Trabalho feminino – Crônica de Olavo Bilac

trabalho da mulher bonita</a

Trabalho feminino

 O
sábado, em que está sendo escrita esta crônica, arrasta-se aborrecido e
pesado, numa enxurrada de lama, sob o açoite frio dos aguaceiros, cheio de uma
melancolia que nada pode dissipar. Oh! estes dias de chuva! Deus sabe quanto
suicídio tem por causa a sua fúnebre tristeza…

Deixando
cair o livro que lia, o cronista levantou-se, abriu a janela, lançou um olhar
entediado ao céu e à rua.

Que
céu e que rua! Em cima uma planície cinzenta, manchada aqui e ali de nuvens
mais escuras, que crescem, estendem-se em cargas-d’água barulhentas e grossas.
Embaixo, lama e deserto… Os bondes que passam trazem as cortinas abaixadas,
lustrosas de chuva, bambas, ao áspero vento que as sacode. E não se vê
ninguém… Quem há que se atreve a afrontar a dureza desta úmida manhã, toda
de. choro e enfaro.

Mas
não… Lá vem, cosido à parede, um vulto apressa­do. É uma mulher. Mais perto
agora, distinguem-se-lhe as feições, as roupas encharcadas, sob o puído
guarda-chuva gotejante. A borrasca envolve-a, agasta-a, enraiva-se sobre ela,
com uma crueldade implacável. A velha saia preta, colada às pernas, vem barrada
de lama; os sapatos chapi­nham nas poças da água; e sempre cosida à parede, car­regando
um grande embrulho, tossindo e tremendo de frio, lutando contra a ventania
furiosa, lá se vai a pobre — fan­tasma da pobreza, vítima de uma dura sorte, em
busca do pão com que há de alimentar os filhos pequenos, e, quem sabe? talvez
também um marido malandro, que fica, no calor da alcova, contando as tábuas do
teto e fumando, enquanto a mísera tirita pelas ruas alagadas…

Em geral, nós, que só conhecemos as senhoras da nossa roda,
pensamos que todas as mulheres são melindrosos alfenins que qualquer
trabalho fadiga. Mas as que conhece­mos são as flores humanas, cuidadosamente
criadas na estufa da civilização; são uns encantadores e estranhos ani­mais,
metade anjos, metade demônios, tão sedutores e amáveis quando abusam da sua
influência celestial como quando abusam da sua
influência satânica… Essas são as que nasceram para ser servidas e adoradas,
como santas em nichos de ouro e prata, cobertas de alfaias e de jóias.

Mas,
por uma dessas, quantas mil existem que são a providência doméstica, o amparo
[*.**] da família [****] que as formigas, mais infatigáveis do que as abelhas,
mourejando da primeira luz do dia às horas cerradas da noite, entisicando sobre
a máquina de costura, perdendo as forças sobre a tábua de engomar, tisnando a
pele junto das chamas do fogão!

Ninguém
pensa nisso… Só, de quando em quando, um cronista melancólico, levado pela
própria tristeza a cuidar das tristezas alheias, demora a atenção sobre a
dureza da vossa negra sorte — ó mulheres pobres, que sois tão mais fortes do
que nós, na moral como no físico!

Ainda não há
três dias publicava A Notícia esta local: "Pela primeira vez, foi
enviado ao Ministério da Fazen­da um requerimento de uma senhorita pedindo para
ins­crever-se [***] concurso, a fim de exercer um emprego [***] Fazenda.

"Esse
requerimento foi à diretoria do contencioso, a fim de ser informado, e combateu
a pretensão, pelo que o sr.ministro da Fazenda
resolveu indeferir o mencionado requerimento."

Ora, as leis humanas não podem ter a infalibilidade que a
Igreja atribuí às leis divinas. A sociedade não pode sujeitar-se ao império de
uma lei absurda, somente porque ela é uma lei.

Sempre
que se agita esta questão das reivindicações femininas, escovam-se e
[***] os velhos chavões, e, com um grande ar de importância, os filósofos
decidem sem apelação que a mulher não pode ser mais do que o anjo do lar, a
vestal encarregada de vigiar o fogo sagrado, a depositária das tradições da
família… e das chaves da despensa. Todo esse dispêndio de palavras inúteis
serve ape­nas para encobrir a fealdade da única razão séria que podemos
apresentar contra as pretensões das mulheres: o nosso egoísmo, o receio que
temos de que nos despojem das nossas prerrogativas seculares — o medo de perder
as posições, as regalias, as honras que o preconceito bárbaro confiou
exclusivamente ao nosso século. Compreende-se: quem se habituou a empunhar o
bastão do comando não se resigna facilmente a passá-lo a outras mãos: é mais
fácil deixar a vida do que deixar o poder.

Por que não
há de a mulher poder exercer "um emprego da Fazenda"? Que há de
misterioso e sagrado de recôndito e impenetrável no exercício dessas funções
que, não possa ser devassado e apreendido pelo espírito de uma mulher?

Amar o
próximo e praticar o bem, praticar a caridade nos hospitais de sangue e nos
asilos civis., educar crianças — são tarefas infinitamente mais sérias do que
alinhar algarismos em livros, calcular taxas de cambio, aplicai tarifas e
computar perdas e ganhos. É pois preciso ter o cérebro de um Dante, de um
Comte, de um Bacon, para poder trazer e>m dia o livro do protocolo de uma
repartição pública ou para saber somar quatro colunas de algarismos?

Entretanto,
que bela experiência a tentar! O espírito da mulher tem sobre o nosso uma
incontestável superioridade: não é feito, como o nosso, de imaginação, de poder
criador, de invenção; é feito de bom senso, de prudência de tenacidade,
de paciência. Já alguém escreveu que  "a mulher que dedicasse à execução
de um plano financeiro a inteligência minuciosa e clara que costuma dedicar à
execução de um complicado plano de toalete, desbancaria talvez os melhores
economistas do mundo".

Em bom
senso, não as vencemos, como não as vencemos em economia.

Se todos quisessem ser sinceros, ou antes se não quisessem
enganar a si mesmos, quantos homens confessariam que os melhores atos de toda a
sua existência foram inspi­rados no recesso do lar, entre dois carinhos —
nessas horas de intimidade em que as mulheres sabem influir sobre o nosso
espírito sem mostrar o que estão fazendo, e cm que nós, inconscientemente, sem
humilhações para o nosso desmarcado orgulho, vamos pouco a pouco adotando as suas
idéias e abandonando as nossas, de maneira que, daí a pouco, exclusivamente
parece nosso aquilo que é exclusiva­mente delas!

Em economia,
então — que abismo entre elas e nós!

Não se trata, está claro, destas lindas e adoráveis senho­ras
do grande clã, deusas deliciosas, cujas mãos perfumadas foram feitas apenas
para dissipar o dinheiro…

Mas, nas casas pobres, que maravilhas de zelo, de poupança,
de milagroso comedimento nas despesas! Não têm conta as donas de casa que
reproduzem diariamente o milagre da multiplicação dos pães!

Quando
rompe a manhã, já a abelha humana anda há uma hora zumbindo e trabalhando. Não
há recanto da casa que escape à vigilância do seu olhar, não há providência que
seja esquecida pela sua inteligência sempre alerta. Oh! o doce milagre! com um
punhado miserável de dinheiro, é preciso alimentar os filhos, é preciso
vesti-los, é preciso educá-los, é preciso consolar o marido e cercá-lo de con­forto
quando ele é infeliz, é preciso viver com decência… O trabalho não se
faz sem lágrimas… A tarefa é rude, os pulmões se enfraquecem,
calejam-se as mãos, vai-se a beleza, perdem-se as graças — mas a casa
prospera… E. quando à noite, derreada e quase morta de cansaço, a heroína vai
sentar-se junto à máquina Singer para dar conta do serão, uma doce auréola
paira sobre a sua pálida cabeça de mártir do dever.

Ah! que orgulho o nosso! e não há homem que reco­nheça
esse sacrifício! e não há homem que deixe de atribuir à sua própria competência
enfatuada a prosperidade e con­forto que brotaram no seu lar, quando, quase
sempre, esses doces frutos são devidos às lágrimas e às gotas de suor com que
as mártires regaram o solo…

É singular! nega-se a quem é capaz de fazer tudo isso o
direito de aspirar a um lugar de amanuense de secretaria! Mas, por todos os
santos do Paraíso! se há uma lei que determina isso, revogue-se quanto antes
essa lei absurda!

Abram-se às mulheres todas as portas! Porque,
enfim, nós, os homens, já temos contribuído tanto para plantar  na Terra o
domínio da tolice e da injustiça — que não era mau saber se o outro sexo não
é capaz de ter mais juízo do que o nosso!…

s. a.

Gazeta de Notícias 18/8/1901

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