À BEIRA DO POUSO
Contavam casos. Histórias deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de inverno, envolta em brumas lá do céu triste e carregado, insuflava perfeita verossimilhança e vida animada.
Pela maioria, contos lúgubres e sanguinolentos, eivados de superstições e terrores, passados sob o clarão embaçado daquela mesma lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio aspérrima das solidões goianas.
Acocorados à sertaneja sob a copa desfolhada do pouso — um jatobá gigantesco —, "aquentavam" fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao narrador.
A cangalhada, vermelha à luz da fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-se em forma de toca ao pé da árvore, resguardando o carregamento, e, na necessidade, dado o mau tempo, todo o pessoal. Uma neblina leve e hibernal, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, embuçava ao fundo a campina, onde cincerros de tropa badalavam intermitentes.
E, sob aquele céu frio e austral de maio, estiolava-se ressequida a vegetação, tenra e rasteira dos campos goianos. O arrieiro, mestiço traquejado e serviçal, na sua voz grossa e arrastada de cuiabano, arrematava o final dum conto de lobisomem.
O silêncio pesado restabelecera-se debaixo da impressão sinistra daquela narrativa; e o Aleixo — um "caburé" truculento, amigo da boa pinga e frequentemente mudando de patrão pelo seu gênio teimoso e arreliado —, puxando para si o cuité fumegante de congonha e chupitando uma golada, começou assim:
— Naquele tempo viajava eu escoteiro, no meu ja-guané de fama, por estas estradas de minha terra; isso, noitão cerrada e véspera da Paixão. Manhãzinha, Deus servido, devia bater em Santa Rita pra negócio de precisão, e a lua só pela madrugada despontaria.
Marchava apressado, tendo a cortar todo um estirão de oito léguas bem puxadas para alcançar o arraial. Vai senão, ali nas alturas do Bugre, ouço passos cadenciados à minha frente. Olhei, o lugar era ensombrado, o caminho muito estreito e solapado não tinha desvio; e como lhes dizia, não havia luar.
Assim na sombra, assemelhou-se-me a dois homens baixos, conduzindo qualquer coisa, a modo de trouxa, num varão.
Naturalmente soldados em diligência para Santa Leopoldina, calculei.
Num claro do mato, achegando o animal, vi perfeitamente: eram dois negros acurvados, num andar ora lento, ora apressado, que levavam ao ombro uma rede de defunto.
Cravei as esporas no meu bicho pra ganhar dianteira que eu não arreceio um cabra de maus fígados, mas tenho uma ojeriza dos diabos a tudo que me cheira a defunto; e isso, desde aquela estopada onde o Policarpo viu que um "jacaré" não sai à toa da bainha, e que eu, apesar de simples camarada, não guardo desfeita para depois.
O bicho fiel certamente estranhou as rosetas, tanto que meteu num trote bruto de pôr tripas pela boca afora do peão mais desabusado.
Os pretos excomungados, sacolejando a rede, começaram a trotar lá adiante.
— Olá, gritei, param vocês aí com o defunto e abram–me passagem.
Os carregadores nem um pio, antes continuaram, arremedando, a correr duro, vergados sob o varão, cabisbaixos, e macambúzios.
Achei esquisito. Joguei o libuno a galope: galoparam também, ganhando distância, a desaparecer no sombreado espesso das árvores.
— Qual, isso ainda é efeito da beijoca que dei ali atrás ao frasco de cachaça, ia pensando.
Noutro claro, porém, lá tornei a enxergar os dois pretos condutores, arqueados e silenciosos debaixo da carga maldita. Iam depressa tanto como o meu punga.
O carreiro apertava, aprofundando-se; não tinha por onde talhar. Demais um travo de zanga subia-me à garganta.
— Eu lhes mostrarei, canalhas; estão caçoando comigo, seus bêbados, pois esperem aí.
Varei o meu bicho nas chilenas, e êle disparou à toda, que o terreno era um seu tico movediço, mas o animal, apesar de cansado era de fiança.
— E pegou-os?
— Qual o que seu Zé; os demônios abriram numa carreira de curupira, a fazer mais estrépito que o casco de meu bicho! Assim andamos bom pedaço, o carreiro mais estreito e solapado, o arvoredo mais fechado e carrancudo, o sítio mais escuro. Afinal, não ganhava nem perdia, e o pingo a resfolegar já bambo. Sofreei a marcha. Os pretos, bufando alto debaixo da carga, regularam logo sua andadura pela minha. Pus o sendeiro a passo: eles, do mesmo modo, pousados, em cadência, recomeçaram o movimento primitivo, a passo, desocupados.
Decididamente esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo. Os pretos imitando pararam. Fiquei ali móvel longo tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto o minguante principiava a tingir de açafrão a copa ‘"íolhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro.
Acoroçoado, reencetei a marcha; eles fizeram o mes-^Ono, e assim continuamos por mais de hora, eu calado, apertando nos dedos o cabo encerado do "jacaré", eles arcados, ^pousados, o fardo ao ombro, em cadência de soldados.
De supetão — desfiava eu o "creio-em Deus-Padre" de trás para diante mais uma vez — o carreiro desembocou num campo largo, coalhado de luar.
A lua deu de chapa nos dois carregadores. Adivinhem, se podem o que vi então, todo apalermado, assombrado mesmo.
— O "Cuca"! — aventurou tímido, um.
— Qual! uma vaca.
E pertante o assombro descomedido daquelas feições rústicas e encardidas de sol, o Aleixo arrematou com pachorra :
— Pois isso mesmo, os dois pretos arcados eram seus quartos escuros, e a rede de defunto, a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e apertado, ela não tivera por onde torcer; o escuro, a solidão daqueles lugares e — pra tudo dizer — o medo, fizeram o resto.
A companhia respirava aliviada.
O plenilúnio acinzentado e friorento de inverno, envolto em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava vida e animação às personagens fantasmagóricas daquelas histórias primitivas.
Cincerros badalavam intermitentes e sonoros na campina ao fundo, onde a neblina hibernal do sertão, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, abafava o horizonte.
Fumegando, a chocolateira fuliginosa e aromatizada de congonha passou de mão em mão, transbordando os cuités.
A fogueira — em brasa — tremeluzia.
Um outro tomou a palavra.
Hugo de Carvalho Ramos: Tropas e Boiadas. Editora Panorama, São Paulo, 1950, pp. 28-30.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962
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