Continued from: A Cidade Perdida - Jerônimo Monteiro
CAPITULO 3
DA DISCUSSÃO… NASCE A LUZ
ESTE CAPÍTULO TRATA AINDA DE ARQUEOLOGIA E OPINIÕES científicas. O leitor poderá pulá-lo, se
quiser, passando logo ao 4, onde começa a ação. Mas, como é um capítulo curto,
se puder lê-lo, melhor. Sempre se esclarecem algumas coisas nele.
* * *
À noite, Sálvio recebeu-me em seu quarto como se nada de anormal se
tivesse passado. Conversamos, nos primeiros minutos, sobre coisas sem
importância. Depois, intencionalmente, ele perguntou: I
— E então?
— Não estou muito convencido ainda. Acho absurdo
‘ que uma grade de ferro que não se sabe de onde veio tenha uma inscrição capaz
de levar dois homens a fazer uma viagem como essa. E há alguns pontos obscuros,
que desejo ainda discutir com você.
—-
Está certo. Mas ouça: Quando Champollion descobriu a célebre pedra
"Rosetta" e com ela encontrou a chave para decifração dos
hieróglifos, todos acharam que ele estava maluco. Não quero fazer analogias,
mas é evidente: associo todos os
elementos de que dispomos sobre a pré-história
do Brasil e as tradições religiosas do passado, para chegar a uma conclusão
lógica — e você vem me dizer que é loucura. . .
—
Mas, escute…
— Espere! Você não compreende, então, que é
necessário fazer concessões às lendas e à tradição para chegar a alguma Verdade
que tem raízes muito fundas no Passado? Você não sabe que todas as lendas assentam
sobre fatos verídicos? Alteram, modificam ou deturpam a verdade inicial, mas a
essência dos fatos primitivos lá está, intacta no punho da versão fantasista.
E, se não sabia, fique sabendo agora do seguinte: a arqueologia brasileira
registra enorme quantidade de inscrições rupestres de caráter mágico. Mesmo os
colecionadores dessas inscrições podem ignorar isso. Mas eu,
como muitas outras pessoas, sei-o perfeitamente. A magia e a história dos povos
primitivos estão tão intimamente ligadas que é impossível estabelecer-se as
suas fronteiras…
— Ora! E você teimando! O Angyone Costa, que é
autoridade em arquelogia, diz que as inscrições rupestres do Brasil não têm
significação alguma. Segundo ele, não passam de divertimento dos índios, ou
marcações dos bandeirantes.
— É opinião dele, da qual eu, e muitos outros
comigo, discordo. Considere que as inscrições estão gravadas em rochas
duríssimas, que têm resistido à ação dos séculos. Para se gravarem traços e
figuras nestas rochas, foi preciso aos indígenas usar de outras pedras que o
atrito ia gastando. Há inscrições que devem ter levado muitos meses para se
completarem. Você acha, acaso, que isso é divertimento? A verdade é que elas
eram feitas por uma seita especial de sacerdotes, ou "sábios", que só
faziam isso, com um fim determinado. Qualquer um percebe que há algo mais sério
aí. Além disso, não se pode aceitar um dilema disparatado como esse: "de
índios, ou de bandeirantes". E por que não há referência alguma,
nas histórias das bandeiras, a essas inscrições? Por que os bandeirantes que
voltavam não falaram, jamais, dessa prática?
Eu
começava a vacilar, mas, como para justificar a minha atitude da madrugada,
teimei:
— Bem. Mas não e só Angyone. Aníbal Matos também
acha que as nossas inscrições não têm significação alguma, a não ser quando
indicam fontes, pouso de caça, grutas e outras coisas de utilidade imediata dos
matos.
— Não é bem assim. Aníbal Matos admite que as
inscrições possam ter significado diferente e diz que algumas podem ser apenas
isso que você referiu. Ele aceita as conclusões da pré-história no pé em que
elas se apresentam porque, como Ladislau Neto, não quer se antecipar às
descobertas que só explorações estafantes e bem orientadas, com estudos
minuciosos, podem realizar. Quando a arqueologia fôr tomada a sério em nossa
terra, e todos os pontos de prováveis jazidas pré-históricas forem investigados
com a atenção que merecem — então saberemos coisas que agora nos parecem
absurdas, mas que, à medida que forem surgindo, nos parecerão, então, perfeitamente
normais. Além disso, note que as pedras gravadas com inscrições não se
encontram só nas matas. Também se encontram nas praias, nos campos, nas margens
dos rios. E outra coisa: os bandeirantes teriam a preocupação de indicar pontos
de caçadas e de pouso mais especialmente lã pelos lados da Paraíba, do Rio
Grande do Norte e de Pernambuco, esquecendo-se disso em outros lugares?
— Pois sim. Tudo isso é bonito. Mas a verdade é
que muitos sábios se interessam pela pré-história brasileira e nada do que
você diz ficou provado até agora.
— Muitos sábios? Ora essa! Diga
"poucos". E bem poucos, até! Peter Lund, por exemplo, interessou-se
pela nossa pré-história e recolheu material de grande valor, imenso mesmo, para
um só homem. Ele estabeleceu, por exemplo, a existência do "Homem
Lagosantense" e levantou o véu de um passado muito mais remoto para o
homem americano, do que ninguém ousaria esperar. Aníbal Matos e seus
continuadores descobriram o "Homem de Confins", também
de veneranda antiguidade. No Baixo Amazonas foi descoberta essa preciosa
cerâmica marajoara, que é indício indiscutível de grandiosa civilização.. .
—
Civilização que só
produziu cerâmica?
— Você não gosta mesmo de usar o cérebro,
Jeremias! Tudo tem que lhe ser explicado minuciosamente! Havia, ao longo do
baixo Amazonas, até a sua imensa foz, uma grande civilização. Enchentes
catastróficas do rio, ou outras coisas tão sérias quanto essa, destruíram tudo.
Os que se salvaram do desastre não tinham, decerto, meios para reconstruir a
civilização desaparecida, mas podiam reproduzir a arte da cerâmica, cuja
matéria-prima não faltava. Considere que quando um povo começa a se preocupar
com a arte, a beleza, o enfeite dos seus objetos de uso — já avançou muito em
civilização material. Concorda comigo?
— Concordo. Mas, quanto às inscrições, nenhum
sábio achou ainda relação entre elas e as passadas civilizações de que você
fala.
— Claro. Não se encontrou a chave ainda. E nem
se fêz empenho em encontrá-la. Os sábios da Europa não nos dão ouvidos. Os
especialistas na matéria não nos dão importância. Não querem examinar os
elementos constantemente renovados que se apresentam para provar que o nosso
continente é o mais antigo e que os amerígenas, os homens de raça vermelha da
América, vêm da Era Terciária e são, portanto, os primeiros habitantes humanos
do globo terrestre.
— Isso é pouco positivo. É matéria demasiado
discutível. Não existem provas insofismáveis. O crânio de Neanderthal…
Sálvio interrompeu-me bruscamente.
— Qual
crânio de Neanderthal, qual nada! Você é que está impossível! Até ontem, não
discutia coisa alguma. Aceitava o que eu lhe dizia e parecia disposto a ir ao
fim do mundo! Agora,- de repente, deu para duvidar até do que está entrando
pelos olhos! Pois fique sabendo que, queira-o ou não o queira a ciência oficial,
o "homo americanus" foi o mais antigo do globo, e que, por isso
mesmo, pouco se está incomodando com as opiniões em contrário do sr. De
Quatrefages, ou de quem quer que seja!
Ê fácil ver que Sálvio ia se exaltando, e se eu opunha resistência era
apenas para continuar coerente com o ar-roubamento daquela madrugada. Em
verdade, acreditava no deslumbrante passado da América, e estava de acordo com
o meu amigo. Ia ceder, portanto, quando me lembrei de levantar mais uma dúvida:
— Está bem, Sálvio. Concordo. Mas responda a
mais uma coisa só: os petróglifos brasileiros têm realmente um significado
oculto?
—
Não. Absolutamente, não
têm.
—
Não!?
— Claro que não. Têm significado
"desconhecido" para nós. Mas quem os fêz não teve a intenção de
ocultar coisa alguma, muito ao contrário. Quando descobrirmos a chave, a nossa
"pedra de Rosetta" — tudo ficará claro.
—
E por que ainda não se
descobriu a chave?
— Bem.. . É preciso notar que a escrita
pré-histórica brasileira não se assemelha a nenhuma das outras já estudadas. Se
tivesse semelhança, a sua significação não seria mais segredo.
—
É claro.
— Isto é extremamente importante, e devia
apaixonar todos os criptógrafos do mundo. Sabe a que conclusões já chegaram os
que se dedicaram ao assunto? Que è. escrita pré-histórica brasileira
deve ser considerada a mãe de. todas as outras escritas do mundo, porque todas
estas apresentam certos caracteres quase-fixos da nossa…
—
Claro. Continue.
— Entre as escritas mais antigas estudadas — os caracteres sabeanos,
cretenses, megalíticos, etruscos, pré–históricos do Egito, berberes,
sumerianos, bem como os antigos alfabetos gregos, fenícios, hebraicos e
ibéricos — encontram-se inúmeros sinais, uns idênticos e outros semelhantes aos
75 caracteres pré-históricos do Brasil, referidos e estudados por Alfredo
Brandão. Veja, agora, a conclusão lógica a que isto conduz: "Em todos os
alfabetos e caracteres escritos do mundo antigo, embora não sendo eles iguais entre si, encontram-se muitos iguais aos caracteres
pré-históricos brasileiros".
— É assombroso! Positivamente assombroso!
— É verdade verificada. Aliás, o confronto não
traz grandes dificuldades. Qualquer um o pode fazer. É verdade, pois, que a
escrita-mãe, de onde todas as outras derivaram e que gerou todos os alfabetos
do mundo — é aquela que foi usada pelos antigos habitantes da América do Sul, e
cujos vestígios até hoje podem ser encontrados. Daqui saíam os grupos que,
fixando-se em outros pontos da Terra, levavam consigo esse importante
conhecimento que, depois, evoluía e se modificava segundo as necessidades e
contingências peculiares a cada região. Alguns desses grupos, Forçados por
circunstâncias que não conhecemos, regrediriam e se tornaram selvagens,
perdendo o conhecimento da escrita. Outros, defrontando condições favoráveis,
progrediram, evoluíram, fundaram grandes civilizações, aperfeiçoaram o sistema
de escrita até o transformarem na forma atualmente usada. No entanto…
— Chega! Chega! — interrompi. — Não fale mais!
Esqueça a minha atitude desta manhã. Estou de acordo com você. Deixe ver o roteiro
e …
— E que, Jeremias?
—
Partiremos amanhã, Sálvio!
CAPITULO 4
QUINCAS CONTA UMA HISTÓRIA INTERESSANTE
No MAPA, A GENTE CORRE
O DEDO E DIZ:
—
Até aqui, vamos de trem. Depois, vamos de jardineira até ali. Em seguida, vamos
a cavalo até…
Mas quando a gente entra numa segunda classe (não havia dinheiro para
"luxos") e se põe a rodar dia e noite sobre trilhos mal ajustados —
então começa a encarar as coisas de maneira um tanto diversa.
Nas primeiras
doze horas, inda passa. O entusiasmo é sempre maior que o cansaço. Admira-se a
paisagem, con-versa-se e tudo distrai. Depois, começa o inferno. O sacolejar do
trem, que a princípio não se notava, martiriza os ossos. A trepidação,
ininterrupta, abala os nervos. A poeira irrita os olhos e a garganta. A imundície,
que se acumula por todos os cantos, e a fedentina enojam. A economia não deixou
espaços entre os bancos, para se estender as pernas. A madeira é rude como o
diabo, e vai esfolando a espinha. Um verdadeiro inferno. E a gente, de toâo
o coração, concorda com Monteiro Lobato: "O único melhoramento que
falta nas estradas de ferro nacionais é canalizar a fumaça da locomotiva para
dentro dos carros de segunda classe." Aí, ficaria o conforto atingido, de
acordo com a ideia que nele fazem os dirigentes das estradas com relação
aos passageiros que não têm meios para viajar de primeira.
Depois de infinitas horas de suplício, chegamos a Anápolis, no Estado
de Goiás, cidade sem conforto. Pelo que nos disseram, Goiânia, que não é longe,
está ficando uma beleza de cidade, moderna, com todos os melhoramentos.
Levávamos de
São Paulo recomendação para o Quincas, que logo encontramos. Era rapaz moreno,
curtido pelo ar livre, homem de poucas palavras e de poucas carnes — todo
músculos. A nossa conversa com ele não teve dificuldades.
— Pois é, seu Quincas. Disseram-nos que você
conhece tudo por aí a fora, os matos, os rios, o sertão…
— É… a gente conhece. Nasci em Palma, e a
minha vida tem sido sempre andar por aí.
— Quererá ir conosco?
— Quero, como não!
— Mas se você nem sabe para onde vamos, nem o
que vamos fazer…
— Não m’importa. Já estou parado aqui há seis
meses. Preciso andar um pouco, para desenferrujar, e o que vão fazer, isso é
com os senhores.
— Você já tem guiado exploradores?
— Várias vezes.
— E quanto costuma ganhar?
— Conforme. Qual vai ser o serviço? Diamantes,
ou ouro?
—
Nem diamantes, nem ouro.
Quincas olhou-nos com ar sabido, sorridente.
— Todos dizem o mesmo. Depois, passamos dias e
dias revirando areia, lavando cascalho, enterrados na lama até à cintura.
— Você não precisa acreditar em nós — disse eu.
— Mas a verdade é essa. É claro, porém, que se apresentar uma boa oportunidade,
não deixaremos de tentar a sorte para aumentar a nossa fortuna…
— Que é pequena demais — completou Sálvio. — Não
poderemos desprezar oportunidade alguma. Mas garantimos que nossa intenção não
é essa.
Devia haver em nossos rostos algum elemento de franqueza evidente que
faltava às palavras.
Quincas abriu o rosto num sorriso franco e apertou-nos as mãos,
dizendo:
— Gosto assim. Não me agradam esses estrangeiros
que vivem atrás de ouro e diamantes e que até parecem ficar loucos. Todos os
anos surgem alguns por aqui e pagam muito bem. Tive viagens de ganhar cinco
contos limpinhos.
— Não lhe poderemos pagar isso, Quincas.
— Já percebi. Não faz mal.
— Poderemos, quando muito, pagar-lhe, pelo fim
da viagem, uns dois mil cruzeiros. Mas se encontrarmos ouro, ou pedras
preciosas, você terá a metade de tudo.
— Combinado. Que vamos fazer? Consultei Sálvio
com o olhar.
— Não sei se você vai compreender — disse ele.
—
Mas temos obrigação de ser sinceros com você —. continuei. — Embora não
acredite em nós, diremos a verdade. Vamos ao centro do Brasil, procurar os
restos de uma antiga civilização.
A expressão de
Quincas modificou-se de tal modo que Sálvio indagou:
— Que há? Parece que você se assustou,
Quincas…
— Não. Não me assustei, não. Podem contar
comigo.
— Mas há qualquer coisa…
— Bem… É
que já passou por aqui um moço que partiu para o sertão com o mesmo fim.
Sálvio sobressaltou-se. Sua careca empalideceu.
—
Um moço? Quando? Quem era ele?
E que conseguiu?
— Chamava-se Leandro, e falava mal a nossa
língua. Usava óculos escuros, capacete branco e roupas complicadas. Quando via
pedras com riscos ficava alucinado. Acho que era louco, mas meu pai…
Sálvio interrompeu-o de maneira violenta, como jamais o vi fazer.
Agarrou os ombros de Quincas e perguntou, olhando-o firmemente nos olhos:
— Que fim levou esse moço,
Quincas? Quando foi isso?
— Vai fazer dez anos. Eu tinha 15 e acompanhei a
expedição. Meu pai era o guia. Ele sim, conhecia tudo, todo esse mundo de Deus!
Mas ele e Leandro sumiram. Nunca mais voltaram!
Aquele
esboço da história de Quincas nos deixou fascinados. Pedimos que continuasse. A
noite estava quente, mas começava a soprar brisa agradável. Nós estávamos
sentados sob o alpendre do bar — um puxado coberto de folhas de palmeira, e bebíamos
uma espécie de cerveja de fabricação local, nada desagradável. Vinte metros
além começava a mata, cerrada, misteriosa, sombria — e dela chegavam até nos
cricris, pios, guinchos e coaxos estranhos. Quincas, com sua
camisa de meia através de cujos rasgões se via a pele bronzeada desenhando
músculos possantes — era figura bem colocada no cenário semi-selvagem. Sálvio,
a careca brilhando à luz do lampião de querosene, era a figura da impaciência. Ele
teimara em vir sem chapéu, apesar de tudo o que lhe falei sobre insolações e
cefaléias. Pensei até que esperava conseguir, com o crânio assim exposto ao
tempo, uma nova produção de cabelos. Já eu, não. A longa exposição da cabeça ao
sol dava-me horríveis dores, e, por isso, viera munido de um
"colonial" de palha, fresco e leve.
— Não
sei como explicar — continuou Quincas enquanto eu pensava na careca de Sálvio.
— Eu andava pelos 15 anos. Meu pai era homem seco, duro como cerne de palmeira.
Para ele não havia dificuldades nem perigos. Construía uma canoa sozinho;
varava sertão durante um mês inteiro, sem parar. Era um homem! Morávamos em
Palma, onde tínhamos sítio. O sr. Leandro apareceu por lá no começo da estação
das águas. Vinha de Cavalcanti à procura de meu pai. Tínhamos mata de
castanheiras, e beneficiávamos a castanha no engenho construído por nós mesmos.
Naquele tempo, vendia-se o óleo muito bem, e a nossa vida era folgada. Meu pai não
precisava se meter em explorações… Mas que querem? Ele era assim! Trocava
tudo por uma viagem nas matas virgens! — Quincas interrompeu-se, com os olhos
perdidos na escuridão da mata próxima. Emborcou um copo de cerveja, limpou os
lábios com o pulso e as costas da mão, e continuou: — Leandro apareceu e disse
uma porção de coisas, como isso que os senhores disseram: que ia procurar uma
cidade não sei onde, um templo… Parece que falou em Manôa, ou não sei que. .
. Pois isso entusiasmou meu pai de tal maneira que ele não quis saber de mais
nada. Lembro-me de que, quando consegui que meu pai prometesse que me levaria,
também fiquei ]ouco de contente. Eu era como ele, doido pelo mato, e até
agora sou assim. Minha mãe sempre dizia que nunca vira um filho tão parecido
com o pai : "os dois malucos".. . Coitada! Quando partimos,
meu pai deixou o irmão dele tomando conta de minha mãe, do sítio e da fábrica
de óleo… e esse canalha nos roubou. Ficou com tudo! Infelizmente, ele foi
pr’a Bahia…
Depois
de emborcar outro copo de cerveja, com olhar sombrio, Quincas continuou:
— Leandro esteve em nossa casa durante um mês. Ele e meu pai ficaram
tão amigos como se fossem parentes. Comprou três grandes canoas, ajustou cinco
cabras escolhidos, e partimos: Ele, meu pai, eu e os cinco cabras. Descemos o
Tocantins. Numa parada que fizemos, uns oitenta quilómetros para baixo da
embocadura do rio Arínos, Leandro quase ficou louco. Ali, no corgo da Pedra
Riscada, existe uma laje com sinais. Durante três dias Leandro andou em volta
da pedra, olhando, falando sò-‘ zinho. Depois, resolveu abandonar o rio. Um
camarada ficou tomando conta das canoas, com ordem de voltar a Palma se não
aparecêssemos dentro de três meses. Seguíamos, então, por terra. Eh mundão!
Barbaridade! Era andar, andar toda vida! Levamos mais de um mês para chegar ao rio
Araguaia, em frente à ilha ão Bananal.
Arranjamos
duas canoas de índios e descemos o rio, guiados por um xambió que fizera
camaradagem conosco. Chegando ao fim da ilha, desembarcamos na outra margem e
entramos a caminhar pela vertente entre as serras do Roncador e dos Gradaús.
Varamos mato durante três meses, até chegar ao rio Xingu. No dia seguinte,
Leandro, meu pai e Ernesto, um dos camaradas,
seguiram sozinhos, para atravessar o rio e continuar para diante. Eu e os
outros camaradas ficamos ali, para esperar a volta deles. Não digo nada!…
Naquela zona há índios caiapós, ju-runas e suiás. Até mesmo os tapirapés
costumam descer até ali. Muitas e muitas vezes tivemos que nos esconder deles.
Sofremos dois ataques, e Mano, um dos meus companheiros, ficou gravemente
ferido com uma flechada. Estivemos nessa agonia dois meses. No fim desse prazo,
resolvemos ir procurar os três que tinham partido e chegamos até ao rio Iriri,
em cuja margem encontramos sinais de acampamento que só poderia ter sido feito
por eles. Mas fomos atacados por um bando de índios ferozes, nus e com o corpo
todo pintado. Creio que eram mundurucus. Tivemos que voltar.
— E eles?
— Nunca mais deram notícias.
Calado,
de sobrecenho carregado e olhar perdido nas tristes lembranças longínquas,
Quincas emborcou dois copos de cerveja.
Eu e Sálvio estávamos espantados com aquela história, que nos dava
indícios muito seguros do que iríamos passar, mas que também nos dizia que
estávamos no bom caminho.
— Você chegou até ao Iriri? — perguntei.
— Cheguei.
— Não há de ser fácil, hein?
— É uma viagem terrível! Precisa muita coragem.
— Que aspecto tem a margem de lá? — perguntou
Sálvio.
— É uma morraria que não acaba mais.
Os olhos de Sálvio tiveram um lampejo na escuridão e seus lábios mal se
entreabriram quando ele disse:
— É isso. Temos que chegar aí.
Quincas olhou-o de lado, e seus olhos negros se animaram.
— Ê aí que desejam ir? — perguntou.
— Mais para diante ainda, Quincas. Mais para
diante …
— Até onde?
— Não sabemos. Você não está animado?
Quincas pôs-se em pé. Seus músculos apareciam, túrgidos, sob os buracos
da camiseta. Havia certa nobreza em seu porte.
— Quando querem partir?
— Logo que fôr possível. E queríamos que você se
encarregasse de tudo.
— Não tenham cuidado.
— De quantos camaradas precisaremos?
— Quatro ou cinco mateiros decididos, bem
escolhidos, serão suficientes. Será preciso deixar provisões em abundância e
algum dinheiro com as famílias deles.
— Sem dúvida. Temos cinco mil cruzeiros, Qumcas.
Veja o que se pode fazer com isso.
—
Não vai chegar. Mas falem com o coronel Marcondes G expliquem do que se trata. Ele
é louco por essas coisas. E, a propósito… ele tem uns objetos que decerto
interessarão aos senhores.
— Que objetos são?
— Não sei bem. É um vaso e outros
"trecos".
— Amanhã procuraremos o coronel. E vamos deixar
tudo nas suas mãos, porque, na verdade, não entendemos disto. Queremos que você
trate de tudo, como se fosse o chefe.
— Podem ficar sossegados. Dentro de uma semana
estará tudo pronto.
Quincas
apertou-nos as mãos e saiu. Nós ficamos ainda sob o alpendre, tomando mais uns
goles de cerveja, conversando e ouvindo os misteriosos ruídos noturnos da mata
próxima. Quando pelas onze horas nos recolhemos ao quartinho de madeira que
alugáramos ali mesmo no botequim, ninguém mais estava acordado em Anápolis.
CAPITULO 5
A PLACA DE
BARRO E O "MUIRAKITÃ"
O coronel Marcondes foi
mais útil e gentil do ique
esperávamos. Quando lhe expusemos os nossos pro-jetos, entusiasmou-se tanto que
nos sentimos na obrigação de o convidar para ir conosco.
— Infelizmente não me é possível. Tenho que
fazer outras viagens. Mas é uma das coisas de que mais gostaria. Não queria
morrer sem ver com os meus olhos alguns restos das antigas civilizações de
nossa terra. Mas um dia! Ah… Porque, como vocês, eu acredito que houve no
Brasil uma civilização para sempre perdida! Conheço mais ou menos o assunto e
creio que um dia se há de fazer justiça à nossa terra, reconhecendo que daqui
partiram os civilizadores do mundo… .
— É o que pensamos também, coronel. E por isso é
que resolvemos mergulhar nesse sertão.
— Fazem bem. É um trabalho útil à pátria e
próprio para a mocidade. Já sabem que tenho umas coisas curiosas ?
O coronel levou-nos a um quartinho, rigorosamente trancado, como se
guardasse um tesouro. E não seria realmente um tesouro?
A
primeira peça que nos mostrou era um vaso antropomorfo, cerâmica delicada,
trabalhada com evidente gosto artístico.
Po seu formato geral destacava-se a figura humana estilizada que
lembrava, remotamente, a escultura egípcia clássíca. Mas os traços do rosto
denunciavam o tipo mongolóide: face larga, maçãs do rosto salientes, olhos bem
separados. O coronel explicou que o vaso lhe fora trazido por um homem vindo
das margens do Araguaia. Mas, infelizmente, ele chegara horrivelmente mutilado,
sem língua, sem orelhas. O vaso estava partido em cinco pedaços e o coronel o
reconstituíra.
Não sei porque, não acreditei muito na história do viajante mutilado, e
soube, depois, que Sálvio também não lhe dera crédito. Decerto, o velho coronel
tinha motivos para ocultar a verdadeira origem do vaso, e nós não íamos indagar
que motivos eram esses.
Havia
na caixa de ferro vários outros objetos curiosos. Um era um pedaço de cachimbo
de barro cozido que tivera, sem dúvida, a forma de homem de grande cabeça e
corpo caricaturalmente pequeno. A cabeça, escavada por dentro, era o fornilho e
estava requeimada, o que indicava uso. A figura estava de joelhos e entre os
pés juntos situava-se o furo onde se introduzia o canudo. Os olhos da figura
eram estranhamente saltados, enormes, em desproporção com o rosto. Fazia
lembrar certas esculturas incaicas. Havia, ainda, uma dessas figurinhas de
barro que nos museus aparecem como "bonecas dos índios". Sálvio, que
já estudara o assunto, afirmou que não eram absolutamente bonecas,
mas sim ídolos falomorfos remanescentes de cultos que se perderam na noite dos
tempos.
— É preciso notar — explicou ele — que estas figuras, tenham a origem
que tiverem, obedecem sempre à mesma forma e têm todas quase o mesmo tamanho.
Não há "bonecas" sem pernas, e não é de se crer que todos os índios,
de todas as latitudes, fizessem, para seus filhos, "bonecas" de
barro, todas iguais e tão pequenas.
Entre todos, porém, o objeto que mais impressionou Sálvio foi uma
grande placa de barro cozido, moldada em forma de bandeja em cruz. O centro da cruz era liso e bem no meio via-se um cubo, talvez altar,
com a letra "S" perto. Nos quatro braços, arredondados, eram
evidentes degraus de arquibancadas. A um canto havia uma porta de entrada, à
qual se chegava por escadaria. Procuramos reproduzir, em desenho, essa curiosa
peça, para que o leitor possa formar melhor ideia dela.
Sálvio,
que estudou essa placa durante muitas horas, disse que era, simplesmente, a
reprodução de um templo, ou local de adoração do Sol. No altar do centro ficava
o sacerdote, e nas arquibancadas o povo. E declarou, afinal, que a placa tinha
grande importância para os nossos trabalhos — o que o futuro demonstrou ser
certo.
Havia,
ainda, alguns pequenos objetos que Sálvio apenas olhou, considerando-os sem valor.
O coronel, porém, apanhou entre os dedos uma nefrite, o "muirakitã"
dos amazonenses, e exibiu-a ao meu amigo, com olhar interrogador.
—. Lindo — disse Sálvio. — Um "muirakitã"..
.
— Examine-o bem.
Era,
realmente, uma peça maravilhosa essa pedra verde talhada em forma de homem nu
"de pé, com os braços erguidos" — o que figurava a célebre
"runa" que significava riqueza e poder. Quando Sálvio percebeu
isso, ficou impressionado, e nem sabia o que dizer. Olhava espantado o coronel
que, agora, assumira, a seus olhos, importância muito maior do que se
esperaria.
— Leve-a
— disse o coronel. — Leve-a, não a ‘perca,
que lhe será muito útil. Posso lhe repetir a célebre frase:
"In hoc signo vinces".
Sálvio
estremeceu, e, apanhando o cordão de prata que o coronel lhe estendia, passou-o
pelo buraco que havia na pedra, pendurando-a em seguida ao pescoço.
—
Não sei como lhe agradecer, coronel. O senhor foi providencial. Agora, tenho
certeza de que atingiremos o nosso fim. Na volta lhe devolveremos o
"muirakitã".
O coronel
sorriu misteriosamente. E nós não compreendemos o seu sorriso. Mas o certo é
que nunca mais passaríamos por Anápolis. Voltamos por outro caminho e o coronel
morreu no mês passado, sem tornar a ver a sua pedra verde, que Sálvio traz
consigo até hoje.
O coronel foi um tesouro para nos. Sem ele, jamais teríamos realizado a
temerosa aventura. Patrocinou a viagem, providenciando tudo o que precisávamos.
Entre-gou-nos dez mil cruzeiros; deu-nos seis mulas arreadas; e ofereceu-nos
conselhos de inestimável valor.
À noite, no alpendre do botequim, diante das cervejas, comentávamos com
espanto a atitude daquele velho respeitável e Sálvio disse, antes de nos
retirarmos para dormir:
— É melhor não falar. Nem podemos fazer ideia dé
quem seja esse homem, mas garanto que não é absolutamente o que parece.
— Que quer dizer, Sálvio? Eu também o achei
misterioso.
— Só lhe digo isto: o bom êxito de nossa viagem
está absolutamente seguro.
— Por que pensa assim?
— Nem eu sei. Mas, ou é verdade, ou estou
redondamente enganado. E creio que não me engano. Não se esqueça: "Com
este sinal, vencerás"!
* * *
Numa
quinta-feira de madrugada, bem antes de nascer o sol, as seis mulas,
carregadas, estavam alinhadas no terreiro, diante do botequim. Perto delas,
via-se o coronel Marcondes, sorridente e amigo. Quincas contratara dois homens
apenas, "que valiam por dez cada um", dizia ele. Eram sertanejos
magros, fortes, requeimados, cobertos com largos chapeirões de palha. Usavam
calças e paletós de brim sobre camisas rasgadas e cada um tinha uma garrucha e
um facão à cintura. Estavam descalços. Não infundiam muita confiança quanto à
valentia, mas Quincas respondia por eles e era bastante. O mais alto atendia
por Lalau, e o outro chamava-se Tobias. Os petrechos que carregavam as mulas
tinham sido reduzidos por Quincas, com raro tino, ao mínimo indispensável, e
uma delas, que não levaria carga humana, trazia os volumes mais pesados.
Quando o sol
começou a dourar o Cume de Santa Rita, muito cedo ainda, abraçamos o coronel e
nos pusemos a caminho na seguinte ordem: Quincas, Sálvio, eu, Lalau e Tobias,
que puxava a sexta mula pela corda.
Partíamos
para Formosa, primeira etapa de nossa viagem pelo interior de Goiás, rumo à
incrível aventura. E de longe ouvíamos ainda os augúrios de boa viagem que nos
fazia o coronel Marcondes.