A BOLA DE FOGO – Lendas e Encantamentos do Sertão

A BOLA DE FOGO

Quem visita aquela bonita cidade mineira, orgulhosamente adormecida nos macios coxins do sertão, fica conhecendo em seus arredores uma tapera que pertencera a antiga família e que constituiu a célula inicial do importante centro comercial de hoje.

Os montões de madeirame apodrecido e os muros es-borcinados são o que resta dos sonhos do passado, pois o destino foi virando as folhas do seu livro e muita coisa mergulhando no esquecimento. A tapera dos velhos bandeirantes é tudo o que ficou das grandezas olvidadas, predendo-se à história ou à lenda, como por exemplo o sugestivo episódio da Bola de Fogo.

Uma linda jovem, de nobilíssimo tronco paulista, encanto da família fundadora, atingia o limite perigoso dos trinta janeiros sem se ter prendido a nenhum mestiço do movel arraial. Isso se dera porque os pais tinham decidido queela, sua herdeira universal, só se casaria com um branco de boa estirpe e brazão. As paredes da vetusta mansão senhorial guardavam, ciosos, os sonhos da donzela de sangue altivo. E o esperado cavalheiro branco chegou um dia, pelos meados do século XVIII, época em que se desenrola o episódio desta página.

Tratava-se de um fidalgo espanhol, aprumado, ma-cheiroso, bigodes retorcidos, trajando de acordo com a moda, e coma sua durindana pendente da cintura. Gostava de contar bravatas, relembrando duelos perigosos e amores difíceis. Era um bom copo, prezava a companhia das damas e dava a vida para não pensar em coisas sérias. Mas era branco e tinha um belo nome, ambição da distinta moça. Era quanto bastava.

Viram-se, entenderam-se e casaram.

Revista de aristocrática mansão engalanou-se para receber o cavalheiro espanhol, já então rico senhor de fazendas e de minas de ouro daquele vasto sertão e de muitas léguas de terras além de Guiacuí.

Conduziu-se a contendo, durante a lua de mel, o esposo branco da descendente de paulistas. Mas veio o tédio, a uniformidade dos dias, a quietude impertubável do lar. .. O estrangeiro era inquieto e perdulário; tendo grande fortuna à sua disposição meteu-se na companhia de estróinas e conhecidos do momento, sacrificando assim o nome ilustre a que se ligara.

A dor entrou no coração da esposa, pois via morrerem as suas últimas ilusões. A ventura entrevista esboroava-se diante da conduta do marido. Êle perdia as estribeiras. O arraial indignava-se com o seu procedimento, mas o mal era irremediável. O dinheiro era atirado a mancheias pelos balcões do vício, ou pelas ínfimas tascas, freqüentadas por escravos libertos.

Xo auge da sua infelicidade e para restringir os des-ndos do fidalgo, reuniu o resto de todo o ouro do casal, encheu um enorme tacho do engenho e resolveu atirá-lo fora, tal o ódio, insopitável que lhe despertara o vil metal, responsável pela sua desdita.

Certa noite, com o auxílio de uma escrava, arrastou a sa carga até um rio próximo e precipitou-a do bar-rranco sobre as águas do profundo poço, famoso pelo remoinho.

Empobrecía, é verdade, mas destruía a causa do vício do marido e da sua prpria infelicidade. Nem assim o libertino pôs um paradeiro nos seus despautérios.

Foi muito comentado em toda a região o procedimento heróico daquela mulher. E muitos anos após, quando o gelo da morte a colheu para santa paz, os moradores do povoado viram muitas vezes, ao soar da meia-noite, uma bola de fogo a subir e a descer pelo rio, sem parar um só instante no mesmo lugar.

Essa bola de fogo marcava, no ponto em que surgia, o local preciso em que a decidida esposa precipitara o tacho de ouro, com o auxílio da escrava, que lhe jurara jamais recriar o seu segredo.

Affonso Schmidt, baseado em I. G. Americano do Brasil, em: Lendas e encantamentos do Sertão. Edições e Publicações Brasil, São Paulo, 75-77.

Fonte: Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Seleção de Anísio Mello. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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