CAPITULO 12
OS TÚMULOS INVIOLÁVEIS
V OLTEI A MIM SOB
IMPRESSÃO DE PAZ INFINITA, DE
TOTAL
quietude. Estava
encharcado. Mas foi uma violenta dor no ombro direito que me fêz recordar do
que acontecera: os selvagens louros, a tempestade sobre o morro, a caverna, a
enxurrada subterrânea. Acomodei-me melhor sobre a rocha onde estava preso pela
roupa, e quis pensar. Mas não pude. A dor no ombro era forte, e a confusão no
cérebro tremenda. Meus olhos ansiosos procuravam inutilmente uma réstia de luz.
As trevas eram totais e palpáveis.
Depois, compreendi que era preciso sair dali. Precisava andar. Mas, em
que direção? Levantei-me, e, ao acaso, tateando com os pés e as mãos, dei, um
passo. Resvalei e caí dentro da água. Era um regato que rolava com violência.
Devia ser o resto da água da caverna que se escoava para o fundo da terra. Foi
então que consegui elaborar o primeiro raciocínio: se descesse, afundaria nas
entranhas da terra; subindo, chegaria à caverna e à liberdade.
Estava tão cansado que a subida foi uma tortura. Tropeçava e caía a
todos os momentos. Quando avistei o clarão, minhas mãos e minhas pernas, de
tanto se arrastarem pelas arestas das pedras, sangravam. Mas aquela luz dúbia
foi forte estimulante e restaurador de forças. Continuei subindo com maior
segurança e, pouco depois, chegava à caverna.
Agora, o fundo era um lodaçal escuro, mas, lá fora, o sol brilhava com
tanta intensidade que me deu vontade de gritar de alegria. Acreditei, naquele
momento, que a gente sofre mais com as trevas do que com fome ou sede.
Corri
para o sol, chapinhando pelo chão escorregadio. Atravessando o pequeno espaço
por três vezes resvalei e me estendi a fio comprido na espessa camada de lama.
Mas como era gostoso, depois, desgrudar da pele as placas de lama ressequida!
Devia
ser meio dia, porque o sol estava a pino. Tínhamos, então, passando o resto da
noite e metade do dia dentro daquele túnel! "Vendo que era tão tarde, meu
egoísmo teve que recuar, para dar passagem a outros sentimentos :
"Onde estariam Quincas,
Sálvio e Lalau?"
Em
redor, havia rochas, desolação e por cima o sol glorioso. Dentro da caverna, a
lama estava secando e começava a rachar, e ao fundo, a entrada negra do túnel
parecia convidar-me para uma descida ao inferno. Era um abismo, e, como todos
os abismos, atraía.
Vi
qualquer coisa que se mexia sobre as pedras, na entrada do túnel. Estremeci.
Seria alucinação? Olhei bem. Pus-me de pé e fixei os olhos. Sim. Alguma coisa
escura Se mexia ali. Corri. Patinhei de novo na lama e cheguei ao fundo. Estendi
o braço e minha mão trémula segurou outra mão, ansiosa, que procurava se
agarrar à saliência I da rocha. Reconheci o grande anel simbólico
onde duas : ninas ladeavam a pedra consagrada. Era a mão de Sálvio.
Puxei-a, e o rosto sangrante do meu amigo surgiu. Ele abríu os olhos e de seus
lábios inchados saíram umas palavras :
— Jeremias!… É você ? Então…
A voz morreu, num fio. A cabeça tombou pesadamente. Tive que o escorar,
para que não rolasse para a lama da caverna. Entrei no túnel, para levantar o
seu corpo e poder tirá-lo, quando fiz outra descoberta. Atrás de Sálvio, bem
nos seus calcanhares, estava outro corpo. Era Quincas, deitado na água, com o
rosto meio mergulhado. Ao que parece, Sálvio viera subindo e arrastando o nosso
valente guia. Acomodei Sálvio da melhor maneira que pude e puxei Quincas para
cima. Pu-lo ao ombro e levei-o para fora, estendendo-o no chão, ao sol. Depois,
fui buscar Sálvio e fiz o mesmo com ele. Ali ficaram os dois lado a lado, sob o
calor vivificante do sol que descambava.
O
estado dos meus dois companheiros, como o meu próprio aliás, era deplorável.
Roupas rasgadas, enlameadas, mãos, rosto e pernas feridos e ensanguentados.
E
Lalau? Estaria vivo ainda? Teria sido arrastado ao fundo do abismo pela
enxurrada?
Pensava
nisso, sentado ao lado dos dois, e fazia planos para ir em busca do companheiro
perdido quando ouvi uma voz rouca:
— O Xingu! O Xingu! Vamos
atravessá-lo!
Era Sálvio que se sentara e, com olhos desmedidamente abertos, fitava
os rochedos em frente,
— Onde está o Xingu? — perguntei,
inadvertidamente.
— Além — disso ele estendendo o braço para oeste
— precisamos atravessá-lo depressa.
— Acorde, Sálvio! Você está sonhando!
Sálvio estremeceu, deixou cair o
braço e fitou-me.
— Que é?
— Você estava alucinado, Sálvio.
— Não era alucinação, Jeremias. Eu vi o Xingu.
Vi nas suas margens um grupo de homens de tez bronzeada, vestidos com roupas
brilhantes, muito justas…
— Foi sonho, Sálvio. Você esteve sem sentidos
até agora. Precisa comer alguma coisa e descansar. Acabamos de voltar do
abismo.
Só
então ele pareceu enxergar o que em realidade o rodeava. Olhou em torno,
olhou-me, viu Quincas, que continuava desacordado. Por último, fitou a caverna
e a entrada do buraco negro, ao fundo.
— Como é que saímos daquele túnel?
— Não sei. O fato é que saímos.
— E Lalau?
— Lalau não saiu. Só nós três.
— Então, temos que ir procurá-lo.
— É claro. Precisamos ir procurá-lo.
Quincas
moveu-se e, pouco depois, acordava. Parecia ter presente na memória tudo o que
havia sucedido, porque perguntou logo pelo companheiro ausente.
Quando soube que Lalau ainda não voltara do túnel, levantou-se e,
cambaleando, falou:
— Vamos procurá-lo. Não podemos abandonar assim
o nosso companheiro.
— Vamos, sim, Quineas. Eu só esperava que vocês
dois acordassem. Mas estamos fracos para tentar qualquer coisa. Temos que
esperar um pouco, senão nós também ficaremos por lá. Primeiro tratemos de
comer.
E os três nos pusemos a caminho do último acampamento onde tinham
ficado os selvagens louros.
O
que encontramos não era absolutamente alentador. Dos trinta selvagens que na véspera ali tinham acampado conosco
restavam três, e, esses mesmos, estavam mortos, esmagados sob os troncos de
duas árvores que haviam desabado sobre eles durante a tempestade. Ao lado, um
enxame de moscas azuis zunia sobre os restos de um dos voados caçados no dia
anterior. Dos outros selvagens, nem sinal. Ou tinham sido arrastados morro
abaixo pela enxurrada, ou haviam partido para seu ignorado destino,, nem se
importar com o que nos acontecera. O fato era este:
Ali
estávamos, sozinhos diante do desconhecido, tendo no lado três cadáveres e
alguns pedaços de veado. Não eram muito brilhantes as nossas perspectivas.
Quineas, porém, não perdeu tempo. Começou a escolher alguns galhos secos para
fazer fogueira e mandou-nos separar pedaços de carne de veado. Enquanto a carne
assava, procuramos as nossas coisas. Nada mais restava. Os nossos Cardos de
utensílios e roupas haviam desaparecido. Encontramos três boleadeiras, dois
arcos, quatro tacapes e grande número de flechas com pontos de osso e pedra —
Coisas estas que haviam ficado emaranhadas nos galhos de uma das árvores
caídas. Essa era a nossa riqueza, esses, todos OS nossos recursos para
empreender a longa caminhada que ainda nos restava. Depois de comermos com valente
apetite, arrumamos como nos foi possível os pedaços de carne ainda
aproveitáveis e, tomando as armas, voltamos aos rochedos.
A
descida pelo tortuoso corredor subterrâneo não era coisa fácil. Nem mesmo os
archotes de madeira resinosa, que Quincas arranjara, conseguiam iluminar a
contento os tenebrosos meandros do túnel. A sombra de Sálvio, que ia à minha
frente, dançava fantasticamente na parede. Ele parecia dar pulos frenéticos e
repentinos, ora alçando-se ao teto, ora esmagando-se no solo. O regato era um
ténue fio de água, que descia sôfrego, serpenteando. Mas o solo e as paredes da
galeria brilhavam com reflexos azulados e marrons.
— Terreno vulcânico — murmurou Sálvio acordando ecos milenares. — Isto
deve ser uma antiga chaminé de vulcão, para escoamento de lavas. Estamos
descendo para o caldeirão onde a natureza preparou os seus cozimentos minerais.
Quincas, que vinha examinando atentamente o chão, disse de repente:
— Por aqui tem passado muita gente!
Sálvio olhou-me, espantado. Aquilo era tão incrível, como se ele tivesse
dito que a galeria de paredes vidradas havia sido escavada por mãos humanas.
Paramos para examinar o solo, e tivemos que nos convencer de que Quincas
dissera a verdade. O solo estava gasto, liso, como se fosse um caminho trilhado
por milhares de pés durante número infinito de anos. As pontas, as arestas,
estavam arredondadas e nos pedaços planos o desgaste fizera um leito sensível.
— Sem dúvida, há desgaste — disse Sálvio. Mas
pode ser feito pelas pedras que rolam e se arrastam quando a água faz enxurrada.
—
Isso não — atalhei eu. — A água
nunca desceu por aqui. Vocês bem viram que o anteparo de rocha que cobria a
entrada do túnel rebentou esta noite. Antes disso, a água não poderia ter
penetrado. Foi um acidente ao qual assistimos. Decerto, durante outras
tempestades, a caverna pode ter ficado alagada, mas o anteparo nunca deixou a
água
passar para o corredor. Se a água sempre se escoasse por aqui, o
anteparo não teria rebentado esta noite.
— Jeremias tem razão — disse Sálvio. — Deve ser isso mesmo, e eu gostaria
de ter visto a caverna à luz do dia antes de se ter rebentado o anteparo.
Havia, possivelmente uma porta dissimulada que dava para este
corredor. Mas vamos, é preciso não perder tempo. Lalau deve estar lá no fundo,
em qualquer canto.
Continuamos a descer,
já tomados de sentimentos confusos de respeito e maravilha. E não havíamos
descido muitos metros, quando Quincas, que ia na frente, nos fêz parar: —
Venham! Venham ver isto!
Corremos
e logo alcançamos o nosso amigo, que estava parado, olhando.
Naquele
ponto o corredor fora alargado e estava fechado por uma pedra, formando pequeno
salão. Na parede, estreita porta dava passagem para diante, onde o túnel
continuava. Dos dois lados da porta a rocha fora artisticamente trabalhada,
expondo ao nosso olhar sôfrego dois magníficos alto-relevos. O da esquerda
representava um enterro. Dois homens caminhavam carregando uma rede suspensa de
um pau que se apoiava em seus ombros. E dentro da rede estava o corpo a caminho
da última morada. À direita, o corpo estava estendido sobre uma mesa, dentro de
uma sala redonda em abóbada. Ao lado da mesa viam-se os dois homens que haviam
transportado o cadáver. A parede da caverna, em volta da mesa, apresentava
aberturas redondas, de misteriosas utilidades. Os homens que víamos ali tinham
barba — e isto era desnorteante, porque as raças ameríndias que conhecemos não
são barbadas. Que homens eram aqueles, então? As esculturas que evidentemente
se completavam para representar o ato da inumação eram perfeitas nos seus
menores detalhes e tinham aquele ar sutil, inexplicável, das obras de veneranda
antiguidade, produto de civilizações despenhadas na voragem dos séculos. Além
da barba, os homens traziam o cabelo comprido e vestiam espécie de túnicas amarradas à cintura por
grosso cordão. Os pés estavam calçados de sandálias de solas grossas presas com
correias trançadas.
Tínhamos examinado as esculturas em silêncio, um maravilhado silêncio
tão pesado como os séculos sem conta que deviam ter passado mudos por aquelas
pedras lavradas. Comecei, de repente, a sentir estranha sensação de angústia
impotente contra o mistério insolúvel. As trevas que se prolongavam além da
porta pareciam estender-me braços gelados. E o silêncio gritava-me ao ouvido
frases inconsoláveis:
— Esta
é a casa dos mortos! Esta é a casa dos mortos!
Não sairás mais daqui! Nunca mais! Nunca mais!
Estremeci. Quis falar, mas não pude. O silêncio e as trevas me
apertavam insidiosamente a garganta seca. Depois, como rolha de champanha que
salta subitamente, minha voz ecoou:
— Sálvio!
E este nome, assim pronunciado bruscamente, foi como um soco violento
desferido no silêncio imóvel. Os dois se voltaram para mim, espantados. Eu
devia estar com a fisionomia transtornada, porque Sálvio me segurou pelos
ombros e perguntou, ansioso:
—
Que foi, Jeremias? Que
aconteceu? Que tem você?
—
Voltar… vamos… voltar!
— Voltar? Voltar? Você está louco? Voltar por quê? Voltar, justamente
agora que estamos no limiar de grandes descobertas? Ouviu, Jeremias? Grandes
descobertas! Estamos na pista de um empolgante mistério! Estamos diante da mais
extraordinária das revelações com respeito à pré–história deste continente!
Estamos com as mãos sobre o misterioso passado da América — e você fala em
voltar! Olhe essas figuras! Olhe, Jeremias! Contemple essas esculturas feitas
por mãos que desapareceram quem sabe há quantos milênios! Olhe para elas!.. .
Não lhe sugerem nada?
—Não … balbuciei olhando lamentavelmente as figuras de pedra. — Não
sugerem… Que haviam de sugerir?
— Olhe bem!
— Estou olhando… Que é?
Sálvio lançou-me um olhar que eu jamais poderia classificar entre os
olhares humanos. Depois, lentamente, aper-tando-me o braço, perguntou:
— Estes
homens das esculturas são os selvagens do
Brasil?
Caí
em mim. Compreendi onde Sálvio queria chegar. Senti-me subitamente empolgado,
arrastado.
— Tem razão! Eu devo estar louco! Eles têm
semelhança muito remota com os nossos selvagens… Mas não são os mesmos!
— Que lhe parecem?
— Serão egípcios?
— Não. Têm algo que lembra os egípcios; não o
são, porém.
Sálvio
olhou longamente, apaixonadamente, as figuras esculpidas. Depois, voltou-se
para mim e pronunciou uma palavra, uma só… mas que palavra! Que munido estava
encerrado nela!
— Atlantes!
Não tive um
único segundo de dúvida. Compreendi imediatamente que assim era, que aqueles
homens antigos que transportavam um defunto eram atlantes! Nem me ocorreu, no
momento, quão extrordinária e temerosa era essa hipótese, quão arrojada e
improvável era essa afirmativa de Sálvio! Nada disso. Aceitei, simplesmente,
como se estivesse vendo fotografias de pessoas conhecidas: eram atlantes!
Olhei
mais respeitosamente aqueles seres de barba e grossas sandálias de couro…
Atlantes! E pela segunda vez me assaltou a vertigem.
Braghine,
Braghine! Por que não estás conosco neste sertão do Brasil Central? Por que não
desceste conosco a este tenebroso túnel? Por que não vens olhar estes
alto-relevos que seriam um hino de glória para os teus olhos? E esta porta,
Braghine, talhada pelas mãos dos atlantes, desses atlantes em que tanto acreditaste
— esta porta talhada diretamente no cristalino, no alicerce vivo do globo —
isto seria para os teus sentidos um deslumbrante poema! Aqui estão eles,
Braghine! Os atlantes! Pela primeira vez, no mundo, aqui estão, reproduzidos
numa escultura, os teus amados atlantes! Braghine! Jean Carrére, Ernesto
Morales, Capdevila… todos! Todos vós que acreditastes nos atlantes, todos vós
que sabíeis da verdade em vossos corações — por que não estais aqui
conosco?
A
voz de Sálvio me arrancou subitamente ao delírio. Senti que meu celebro, por um
segundo, estivera vacilando à beira do abismo. Aquela voz de Sálvio parecia vir
de muito longe e o contacto da mão que me tocou o braço me deu sensação de
violento choque elétrico.
— Vamos. Lá embaixo deve haver coisa…
— Hein ? Ah… sim… lá embaixo… os atlantes… Foi então que Quincas falou
pela primeira vez, e tanto
sua voz como
suas palavras, estranhamente prosaicas e deslocadas naquele ambiente encantado,
me chamaram definitivamente à realidade:
— Não sei como ainda não encontramos Lalau…
— Deve ter sido arrastado até ao fundo pela corrente
— disse Sálvio. — Descendo havemos de dar com ele.
E
nós dois compreendemos que, desumanamente, ha-víamo-nos esquecido do motivo da
descida pela chaminé vulcânica. Já não nos lembrávamos de Lalau, do nosso
companheiro desaparecido. Lançamos um último olhar às maravilhosas esculturas,
e seguimos Quincas que já atravessara a porta e continuava a descer.
Emparelhamos com ele.
— Aquilo é muito importante? — perguntou
Quincas.
— Aquelas esculturas? — dise Sálvio. — Sim. São
importantíssimas! As mais importantes que se encontraram no mundo até hoje. São
tão importantes que quase nos fizeram esquecer do Lalau.
— Mas qual é a importância delas?
— Só por elas, fica provado que não fizemos uma viagem inútil,
Quincas. Mesmo que não encontrássemos mais mula — isto seria o bastante. Essas
esculturas têm, talvez, cem mil
anos. Quando foram feitas, não havia ainda civilização alguma no Egito, as
pirâmides estavam muito longe de ser imaginadas, a Grécia não existia ainda, a
China tido tinha se formado… Isso foi quando a Atlântida, ainda à flor
da água, era a célula-mater da humanidade, e os atlantes eram os senhores do
mundo — um mundo bem maior do que aquele que os romanos tanto se orgulhavam do
dominar… Eles viveram aqui, e a sua alta cultura está provada por essas
esculturas que acabamos de ver. Eles viveram aqui, no Brasil, neste pedaço do
Brasil! Compreende como isso é importante, Quincas?
—
Compreendo. Mas, Lalau…
—
Você tem toda razão. Vamos
procurá-lo.
Continuamos
a descer, e, algum tempo depois, desembocamos na ampla caverna circular. Era
tão grande que as paredes do fundo mal se percebiam apesar dos três archo-bee
que empunhávamos. O que primeiro nos chamou a atenção foi um bloco de pedra
branca, colocado no centro da imensa caverna. Avançamos pelo chão lamacento. O
bloco era de mármore e tinha a forma de pirâmide truncada. Sobre ele estava uma
grande taça de mármore, maravilhosamente esculpida e polida, enegrecida por
dentro e, no fundo, vimos uma camada de óleo endurecido — pelo menos assim nos
pareceu.
— Um
altar de perfumes! — disse Sálvio. — Aqui eram queimados óleos aromáticos.
Mas a voz de Quincas veio de longe:
— Aqui está ele… morto!
Quincas
estava curvado, lá longe, na parte mais baixa da caverna. Seu archote punha
reflexos rubros na parede negra. Corremos. Era uma poça de água lamacenta, e
ali estava, meio mergulhado na lama, da cintura para cima, o corpo de Lalau.
Puxamo-lo. Enlameado, esfarrapado, desfigurado, estava irreconhecível.
Durante uns momentos, tomados de emoção, não dissemos palavra. Depois,
Quincas murmurou:
— Precisamos levá-lo para cima e
enterrá-lo.
— Ele
não morreu afogado — murmurou Sálvio. —Quando chegou aqui, já estava morto.
Pobre companheiro! Mas não o levaremos para cima, Quincas. Ele ficará aqui, e
aqui terá o túmulo mais glorioso da terra! — E Sálvio apontava a parede
circundante.
É
que, em todo o redor, a caverna era crivada de nichos circulares, dispostos em
seis séries sobrepostas. As três primeiras filas de baixo para cima estavam
tapadas com portas de bronze providas de grossa argola. A quarta tinha uns
vinte nichos tapados. O resto da quarta e as duas de cima estavam com todos os
nichos abertos. Aqueles buracos se abriam negros na rocha, como boca disposta a
contar segredos pavorosos e imemoriais. No chão, ao longo da parede circular,
estavam encostadas as portas de bronze à espera de serem utilizadas. O aspecto
geral da caverna era o de uma cripta com gavetas mortuárias.
— São
túmulos… túmulos de atlantes. Em cada um
destes nichos fechados há um atlante morto há milhares
de anos! Pois num destes nichos irá dormir seu eterno sono,
mil séculos depois, um de seus descendentes! E eu também
gostaria de ser sepultado aqui.
Nem
Quincas nem eu dissemos qualquer coisa. Levantamos, com a ajuda de Sálvio, o
corpo de Lalau e levamo-lo para junto da parede. Levantamo-lo e enfiamo-lo
dentro do primeiro nicho vazio da quarta fila. Depois, erguemos do solo a porta
de bronze — e como era pesada, Senhor! Pusemo-la na abertura e fomos ajeitando,
virando para um e outro lado, porque havia uma posição exata para ela penetrar;
quando encontramos a posição, encaixou-se suave e firmemente, como a porta de
uma caixa-forte. Quando quisemos experimentar se estava firme, vimos que, por maiores
que fossem os nossos esforços, não conseguíamos movê-la um milímetro sequer.
Estava o nicho hermeticamente fechado! Penso que a porta se ajustara por
pressão e não havia força humana capaz de arrancá-la. Só à consumação dos
séculos, no último dia de vida do globo, ela sairia talvez do seu lugar,
sacudida pelos estremeções de agonia da Terra!
Mais tarde,
quando Sálvio quis examinar o cadáver de algum dos atlantes ali sepultados,
deu-se o mesmo. Não foi possível mover nenhuma das tampas de bronze, por
maiores que fossem os nossos esforços. Corremos os túmulos um por um — e eram
quatrocentos e trinta! — e nenhum se deixou abrir.
Se existem no mundo túmulos invioláveis — certamente são esses!