte que ninguém na Tessália te
molestará. Demais, Sócrates, acho que cometes uma injustiça entregando-te,
quando te podes salvar; estás trabalhando para que te aconteça exatamente
aquilo a que visariam teus inimigos. – a que visaram quando decidiram tua
perda. De mais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus [45d] filhos; podendo
criá-los e educá-los, tu queres ir-te, abandonando-os; no que te concerne,
fiquem eles entregues à sua sorte; a deles, é natural, será a sorte costumeira
dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos, ou sofrer juntamente
com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem escolhendo
a sua maior comodidade. Deve-se, porém, escolher o que escolheria um homem bom
e de brio, ao menos quando vives dizendo não ter outra preocupação na vida
senão a virtude. Eu, sabes? tenho vergonha por ti e por todos nós, [45e] os teus
amigos, de que atribuam a covardia de nossa parte tudo o que aconteceu contigo:
o teu comparecimento diante do tribunal, quando podias deixar de comparecer; a maneira
pela qual o processo mesmo correu; por fim, este desfecho, como que o mais
ridículo da história, a impressão de que nos esgueiramos, covardes e sem brio, [46a]
sem termos providenciado, nem nós outros nem tu, a tua salvação, possível e
realizável se tivéssemos algum préstimo. Evita, Sócrates, que essa pecha, em
acréscimo a tua desgraça, caia sobre ti ou sobre nós. Vamos, resolve-te, que já
não é tempo de resolver, mas de ter resolvido. Só há porém, uma resolução, e
tudo deve estar feito na noite de hoje; se nos demorarmos mais, já não será
mais realizável nem possível. De toda forma, Sócrates, dá-me ouvidos e não
procedas de outra maneira.

[46b]
Sócrates– Querido Críton! Quão precioso o teu ardor,
se alguma retidão o acompanhasse! Não sendo assim, quanto mais insistente,
tanto mais penoso. Temos, pois, de examinar se devemos proceder como queres ou
não. Quanto a mim, não é de agora, sempre fui deste feitio: não cedo a nenhuma
outra de minhas razões, senão à que minhas reflexões demonstram ser a melhor.
As razões que alegava [46c] no passado, não as posso enjeitar agora em vista de minha
sorte presente; elas se me apresentam como que inalteradas; são as mesmas de
antes as que estou respeitando e acatando; se nestas conjunturas, não temos
outras melhores para alegar, fica certo de que não cederei absolutamente a tuas
instâncias; ainda que, com mais ameaças que as atuais, nos acene o poderia da
multidão, como a crianças, com o espantalho das prisões, mortes e confisco de
bens. Como, portanto, faremos tal exame o mais acuradamente possível? Será
retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas a propósito das opiniões?
Estávamos certos ou errados [46d] ao repetirmos que das opiniões umas devemos acatar,
outras não? Ou antes, de eu ter de morrer, era acertado dizê-lo, mas agora se
patenteou – não é assim? Que falávamos por falar, mas não passava de
brincadeira, futilidade? Francamente, Críton, desejo examinar contigo se aquela
razão se nos apresentará um tanto modificada em vista da minha situação, ou
idêntica, e se as mandaremos às urtigas, ou lhe obedeceremos. Costumavam dizer,
creio eu, os que presumem falar seriamente, mais ou menos o mesmo que eu
próprio dizia há pouco: que, das opiniões que os homens formam, a umas se [46e] deve
grande acatamento, a outras não. Pelos deuses, Críton, não te parece uma boa
norma? Porque tu, tanto quanto alcançam as previsões humanas, não estás em vias
de [47a] morrer amanhã, nem poderia ser abalado o teu juízo pela adversidade
presente. Portanto, reflete; não achas acertado dizer que nem a todas as
opiniões dos homens se deve acatamento, mas a umas sim e outras não? E não às
de todos, mas às de uns sim e às de outros não? Que dizes? Não é com razão que
se diz isso?

Críton– É com razão.

Sócrates– Logo, acatar as boas, não as ruins.

Críton– Perfeitamente.

Sócrates– Boas não são as dos judiciosos, ruins, as
dos sandeus?

Críton– Como não?

Sócrates– Ora bem, em que sentido se faziam tais
distinções? Um homem que pratica a [47b] ginástica e segue aquela norma dá atenção ao
louvor, à censura, ao parecer de toda a gente ou somente ao de quem porventura
é médico ou instrutor de ginástica?

Críton– Só ao deste.

Sócrates– Assim, deve temer as censuras e folgar com
o louvor de único e não da multidão.

Críton– Evidentemente.

Sócrates– Deve, não é assim? Conformas suas práticas,
seus exercícios, sua alimentação, sua bebida, somente com a opinião do mestre e
entendido, de preferência a de todos os demais juntos.

Críton– Assim é.

[47c]
Sócrates– Bem. Se desobedece àquele único, se
desacata ao seu parecer e ao seu louvor, para atender ao que diz a multidão que
de nada entende, não sofrerá nenhuma conseqüência ruim?

Críton– Como não?

Sócrates– Qual é essa conseqüência ruim, que
extensão tem e onde atinge o desobediente?

Críton– Está-se vendo que no corpo, porque é este
que ele arruina.

Sócrates– Dizes bem. Portanto, Críton, para não
passarmos tudo em revista, com tudo mais se dá o mesmo. Agora, quando ao justo
e ao injusto ao freio e ao belo, ao bem e ao mal, objetos desta nossa
deliberação, devemos nós seguir a opinião [47d] da multidão e temê-la, ou a do único,
se algum existe, entendido, a quem devemos respeitar e temer mais do que a
todos os demais juntos? se não obedecermos ao qual, corromperemos e
danificaremos aquilo que melhora coma justiça e se arruina com a injustiça? Ou isto
não tem cabimento?

Críton– Acho que tem, Sócrates.

Sócrates– Ora, pois, se aquilo que melhora com um
regime saudável e se corrompe com um regime insalubre nós arruinarmos
obedecendo à opinião que não é a dos entendidos, é-nos possível viver com essa [47e]
parte arruinada? É ao corpo que nos referimos, ou não?

Críton– Sim.

Sócrates– Então, é-nos possível viver com um corpo
em más condições, arruinado?

Críton– De modo nenhum.

Sócrates– Podemos, porém, acaso viver depois de
arruinar aquela parte que a injustiça danifica e a justiça beneficia? Ou
considerarmos de menos valor que o corpo, aquela parte de nosso ser, seja qual
for, [48a] com que se relaciona a injustiça e a justiça?

Críton– De modo nenhum.

Sócrates– De maior valor, então?

Críton– Muito maior.

Sócrates– Logo, meu excelente amigo, não é
absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas
com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a
Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos
prescreves que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do
justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá
alguém, é bem capaz de nos matar.

[48b]
Críton– Isso é claro, Sócrates, haverá quem diga.

Sócrates– Decerto. Mas, meu admirável amigo, essa
razão que acabamos de rever ainda me parece substancialmente a mesma de antes.
Examina também se continua de pé para nós este outro princípio: que não devemos
dar máxima importância ao viver, mas ao viver bem.

Críton– Continua.

Sócrates– E que viver bem, viver com honra e viver
conforme a justiça é tudo um, continua de pé, ou não?

Críton– Continua.

Sócrates– Por conseguinte, partindo desses
princípios nos quais concordamos, devemos averiguar se é justo que eu tente
sair daqui sem [48c] permissão dos atenienses, ou injusto: se se provar que é justo,
tentemos; se não, desistamos. As considerações que aduzes, de dispêndio de
dinheiro, reputação, criação de filhos, Críton, cuidado não sejam na realidade
especulação próprias de quem, com a mesma facilidade, mataria, e se pudesse,
ressuscitaria, sem nenhum critério a saber, a multidão. Nós, porém, pois que
assim recide a razão, não sujeitemos à consideração nada além do que há pouco
dizíamos: se será procedimento justo dar dinheiro aos que me vão tirar daqui,
suborná-los, [48d] nós mesmos promovendo a fuga e fugindo, ou se, na verdade,
procederemos com injustiça em todos esses atos, se se provar que cometeremos
injustiça, não será absolutamente mister indagar se devo morrer, ficando quieto
aqui, ou sofrer qualquer outra pena, antes do que praticar uma injustiça.

Críton– Acho que falas com acerto, Sócrates; vê,
pois o que devemos fazer.

Sócrates- Vejamo-lo juntos, meu caro, e se puderes
de algum modo refutar-me,[48e] refuta-me e te obedecerei; Se não, cessa desde logo,
meu boníssimo amigo, de insistir no mesmo assunto, de que preciso sair daqui
contrariando os atenienses; porque dou muita importância a proceder com o teu
assentimento e não mau grado teu. Vê, pois, se te parecem satisfatórios os
argumentos básicos deste exame
[49a] e procura responder a minhas perguntas com a
maior sinceridade.

Críton– Pois não, procurarei.

Sócrates– Asseveramos que não se deve cometer
injustiça voluntária em caso nenhum, ou que em alguns casos se deve, e noutros
não? Ou que de modo algum é bom nem honroso cometê-la, como tantas vezes no
passado conviemos? e é o que acabamos de repetir. Porventura, todas aquelas
nossas convenções de antes se entornaram nestes poucos dias e, durante tanto
tempo, Críton, velhos como somos, em nossos graves entretenimentos não nos
demos conta [49b] de que nada diferíamos das crianças? Ou, sem dúvida alguma é como
dizíamos, quer o admita a multidão, quer não? Mais: ainda que tenhamos de
experimentar momentos quer ainda mais dolorosos, quer mais suaves, o
procedimento injusto, em qualquer hipóteses, não é sempre, para quem o tem, um
mal e uma vergonha? Afirmamos isso ou não?

Críton– Afirmamos.

Sócrates– Logo, jamais se deve proceder contra a
justiça.

Críton– Jamais, por certo.

Sócrates– Nem mesmo retribuir a injustiça com a
injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre
inadmissível.

[49c]
Críton– Parece que não.

Sócrates– E daí? Devemos praticar maldades ou não,
Críton?

Críton– Não devemos, sem dúvida, Sócrates.

Sócrates– Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é
justo, como diz a multidão, ou injusto?

Críton– Absolutamente injusto.

Sócrates– Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e
cometer uma injustiça, não há diferença nenhuma.

Críton– Dizes a verdade.

Sócrates– Em suma, não devemos retribuir a
injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos
cause. Cautela, porém,,
[49d] Críton, ao admitires esses princípios, não o faças em
contradição com o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns
poucos. Entre os que a adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum;
fatalmente se a quererão mal uns aos outros, ao verem os propósitos uns dos
outros. Portanto, considera muito bem tu se comungas a minha opinião, se
concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio de que jamais é
acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o mal que
nos fazem, ou se diverges [49e] e não co-participas do princípio. Quanto a mim, essa
é opinião minha antiga, que ainda agora mantenho. Tu, porém, se tens outro
sentir, fala, dá-me a conhecer; se perseveras no de outrora, presta atenção ao
que aí decorre.

Críton– Persevero, concordo contigo; por isso,
prossegue.

Sócrates– Passo, então, às decorrências; ou melhor,
pergunto se uma convenção que se firmou com alguém, sendo justa deve ser
cumprida ou traída.

Críton– Deve ser cumprida.

Sócrates– Daí, presta atenção. Saindo daqui,
desobedientes à cidade, lesamos [50a] a alguém e logo a quem menos devemos lesar, ou
não? E cumprimos as convenções justas que firmamos, ou não?

Críton– Não sei responder a tuas perguntas,
Sócrates; não as estou compreendendo.

Sócrates– Bem, reflete no seguinte. Se, no momento
em que eu estivesse para me evadir daqui, ou como quer que se diga, chegassem
as Leis e a Cidade, assomassem perguntado: "Dize-nos, Sócrates: que
pretendes fazer? Que outra coisa meditas, [50b] com a façanha que intentas, senão
destruir-nos a nós, as Leis e toda a Cidade, na medida de tuas forças? Acaso
imaginas que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde
nenhuma força tenham as sentenças proferidas, tornadas inoperantes e
aniquiladas por obra de simples particulares?" – Que responder, Críton, a
essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo
por um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das
sentenças proferidas. [50c] Acaso responderei que a Cidade me agravou, não me julgou,
conforme a justiça? Direi isso? Direi o quê?

Críton– Isso mesmo, por Zeus, ó Sócrates!

Sócrates– E se então, as Leis dissessem:
"Sócrates, o que convencionaste conosco foi isso, ou que submeterias ás
sentenças que a Cidade proferisse?" Se me admirasse dessa pergunta,
diriam, talvez: "Sócrates, não te admires de nossas perguntas, mas
responde-nos, porque tu também costuma lançar mão de perguntas e respostas.
Vamos, pois; qual a queixa contra nós e [50d] contra a Cidade, que te move à nossa
destruição? Para começar, não fomos nós que te demos nascimento e não foi por
nosso intermédio que teu pai desposou tua mãe e te gerou? Dize: apontas algum
defeito naquelas dentre nós que regulam os casamentos? Achas que não estão bem
feitas? – Não aponto defeitos, diria eu. – Então nas que regulam a criação e
educação do filho, que também recebeste? Aquelas que de nós regem a matéria, ao
mandarem que teu pai te ensinasse música
[50e] e ginástica, não o fizeram com acerto?
– Fizeram, diria eu. – Bem; depois que nasceste, que te criaram e que educaram,
poderia, de começo, negar que nos pertences, como filho nosso e nosso escravo,
assim tu com teus ascendentes? E, se assim é, julgas ter ao menos os mesmos
direitos que nós? Julgas ter o direito de fazer-nos em represália o mesmo que
tentamos fazer a ti? Ora, em face do teu pai não terias os mesmos direitos, nem
em face de teu amo, se amo tivesse, para retaliar o que te fizessem, nem para
revidar doesto por doesto [51a], golpe por golpe, nem para outros desforços; mas, em
face da pátria e das Leis, se tentarmos destruir-te por assim acharmos de
justiça, terás o direito de tentar, da tua parte também, dentro das tuas
forças, destruir-nos em desforra a nós, as Leis e a pátria? E dirás que, assim
procedendo, obras com justiça tu, que verdadeiramente tomas a virtude a sério?!
Que sabedoria é a tua, se ignoras [51b] que, acima de tua mãe, teu pai e todos os
outros teus ascendentes, a pátria é mais respeitável, mais venerável, mais
sacrossanta, mais estimada dos deuses e dos homens sensatos? Que se deve mais
veneração, obediência e carinho a uma pátria agastada do que a um pai? Que o
dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente o que ela
manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja a convocação para ser
ferido ou morto na guerra? Tudo isso deve ser feito e esse é o direito – não
esquivar-se; não recuar; não desertar o posto; mas, quer na guerra, quer no
tribunal, em toda a parte, em suma, cumpre ou executar as ordens da cidade e da
pátria
[51c] ou obter a revogação palas vias criadas do direito. É impiedade usar de
violência contra a mãe e o pai, mas ainda muito pior contra a pátria do que
contra eles." Que responderei a isso, Críton? Que as Leis dizem a verdade,
ou que não?

Críton– Acho que sim.

Sócrates– "Vê, portanto, Sócrates" diriam
talvez as Leis, " temos razão em tachar de injusto o que intentas
fazer-nos agora. Nós que te geramos, te criamos, te educamos, te admitimos à
participação de todos os benefícios que podemos proporcionar [51d] a ti e a todos os
demais cidadãos, sem embargo, proclamos termos facultado ao ateniense que o
quiser, uma vez entrada na posse dos direitos civis e no conhecimento da vida
pública e de nós, as Leis, se não formos de seu agrado, a liberdade de juntar o
que é seu e partir para onde bem entender. Se, por não lhe agradarmos nós e a
cidade, algum de vós quiser rumar para uma colônia ou quiser fixar residência
[51e] em qualquer outro país, nenhuma de nós, as Leis, o impede ou proíbe de seguir
para onde lhe parecer, levando o que é seu. Mas quem dentre vós aqui permanece,
vendo a maneira pela qual distribuímos justiça e desempenhamos as outras
atribuições do Estado, passamos a dizer que convencionou conosco de fato
cumprir nossas determinações; desobedecendo-nos, é réu tresdobradamente: porque
a nós que o geramos não presta a obediência; porque não o faz a nós que o
criamos e porque, tendo convencionado obedecer-nos, nem obedece nem nos
dissuade se incidimos nalgum erro; nós propomos, não impomos com aspereza [52a] o
cumprimento de nossas ordens, e facultamos a escolha entre persuadir-nos do
contrário e obedecer-nos; ele, porém, não faz nem uma coisa nem outra. Tais são
os crimes, Sócrates, em que, se puserem em prática o teu plano, te declaramos
incurso, mais do que os outros atenienses." Se então eu perguntasse:
"Como assim?", talvez ralhassem comigo com razão, dizendo estar eu
mais do que os outros atenienses preso àquele compromisso para com elas.
[52b] Diriam: " Dispomos, Sócrates, de fortes provas de que nós e a cidade somos
do teu agrado. Tu não terias assistido nela mais do que todos os outros
atenienses, se ela não te agradasse mais do que a todos; mas nem para uma festa
jamais saíste da cidade, salvo uma única vez para os jogos do Istmo; nem para
qualquer lugar do exterior, a não ser como combatente; nem outra viagem jamais
empreendeste, como os demais, nem te deu vontade [52c] de conhecer outras cidades e
outras leis, mas nós e nossa cidade te havemos bastado, a tal ponto nos
preferias e convinhas em seres cidadãos sob a nossa soberania. Por sinal que
até geraste filhos nela, dando a entender que a cidade te agradava. Demais,
mesmo durante o processo, se quisesses, podias obter a condenação ao exílio e
fazer então, com o consentimento da cidade, o que pretendes fazer agora sem
ele. Então, bravateavas tu que não te revoltarias, se houvesses de morrer; ao
contrário, preferias, com declaravas, a morte ao exílio; mas agora não fazes
honra àquelas palavras, nem hesitas na tentativa de [52d] aniquilar a nós, as Leis;
fazes o que faria o mais vil dos escravos, tentando a fuga contra as convenções
e acordos, pelos quais te obrigaste para conosco aos deveres de cidadão.
Reponde-nos primeiro a esta pergunta: é verdade o que dizemos quando afirmamos
que te obrigaste aos deveres de cidadão sob nosso império, não em palavras, mas
de fato, ou é mentira?" – Que hei de dizer a isso, Críton? Posso
discordar?

Críton– Forçosamente que não, Sócrates.

Sócrates– "Que fazes", diriam, "senão
ladear as convenções e [52e] acordos que conosco firmaste sem coação, sem engodo, sem
a urgência de resolver em tempo exíguo, mas através de setenta anos, durante os
quais te era facultado emigrar, se nós te desprazíamos e se descobrisses serem
injustas as convenções? Mas tu não preferiste nem Esparta nem Creta, que vives
dizendo dotadas [53a] de boas leis, nem qualquer das outras cidades, gregas ou
estrangeiras; daqui não te afasta-te mais do que os coxos, os cegos e outros mutilados,
tanto, mais do que aos outros atenienses, te agradava a cidade, bem como nós,
as Leis, evidentemente; pois a que agradaria uma cidade com exceção das leis?
Agora, porém, não é? não manténs os compromissos! Sim, Sócrates, tu os
manterás, se nos atenderes, e não te sujeitarás ao ridículo de abandonar a
cidade. Vamos, reflete; ladeando os compromissos e cometendo semelhante falta,
que benefício trarás para ti e para[53b] teus amigos? Que teus amigos também
correrão o perigo serem exilados e privados de cidadania e de seus bens, está
fora de dúvida; quanto a ti, para começar, se partires para uma das cidades
mais próximas – digamos Tebas ou Mégara, que ambas têm boas leis- ali entrarás,
Sócrates, como inimigo de suas instituições; todos quanto zelam por suas cidades
te olharão de través, como um destruidor das leis; consolidarás a reputação de
teus juízes,
[53c] de sorte que pareçam haver-te julgado escorreitamente, porque todo
violador das leis bem pode ser tido como corruptor dos jovens e dos levianos.
Ou acaso evitarás, as cidades de boas leis e os homens mais morigerados? E
valerá a pena viveres com esse comportamento? Ou entrarás em contato com eles e
discorrerás, sem acanhamento… sobre o que, Sócrates? Sobre os teus assuntos
daqui? Sobre o supremo valor que tem para a humanidade a virtude, a justiça,
assim como a legalidade e as leis? E não achas que o papel de Sócrates se
manifestará indecoroso? [53d] Tens de achar. Admitamos que, afastando-se desses
lugares, vás para a Tessália, para junto dos hóspedes de Críton, porque lá
sobeja a desordem e a licença, e quiçá gostariam de te ouvir contar como foi
cômica a tua fuga da prisão, travestido, metido num surrão de couro ou noutro
disfarce habitual dos evadidos, e dissimulando esse jeito que é teu. Não haverá
quem diga que, homem de idade, com pouco tempo provável de vida, não te pejaste
de te agarres tão pegajosamente à existência, burlando as leis mais veneráveis?
[53e] Talvez, se não magoares a ninguém; caso contrário, irás ouvir, Sócrates,
indignidades incontáveis. Viverás de granjear o favor de toda gente,
assujeitado, a fazer o quê? senão levar a vida regalada na Tessália como se lá
tivesse ido para um banquete? E aquelas palestras sobre a
[54a] justiça e outras
formas de virtude? Por onde nos andarão elas? Oh! sim, é por amor dos filhos
que desejas viver, para os criares e educares! Mas, daí? Vais levá-los para
Tessália, torná-los estrangeiros de criação e formação, para que te fiquem
devendo mais esse benefício? Ou não será assim? Será que, estando tu vivo e
sendo eles criados aqui, terão melhor criação e formação sem a tua companhia,
pois teus amigos é quem cuidarão deles? Então, se partires para a Tessália,
eles cuidarão, mas não hão de cuidar se partires para o Hades? Se tem algum
préstimo deveras [54b] os que protestam, amizade, hás de admitir que sim. Não,
Sócrates; ouve-nos a nós que te criamos: não sobreponhas à justiça nem teus
filhos, nem tua vida, nem qualquer outra coisa, para que, chegado ao Hades,
possa alegas todas essas justificações perante os que lá governam. Está claro
que, com aquele procedimento, aqui não será melhor, nem mais justo, nem mais
pio, para ti nem para nenhum dos teus; nem lá será melhor, quando tiveres
chegado. Presentemente, partirás,
[54c] se partires vítima de injustiça, não nossa,
das Leis, mas dos homens; se porém te evades, retribuindo assim vergonhosamente
a injustiça, o dano com o dano, logrando próprios compromissos e acordos
conosco, em detrimento daqueles a quem menos devias lesar, de ti próprio, de
teus amigos, da tua pátria e nosso, nós, enquanto viveres, estaremos indignadas
contigo e, lá embaixo, nossas irmãs, Leis do Hades, não hão de te acolher com
benevolência, sabedoras do que nos procuraste arruinar [54d] na medida de tuas
forças. Oh! Não! não possa mais Críton persuadir-te a fazer o que ele dirá com
mais força do que nós !" Essa recriminação, Críton, meu querido
companheiro, fica certo, parece-me que as estou ouvindo, tal como aos
coribantes parece estarem ouvindo o som das flautas; é a ressonância mesma
dessas palavras que zumbe no meu íntimo e não me deixa ouvir a outrem. Por
isso, acredita-me, tanto quanto creio agora, o que disseres em sentido diverso,
di-lo-ás em vão. No entanto, se esperas algum resultado, podes falar.

Críton– Não, Sócrates; não tenho o que dizer.

[54e]

Sócrates– Então desistem, Críton, procedamos daquela
forma, porque tal é o caminho por onde a divindade nos guia.


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