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CAPITULO 19

POSTO AVANÇADO DE ATLANTES

-Eh! Jeremias !… Jeremias !… Era Sálvio, e falava em
voz muito baixa, ao meu ouvido. Estava tudo escuro e silencioso. Respondi no
mesmo tom:

—    Olá! Que houve?

—    Onde estamos? Onde está Quincas?

—    Não sei… Quincas l — chamei
levantando a voz.

—    Não grite. Estou aqui. Estamos presos.

—    Presos?! — admirou-se Sálvio. — Mas presos por
que?

—    Não sei… os atlantes devem sabê-lo.

—    Diabo.. . Parece que você está querendo me
acusar, Quincas?

—   
Não estou, não. Você não
tem culpa.

Ouvi
Sálvio soltar um gemido. Tentei levantar-me, e correntes metálicas se
entrechocaram. Eu estava preso a uma corrente, como se fosse um animal feroz!
Um cinto de metal me cingia a cintura e me prendia, pela corrente, a um poste
de madeira. Ao mesmo poste estavam presos os meus companheiros, de igual modo.
Levantei-me fazendo subir no poste a argola de metal que nele estava enfiada.
Quis tirá-la, mas não era possível. O poste devia ser muito alto. Tentei andar.
Não podia dar mais de dois passos em qualquer sentido. Fiquei furioso, e
gritei:

— Que
é que esses idiotas estão pensando? Quero que
me soltem!

Calma! Calma, Jeremias! Eu também estou acorrentado!

— Pois sim. Mas você é que teve a ideia de descobrir
velhas civilizações. É justo que seja vítima delas!

Vocês estão discutindo
à tôa. Isso não adianta nada. Não temos outro remédio senão esperar que
amanheça.

Sálvio nada
disse. Eu ainda resmunguei algumas palavras pesadas e depois mergulhei nos meus
pensamentos.

— Bonito! Fazer essa imensa viagem para vir acabar acorrentado a um
poste, como animal selvagem! Muito interessante! Quem sabe lá o que nos espera
daqui por diante! Quem sabe?

De qualquer modo, porém, como dissera Quincas, o mais acertado era
esperar. Nada podíamos fazer e, decerto, entregarmo-nos à irritação não era o
melhor modo de passar as horas.

O tempo que faltava para amanhecer custou terrivelmente a passar.
Lamentei-me o tempo todo, enquanto que dentro de mim crescia o receio pelo que
poderiam eles Cazor-nos.

Afinal, desde os primeiros clarões da aurora pudemos verificar a
humilhante situação em que estávamos. Cobria–nos imenso galpão, telheiro
coberto de palha. O! chão era do berra batida, muito bem nivelado, e nele se
viam fincâdos muitos postes iguais àquele que nos prendia. Cada um desses
postes se encontrava guarnecido de forte corrente igual às nossas. Durante
algum tempo inspecionamos em silênncio o que nos rodeava. Depois, falei:
Muito bem, Sálvío. Aqui estamos gozando as delícias da civilização dos
atlantes. Não é exato? Atlantes!.. . Porcaria. . . Isto deve ser o galpão dos
prisioneiros.

—  Perfeitamente. Deve ser isso. Mas, diga-me
Jeremias.. . para que é que você tem essa cabeça em cima dos ombros?

—  Não sei. Se o soubesse, não teria feito esta
viagem para permitir que me acorrentassem a um tronco, como

escravo.

— Você está bobeando. Use a cabeça.

— Agora
é tarde. Devia tê-la usado antes, quando estava em São Paulo. Agora, já não é preciso. Quem a vai usar, naturalmente, deve ser um desses
miseráveis antropófagos. ..

Nesse momento, Quincas interveio,
irritado:

—    Vocês parecem dois tolos! Para que é que estão
discutindo aí? Que adianta isso? O que está feito, está feito! Precisamos ter
calma e pensar.

—    É o que eu digo. Mas não sei que diabo é que
deu nesse Jeremias.

—    O que deu? Bolas! Deu que não estou acostumado
a ser tratado como um bicho selvagem! Só isso!

—    Escute — falou Sálvio com toda a calma. — Se
você e mais uma turma de companheiros vivessem num pedaço de terra onde
estivessem guardados tesouros, onde estivesse tudo quanto vocês mais amassem —
e de repente aparecessem três sujeitos estranhos — que é que você fazia?

Titubeei.

—    Bem.. . naturalmente… mandava-os voltar. É
isso! Mandava-os voltar, mas não os trataria como animais!

—    Isso é o que você diz agora! Você não tem nem
coragem de dizer o que pensa. O que você faria, eu sei: chamava os outros
companheiros, metia meia dúzia de balas no corpo de cada um dos estranhos, que
é o que se faz lá para os nossos lados.,.

—    Mentira! Eu jamais faria isso!

—    Bem. Admitamos, então, que você os faria
voltar. Mas diga-me uma coisa: que é que esta gente vem fazendo há muitos e
muitos dias senão convidar-nos a voltar?

—    Que? Voltar? É? Pois eu nunca ouvi nada a esse
respeito. Você ouviu alguma coisa, Quincas?

—    
Nenhum de nós ouviu, Jeremias.
Mas podíamos ter compreendido, porque é o que êles têm feito. Desde que saímos
do cemitério subterrâneo, procuram, por todos os meios, impedir que chegássemos
aqui. E sem usar violência. Podiam ter-nos matado dúzias de vezes, e não o
fizeram. Procuraram tornar a viagem impossível, foram–nos tirando tudo que
tínhamos. Mas, nós, teimosamente, continuamos, ignorando tudo. Conseguimos
chegar a um ponto onde lhes pareceu que o melhor era, afinal, ajudar–nos. Foi
quando apareceu aquele atlante para nos guiar, com provisões distribuídas ao
longo do caminho. Bem. Aqui chegamos. Eles nos têm em seu poder. Sabem que
somos teimosos, curiosos e infatigáveis. Resolveram tirar-nos a liberdade
temporariamente, até que possam saber melhor quem somos e que queremos. É
razoável! Acho que são muito humanos. No meu modo de ver, para evitar
complicações futuras eles deviam nos matar logo. Era mais seguro.

—    Acho que Sálvio tem toda a razão, Jeremias. Em
qualquer parte do mundo há cadeias e prisões para os invasores…

—    E quem é invasor? Eu?

—    Para eles, todos o somos. Lembre-se de que
eles não nos conhecem.

—    Pois bem. Chega! Nós é que não sabemos quem
são eles! Mas havemos de sabê-lo, e, decerto, quando isso de nada mais nos
valer! — recusei-me a continuar a conversa, Estava de mau humor. Aquela
corrente me deixava furioso. Pus-me a andar em redor do poste, enquanto os dois
continuavam a conversar.

Decorrida
meia hora talvez, apareceram por trás daj palissada dois homens, vestidos como
o nosso guia.


Aí estão os tais, Sálvio — disse eu. — Entenda-se com eles. Diga-lhes que não
somos uma nova espécie de macacos perigosos!

—    Eles o compreenderão logo.

—    Vá esperando… Se me tocarem, quebro-lhes a
cabeça!

Os dois homens nos observavam durante alguns momentos, enquanto
trocavam entre si palavras em língua estranhamente composta de monossílabos
suaves e de agradável tom musical. Depois, o mais alto deles apontou Sálvio.
Naturalmente, estava favoravelmente impressionado com a rósea careca daquele
louco. O mais baixo dirigiu-se ao nosso companheiro, abriu-lhe o cinto e
libertou-o. Esperava que nos fizessem o mesmo, mas enganei-me. Levaram Sálvio
para fora, sem nos dar atenção. Fiquei furioso:

— Olá!
Seus selvagens! Imundos selvagens! Nós também somos gente! Venham abrir esta
joça!

Mas ninguém se importou com o meu
apelo.

— Você já viu
que bandidos, Quincas? Vão nos matar um por um… Eu bem imaginava I Que é que se poderia esperar de bom dessa gente ? Estamos perdidos,
Quincas!

—    Que diabo! Você está impossível! Tenha um
pouco de calma… É claro que que eles querem saber quem somos e o que viemos
fazer!

—    Mas então, deviam ter-nos levado também! Não
me conformo. Quero sair daqui!

Quincas
franziu as sobrancelhas e sorriu com resignação. Encostou-se ao poste e fechou
a boca como quem não deseja dizer mais uma palavra.

O
tempo passava e Sálvio não aparecia. Ninguém aparecia. Pássaros cantavam ao
longe. Papagaios gritavam e o calor se tornava mais sufocante de momento a
momento. E a minha inquietação crescia.

—    Quincas…

—    Que é?

—    Que será que aconteceu com o Sálvio?

—    Não sei.

—    Será que ele volta?

—    Acho que sim…

—    E se o mataram?

—    Então, não.

—    Será que êíes estão fazendo alguma coisa ruim?

—    Como é que eu posso saber?

—    Puxa! Também você não sabe nada!

—    Mas como é que eu hei-de saber disso? Não
estou aqui junto àe você?

—    Mas você tem prática dessas coisas, desses
selvagens!

—    Esses homens não são selvagens…

—    Que são, então?

—    Não sei. Não os conheço. Não são atlantes?

— Bem! Chega! Chega! Não se pode conversar
com
você!…

Quincas
lançou-me um olhar feroz e ia dizer qualquer barbaridade, quando um atlante
surgiu no extremo da palitada.

— Lá vem um. Prepare-se para morrer, Quincas.

O
homem aproximou-se e nos abriu os cintos. Depois, encaminhou-se para a
palissada, fazendo sinal para que o seguíssemos.

— Para onde vamos? — perguntei, sem me
mover.
Ele não respondeu. Deu mais um passo e fêz-nos nova
mente o sinal. Embirrei:

—    Quero saber para onde vamos! — e não me mexi.
Quincas, porém, já dera alguns passos, mas parou. O atlante voltou e,
segurando-me pelos ombros, impeliu-me para a frente. Achei o gesto
intolerávelmente atrevido, e, perdendo o senso, dei-lhe um soco no peito, ao
mesmo tempo em que berrava:

—    Não me encoste a mão, seu fóssil! Não sou
selvagem como você!

O
atlante ficou aturdido por um momento. De repente, pregou-me uma bofetada tão
forte que eu recuei, cambaleei e acabei caindo. Mas, imediatamente, levantei-me
e me, lancei ao homem, cego de furor, enquanto ouvia confusamente os gritos de
Quincas:

— Tenha juizo, Jeremias! Tenha calma! Você vai nos perder!

Enquanto ele gritava eu dava socos e pontapés com toda a violência de
que era capaz. O atlante lutava, procurava se
defender, mas, evidentemente, não era forte nesse gê-nero de luta. De
qualquer modo, cada vez que um dos seus socos me acertava, eu via estrelas.
Afinal, a algazarra atraiu gente. Vi um grupo de atlantes correndo para o nosso
lado. Depois foi um rolo, uma gritaria infernal e em poucos momentos, eu me
debatia no chão, muito machu-oado, aturdido e sem poder me levantar. Foram
cruéis comigo. Fizeram-me ficar de pé e empurraram-me ao longo de um caminho
ladeado de árvores, que ia dar numa ciareira, onde havia grande número de casas
de pedra exata-mente iguais àquelas que havíamos encontrado na margem do Xingu.
Fomos para uma. delas, que estava isolada em meio a um jardim. Dois atlantes
ficaram ao meu lado, me amparando, e os outros se foram. Quincas procurava me
confortar, mas para dizer a verdade eu não lhe dava ouvidos. Estava confuso,
abatido, envergonhado, dolorido, e mal reparava nas coisas em meu redor. Pouco
depois, os dois atlantes nos fizeram seguir um corredor comprido que nos levou
a vasta sala. Ao fundo, sentado à mesa, estava um velho de longa barba
grisalha. De pé, ao lado dele, estava Sálvio. Este, assim que nos viu, correu
para mim, pegou-me nos braços e perguntou:

—    Que é isso? Que aconteceu com você?

—    Ele agrediu o atlante, e houve barulho —
respondeu Quincas.

Eu
estava com uma raiva louca. Quincas também era contra mim. Depois, encarando
Sálvio e falando com dificuldade, porque tinha os lábios feridos e inchados,
respondi :

— Eles
pensam que somos selvagens… mas eu lhes
mostrei que estão muito enganados… — disse-lhe com
ênfase.

Fizeram-me sentar num banco e Quincas sentou-se a meu lado. Pouco a
pouco, fui me refazendo — e pude observar. Sálvio voltara para junto da mesa
onde estava o velho. Notei, então, a presença de outra pessoa -— que não era
atlante. Era, evidentemente, um indígena brasileiro, alto, desempenado,
extraordinariamente musculoso. Trazia vistoso cocar de penas multicores e uma
tanga de cores vivas, enfeitada com franjas. Nos braços e pernas, braceletes de
penas coloridas e conchas, e calçava uma espécie de sandálias de couro cru.
Estavam um pouco afastados e falavam baixo. O esforço que fiz para prestar
atenção acabou me cansando. Ouvia-os longe e, cada vez menos — até que tudo se
desvaneceu.

* * *

Acordei estendido numa rede num quarto muito claro. Com grande espanto
verifiquei que estava nu e com o corpo coberto de uma camada de verniz seco,
que me incomodava terrivelmente. Estava literalmente envernizado, dos pés à
cabeça. Mas não sentia dor alguma — e compreendi que esse verniz devia ser um
unguento com o qual haviam curado os meus males e acabado com todas as dores
que herdara da luta com os atlantes. Ora, isto, melhor do que todas as
palavras, era propício a me fazer pensar com relação aos nossos hospedeiros.
Não podiam ser tão selvagens se assim procuravam minorar os meus sofrimentos.
Sentei-me na rede, com os pés tocando o chão e vi ao meu lado, sobre uma banqueta, algumas peças de roupa, que,
decerto, não eram as minhas.. . Deviam, porém, ser para mim, mas, de qualquer
modo, eu não me poderia vestir assim todo envernizado. .. Caminhava com
dificuldade por cansa daquela película seca que se me agarrava à pele. Cheguei
até a porta e abri-a. Era.. . um quarto de banho! Sim, senhores! Um quarto
claro, e o chão, no centro, escavado em forma de banheira cheia de água, uma
água clara e límpida, que convidava à imersão…

Meia
hora mais tarde, eu estava elegantemente vestido à última moda atlântica.
Quanto às dores… nada! Era como Mo jamais em minha vida tivesse brigado. Sai
do quarto,; Caminhei pelo corredor e, à entrada da sala, ouvi as conhecidas
vozes dos meus amigos. Assim que passei os umbrais, vieram os alegres
cumprimentos:

—    Muito bem! Sim, senhor!

—    Salve ele! Que elegância!

Quincas
e Sálvio estavam, como eu, vestidos à moda atlante e bem
elegantes, devo dizê-lo. Abraçamo-nos.

—    Então, Jeremias.. . como se sente?

—    Muito bem. Muitíssimo bem. Quincas, observou:

— Caramba!
Você ontem estava positivamente endiabrado! Que é que lhe aconteceu?

— Nada!
Estava safado com aqueles homens. Você viu
como aquele patife me agrediu?

—   Não diga isso, Jeremias! Ele não o agrediu coisa
nenhuma. Você é que lhe deu um soco no peito, sem mais nem menos. Se não
tivesse feito isso, tudo teria corrido muito bem…

—   Mas, será possível, Quincas?! Você queria que eu me
deixasse tratar como um selvagem?

—   Deixe disso, Jeremias. Ele foi até delicado. Você
estava francamente intolerável.

Sálvio interveio:

—   Vamos deixar de discussões inúteis! — e, mudando de
tom: — Você viu que maravilhoso remédio eles lhe aplicaram, Jeremias?

—   É verdade! Que diabo é aquilo ?

—   Não sei. Untaram-lhe o corpo ontem à tarde com um unguento
e disseram que hoje você não sentiria mais nada.

—   E não sinto mesmo. Dormi como um abade, e não sinto
coisa alguma. É como se nunca me tivessem machucado, esses selvagens…

—  
Lá vem ele de novo —
resmungou Quincas.

—   E como vão as coisas? — perguntei. — Você ontem estava
todo entretido com aquele barbaças. Quem é ele?

—   Vai tudo bem. O barbaças é o Chefe do Posto Avançado.

—  
Posto Avançado?

—   Sim. Em qualquer lugar, lá para dentro das selvas,
entre montanhas, está o Núcleo Central dos Atlantes. Pelo que pude perceber, é
uma espécie de império religioso. Em torno do Núcleo Central, a grande
distância, há um círculo de Postos Avançados como este, que velam pela
segurança do Núcleo.

—   Por que todas essas precauções? Que é que existe lá no
centro, entre as montanhas?

—   Não sabemos ainda. Mas procuraremos saber. Estamos
lidando com um povo muito inteligente. O velhote me fêz tantas e tão hábeis
perguntas que ficou sabendo de nós tudo quanto quis. Aliás, eu nada tinha a
esconder…

E sabe de uma coisa? Eles exterminam todos os
estranhos que se aproximam.

—  
Então.. . quer dizer que
nós…

—   Creio que não. Por enquanto, estamos a salvo, graças
ao muirakitã e ao desenho que consegui reproduzir para ele. Quando viu as duas
coisas, o velho curvou-se respeitosamente. Foi água na fervura. Tratou-me com
todo o respeito daí por diante. Disse-lhe que desejávamos ir ao Núcleo Central,
mas ele respondeu-me que isso seria impossível. Depois de muita insistência e
discussão, acabou concordando em mandar um emissário com as novidades, para
trazer uma resposta. Teremos que esperar e, enquanto isso, estamos em
liberdade.

—   Está bem. Melhorou muito. Vamos dar um giro, então.

—   Vamos. Mas olhe que não há nada que ver, além das
casas e dos homens. Conversar com eles não podemos, porque não os entendemos.
As casas são todas de pedra, como aquelas que já vimos. E em volta há campos de
cultura.

—  
Vamos. Vamos tomar um
pouco de ar.

* * *

Havia atividade no grande pátio de terra batida. Homens e mulheres se
entregavam a diversos trabalhos. Dois homens lidavam com um grande covo, que
iriam lançar, decerto, ao rio próximo. Lá no extremo do pátio, algumas
mulheres, acocoradas diante de um monte de argila, modelavam objetos de
cerâmica. Havia ao lado quantidade de vasos, pratos e outras coisas, prontas.
Mais afastado, o forno de cozimento e, sob uma grande árvore, algumas jovens
pintavam atentamente os exemplares já terminados. Toda aquela gente estava
satisfeita e o ar impregnado de alegria despreocupada e feliz como eu não via
há muitos anos, desde a minha infância.

Olhavam-nos
com curiosidade e simpatia. Sem hostilidade.

Passamos
pelo grande portão e deixamos para trás a paliçada que cercava toda a aldeia;
metemo-nos na trilha que, entre a paliçada e o bosque, parecia dar volta àquele
estranho acampamento. Transpusemos o galpão dos prisioneiros, onde já tínhamos
ficado algumas horas. Ali estavam os troncos, cada um com a sua corrente
enrolada.

—   Eles devem ter muitos inimigos — disse Quincas. — Se
não os tivessem, não precisariam de todos esses postes.

—   Pode ser coisa do passado, Quincas.

—   Não parece, Sálvio. Está tudo muito bem conservado,
muito limpo e pronto para entrar em ação a qualquer momento…

Depois de
examinar o galpão, tomamos um largo caminho que se dirigia, para o espesso da
mata. Era um caminho amplo e limpo, coberto de areia recentemente colocada. À
medida que avançávamos, eu sentia um aperto no coração, uma sensação
desagradável. Atravessamos depressa a mata e entramos numa região acidentada.
Chamou-nos logo a atenção certa particular disposição dos rochedos, numa colina
um pouco afastada. Os três o sentimos ao mesmo tempo e apertamos o passo em
direção à colina. Pouco depois, profundamente emocionados, verificamos estar
num local de culto, como aquele que encontráramos destruído à margem do Tocantins,
pelo princípio da viagem. Ali não corria regato, mas lá estavam os assentos em
anfiteatro, e diante deles o altar intacto. Era esse altar simplesmente uma
laje de pedra quadrada, pousada sobre quatro colunas de pedra também. Mudos de
emoções rodeamos a construção, e atrás do anfiteatro encontramos a mesma
inscrição que já víramos no outro:

"ESTE
É O TEMPLO

AS DEUSAS E OS DEUSES
PODEROSOS DO

CÉU
DÃO TODO O PODER AO GRANDE
KARAY,

MORUBIXABA DOS BRASIS"

Estávamos de novo mergulhados no mundo de sonho, mas desta vez, não sei
porque, eu não sentia aquele deslumbramento, mas apenas sensação estranha e
indefinível.

Ficamos muito tempo observando a inscrição
fascinante e, depois, fomos ver de perto a grande laje do altar, que era a
única coisa que realmente não conhecíamos. Aproximamo-nos, e a impressão de
horror cresceu. Ao chegarmos ao seu lado, eu me adiantei. A pedra, que era
levemente côncava, tinha um orifício no centro e estava toda coberta de uma
crosta escura.

— Que é isto? — perguntei
passando o dedo.

Olhei
meus companheiros. Estavam ambos com indefinível expressão de horror no rosto.
Eles haviam compreendido o que eu não compreendera, à primeira vista.

— Sangue..
. sangue seco! — murmurou Quincas, num
sopro.

— Sangue
humano! — gritei eu, estranguladamente cheio de horror, esfregando
freneticamente o dedo que passara sobre a crosta escura. E, de repente, numa
revolta, acrescentei: — Agora sabemos para o que servem os postes do galpão!

Mudos,
tontos, insensíveis, caminhamos para um lado. Por entre a confusão de meu
espírito, parecia reconhecer o terreno. Comigo na frente, descemos o declive,
como que atraídos por estranha força. De repente, o terreno apresentou uma
queda brusca, a pique e eu parei à beira do precipício. Olhei para baixo.


no fundo, a uns vinte metros, havia uma confusão de coisas brancas. Meus olhos se
recusavam a "ver", mas não houve outro remédio. Eram ossos
humanos!
Crânios, tíbias, fémures…

Passou-me pela mente, então, aquele outro monte de ossadas igual a
esse…

De repente, tudo começou a rodar vertiginosamente em redor de mim.
Depois escureceu. Vacilei. Senti que ia me precipitar sobre aqueles restos
humanos.

 

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