Continued from:

CAPITULO 13

QUINCAS PRATICA UMA FELONIA

P OR MAIOR QUE FOSSE A ATRAÇÃO
EXERCIDA SOBRE NOS

por aquele estranho
cenário de velhos séculos, não podíamos ficar ali contemplando as inamovíveis
gavetas de bronze. Era preciso voltar à superfície. Ademais, começávamos a
sentir todo o peso do cansaço até àquele momento retido pela fascinação.

Assim, pouco depois, percorríamos de novo o lôbrego corredor de lava
endurecida, pisando nos mesmos lugares onde os atlantes — quem sabe há quantos
séculos! — haviam pisado também, carregando seus mortos queridos!

Fomos
parando pelo caminho, à procura de vestígios da perdida civilização, e, quando
chegamos à caverna, já estava escuro. Deixamo-nos cair, extenuados, à claridade
da lua que começava a subir. Ali adormecemos e ali passamos a noite — uma noite
excepcionalmente cálida — sem querer pensar nos perigos possíveis da região
agreste e desconhecida. No entanto, se fosse verdade que preocupações e
recordações tristes tiram o sono, não teríamos dormido um minuto sequer. Mas as
preocupações se levantaram conosco, vivas e cruciantes aos primeiros albores da
manhã.

Estávamos
os três completamente sós naquele ermo, expostos a todas as surpresas. Nossos
companheiros nos haviam abandonado para sempre; nossas mulas já não existiam;
tudo o que possuíamos e o que havíamos reuni-lo durante a viagem — armas,
máquinas fotográficas, instrumentos, mantimentos, relíquias — tudo
desaparecera. Qual seria o rumo que devíamos tomar, agora, para alcançar o
Xingu?

Sálvio, no entanto, apontou para oeste, com firmeza:

— É para lá. Vamos.

Partimos, carregando as riquezas que nos restavam: três boleadeiras,
quatro tacapes, dois arcos e um amarrado do flechas. Afinal, era melhor assim,
agora que tínhamos que contar somente com as nossas próprias costas. Não
tínhamos lombos alheios nem de homens, nem de mulas para carregar volumes…

Atravessamos o acampamento onde tínhamos parado Com os selvagens louros
e fomos forçados a espantar um tatu que refocilava no cadáver de um deles.
Quisemos levantar a árvore, mas foi impossível. Passamos e os mortos lá
ficaram.

Subimos
uma encosta bastante inclinada e, lá de cima, Sálvio fêz-nos voltar e observar
o panorama. Estávamos na borda de um grande círculo. Aos nossos pés estendia-se
imensa bacia. No meio dela elevavam-se penhascos atormentados. |


Estamos diante da cratera de um vulcão extinto. A caverna de onde saímos fica
lá naquelas rochas do meio. Devia ser uma das chaminés por onde as lavas
subiram em tempos remotíssimos. Aquele salão em que estão os túmulos deve ter
sido, em outros tempos, um caldeirão cheio de minerais fundidos. Possivelmente
os atlantes en-contraram-no e o adaptaram ao fim para que serviu.

Depois de um último olhar para a cratera, começamos a descer a encosta
do lado oposto, e continuamos a viagem, triste viagem de três pigmeus perdidos
no imenso terreno desolado, onde raras árvores raquíticas se erguiam peno- *
sãmente do solo pétreo! Pela tarde, nossos pés cansados levantavam pequenas
nuvens de poeira do chão, ao arras-tar-se trôpegos. Estávamos terrivelmente
cansados e parecia-nos que nos desfazíamos em suor sob os ardores
do sol inclemente.

As
sombras da noite foram recebidas como incalculável benefício — porque com elas
nos chegou a primeira sensação de frescor. Mas a sede aumentou, talvez porque
sob o sol abrasador ela nos parecesse normal, o que não se dava sob a frescura
da noite. Não tínhamos, porém, remédio algum para isso e, assim, procuramos em
vão adormecer. Por mais que nos revirássemos sobre o mato rasteiro, não
conseguíamos conciliar o sono.

Devia ser meia-noite quando Quincas se ergueu
e disse:

— O
melhor é andar. Se caminharmos durante a noite, progrediremos mais e não nos
cansaremos tanto. E temos que caminhar, para encontrar água. Quando surgir o
sol não poderemos dar mais um passo. Vamos.

Nem
Sálvio nem eu procuramos sequer discutir. Era bom fazer qualquer coisa para
acabar com aquele tormento de tentar dormir à força. E, assim, pouco depois, a
lua iluminava com sua pálida luz três pobres vultos cansados caminhando pela
planície sem fim, desoladamente, para um futuro misterioso.

O
primeiro clarão da madrugada encontrou-nos descendo íngreme lombada de pedra
nua. Gradativamente o horizonte se foi tingindo das cores mais variadas e mais
lindas que se possam imaginar. Posta num quadro, aquela madrugada seria levada
à conta de louca fantasia. Pensei comigo que não devia estar muito mal, pois
consegui ainda achar alguma coisa bonita…

Caminhávamos
quando o sol, enorme, rubro como cobre polido, saltou acima do horizonte.
Estávamos, porém, no limite da força e da coragem.

—    Não posso mais. Vamos parar — disse Sálvio.

—    Sim. Vamos parar. Estou morto…

—    Não! Temos que continuar — ecoou a voz rouca
de Quincas, que tinha um ar de intolerável autoridade.

—    Não! — protestei. — Continuar agora, para que?
O melhor é descansar, dormir. Continuaremos pela tarde, com a fresca…

—    De certo — murmurou Salvio, cabeceando. — O
melhor ó dormir. Olhem… ali está uma palmeira…

Se pararmos, se nos
deitarmos, não nos levantaremos mais. O terreno desce. Vejo lá embaixo sombras
que devem ser árvores. Se o terreno desce e se há árvores lá embaixo, e que há
água. Vamos! Levantem-se! Para a frente!

Senhor! Como
Quincas estava autoritário! E não era possível deixar de lhe obedecer. Ele
adquirira uma força enorme Levantamo-nos penosamente, e recomeçamos a caminhar,
descendo a lombada. Quincas ia na frente. Levava dois tacapes ao ombro, um
arco, os restos de carne o o amarrado de flechas. Depois, Salvio, com um dos
tacapes e as boleadeiras pendentes do pescoço. Por último, eu, com um tacape, ao ombro, e o outro arco enfiado
no braço. Como foi penosa a marcha desse dia! Íamos tropeçando a cada
passo. Como cambaleávamos! Minha língua engrossara extraordinariamente. A
saliva se tornara pastosa e amarga. E Quincas continuava inexorável.

— Para
a frente! Para a frente! Vamos! — e dava largos e pesados passos! Seus pés caíam ao solo como se fôssem de
chumbo, e ele os arrancava de novo, impiedosamente, para de novo atirá-los para
a frente.

Quando o sol ia descambando, ele carregava tudo o que poisuíamos: os
quatro tacapes, os dois arcos, as flechas, as boleadeiras e o restinho de carne
assada.

Eu
arrastava penosamente uma perna após outra, sem levantar os pés. Salvio, ainda
à minha frente, fazia o mesmo. De repente, tropecei, cai e bati com a fronte em
qualquer coisa dura. Sangue começou a pingar. Salvio, Voltando-se, veio cair de
joelhos ao meu lado e encostou seu imundo lenço à ferida da minha testa.
Quincas alcançou-nos em três passadas e parou, cambaleante, ao nosso lado:

— Vamos!
Coragem… Para a frente… dizia ele com
voz rouca e odiosa.

Mas
eu sentia a vida fugir-me pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos, pelos membros
entorpecidos de cansaço. Murmurei:

— Eu fico…
Vão vocês… Deixem-me.. . sou um empecilho. .. — Pura quixotada! Eram frases
que eu guardava de alguma dessas deletérias leituras em que há heróis sobre-humanos.
O que eu queria era que eles ficassem ali, e morressem ao meu lado.
Simplesmente.

Mas não ouvi mais nada, nem senti mais sede nem calor, nem cansaço —
nada. Caíra no país da Paz Absoluta.

* * *

Quando abri os olhos, minha cabeça começou a girar violentamente.
Depois parou, e o solo pôs-se a executar um balanço largo e rítmico. A lua,
muito pálida, no céu instável, ensaiava estranhos passos de dança. Que coisa
mais desagradável! Levantei o braço, que tornou a cair pesadamente para o lado
— e caiu sobre um corpo. Logo depois, chegou aos meus ouvidos uma voz longínqua
e mal-segura:

—   Então, Jeremias?

—   É você, Sálvio? — minha voz era um sopro também.

—   Sou eu… Perdão!

—   Sim, Sálvio…

 

—    Perdão.. . eu sou o único culpado. Eu é que os
trouxe…

—    Vamos morrer?

—    Sem dúvida…

Comecei a chorar baixinho. Ele chorava também.

Ache ridículo quanto quiser, leitor. Ria-se. Mas eu queria que você
estivesse em meu lugar! Queria vê-lo ali, à noite, num deserto daqueles,
semimorto de cansaço, com o corpo despedaçado e o espírito em farrapos, com
sede, com fome, sem esperança! Queria vê-lo assim! Hoje eu também acho ridículo
aquele choro — tanto mais que nos romances de aventuras que andam por aí os
personagens padecem muito mais e nunca choram. Mas, meu caro leitor, personagem
de romance é uma coisa e gente de verdade é outra!

Depois, aquela voz cansada, fraca, pastosa, perguntou:

— Onde está o Quincas?

— Quincas?
— repeti interrogativamente. — Não
sei!. .. Quincas!

Eu quisera gritar, mas estou certo de que soltei apenas um som rouco e
inaudível. Com grande esforço, sentamo-nos e olhamos em torno. Minha cabeça já não girava. O solo estabilizara-se em sua posição normal. A lua, muito
clara, parecia correr entre nuvens diáfanas e clareava muito bem a desolada
planície, recortando contra o céu escuro a silhueta de algumas árvores
ressequidas.

Quincas não era visível.

—   Bandido! — disse eu, raivosamente. — Foi embora!

—   Quem sabe se ele ficou louco!

—   Louco nada! Essa gente é assim mesmo! Quis se salvar
sozinho!

—   E agora?

—   Agora? Vamos descer por aí. Se encontrar aquele
bandido, juro que o matarei!

Pusemo-nos de pé, depois de ingentes esforços. Em meu corpo não havia
nenhum dos 250 ossos que não estivesse doendo. Recomeçamos a caminhada para o
fundo do vale sombrio, à pálida luz da lua. Éramos duas sombras, duas almas
penadas cambaleantes, descendo para o inferno.

Penso que não tínhamos dado ainda cinquenta passos, quando caí de
joelhos. Sálvio deu mais um passo ou dois’, e desabou no chão, ao comprido.
Arrastei-me até ele e segurei-lhe a mão. Escaldava.

— Está
bem — disse ele ao meu ouvido com voz extraordinariamente rouca — está tudo
acabado… Leandro desapareceu, há anos. O pai de Quincas desapareceu. Tobias
desapareceu, Lalau desapareceu e nós vamos desaparecer também… É pena. Vimos
tanta coisa! E eu queria tanto contar ao mundo o que vimos! Se você escapar,
conte tudo, Jeremias. Eu vou morrer. Mas, não faz mal. Aqui já houve uma grande
civilização, e, no futuro, outra há de se erguer das cinzas da última, e há de
ser uma civilização humana, sem armas, sem maldade, sem traição, sem
injustiças… Os homens saberão se compreender uns aos outros, e saberão que a felicidade está em achar ótimo o
dia de hoje e ter absoluta confiança no dia de amanhã. Tenho certeza!

Minhas lágrimas eram salgadas
como o diabo.

Sálvio
queria ser sepultado lá atrás, como Lalau, num túmulo dos atlantes…

E não disse mais nada. Sua mão apertou fracamente a minha. Depois, seus
dedos afrouxaram. Sua cabeça pendeu e a face pousou suavemente sobre a areia do
solo.

Minha
cabeça pendeu também. Larguei o corpo. Afinal, o melhor era mesmo descansar de
uma vez. A lua estava quietinha lá em cima, agora. E parecia fria… fria…
tão fria!

Quando fechei os olhos, comecei a ouvir música. Mas eu sabia que
ninguém estava tocando nada. Era dentro do meu crânio. Sons estridentes e
desencontrados de "jazz" feriam-me a cabeça por dentro…

 

CAPITULO 14

O INVISÍVEL INIMIGO

QUE É isto? Sons de harpa? Sem dúvida… estas notai tão suave», tão doces, tão líquidas, são
de harpa. E que frescor.. . Que delicioso frescor!

Uma voz longínqua e celestial
pronuncia o meu nome em vários tons muito doces! Quis abrir os olhos, mas não pude,
Estava tudo negro por dentro e por fora dos meus olhos. Nada impor cava. Só
queria continuar a ouvir a harpa. Só queria continuar a sentir aquele frescor
bendito que se espalhava pelo meu rosto, que descia pela minha garganta,
que ia até ao fundo da alma. Mas a harpa cessou de tocar e caiu uma grande
serenidade sobre mim. Não senti mais coisa alguma. Era completamente feliz!

* * *

Quando despertei, o sol já estava alto. Havia grande silêncio em torno. Lá em cima, sobre a minha cabeça, de encontro ao
carregado azul do céu, espalhavam-se os ramos de uma gigantesca árvore.
Olhei primeiro para um lado. Sálvio, deitado de costas, parecia imerso em sono
profundo e tinha, a cabeça encharcada. Do outro lado, Quíncas,
sentado sobre uma pedra, colocava pontas de sílex em flechas dE bambu. Perto
dele havia um monte de pedacinhos de pedra, onde ele escolhia as pontas que
servissem. Um maço de finos bambus estava encostado às suas pernas, e ele
manejava agilmente uma casca vermelha de cipó, com a qual amarrava as pontas às
flechas. Observei em silêncio, por muito tempo, como se estivesse fazendo
exatamente o que devia e nada fosse estranhável. Quincas trabalhava
serenamente. Observei, também, que no chão, ao seu lado, estava um casco de
tartaruga, bem grande, além de outros menores.

Foi
só depois que ouvi o ruído da água marulhante. E, logo em seguida, Quincas
olhou-me.

—   Olá! Então? Melhor?

—   Onde estamos?

—   Na margem do Xingu.

Levantei-me e caminhei para seu lado. Doía-me todo o corpo. Sentei-me e
apanhei um dos cascos.

— Com isso é que levei água para
vocês…

Nesse
momento me lembrei de tudo. A interminável caminhada trôpega, a sede, o
esgotamento, e como eu e Sálvio nos havíamos deitado, esperando a morte.

—   Então você não fugiu?

—   Fugir?! Que ideia! E fugir para onde?

—   Nós pensamos…

—   Ora… francamente! Vocês.. .

—   Compreende, Quincas ? Nós caímos… Quando acordamos,
de noite, estávamos sós. Você tinha sumido…

—   Compreendo. Mas para onde havia de fugir? Eu sabia que
embaixo tinha que haver água. Continuei a descer como pude, e cheguei à beira
do rio. Bebi, mergulhei na água. Depois, encontrei esse casco de tartaruga e
levei água para vocês. Joguei água no rosto, na boca de vocês. Como não
acordavam, carreguei primeiro um, depois o outro, para cá. Dei mais água,
joguei mais água no rosto. E então vocês ficaram num sono calmo. Dormiram o
resto da noite, todo dia, toda a noite e mais meio dia… Eu já matei um veado
com a boleadeira, e já assei um bom pedaço. Vamos comer.

—  
E Sálvio?

— Deixe-o dormir. Acordará mais bem disposto.
Quincas levantou-se. Atravessamos o bosque e saímos

numa clareira. Com
verdadeiro assombro, vi-me diante de uma casa, uma casa comum, de pedra.

—  
Que é isto, Quincas? Uma
casa?

—   Uma casa, sim. E não é a única. Há outras iguais por aí..

—  
De quem são?

—   Não sei. Mas não foram feitas pelos índios. Eles não
|fazem casas como esta. Eles náo ficam num lugar. . .

— Quem as fêz, então?

— Quem sabe? Venha.

Entramos. A casa era um grande quadrilátero de pedra, dividido em
quatro compartimentos iguais. O vigamento do telhado era de troncos de árvores,
sobre os quais havia uma bem tecida trama de folhas de palmeira, agora caindo
em pedaços nalguns pontos. Um cheiro gostoso enchia a casa. No compartimento
traseiro. Quincas improvisara com pedras um fogão. Sobre ele estava uma vasta
panela de barro, com os bordos esbeiçados, enegrecida. Dentro da panela, havia
grandes pedaços de carne tostadinha. E, no canto, estava encostado um grande
cacho de bananas maduras, ao lado de um monte de mandiocas. Arregalei os olhos,
com água na boca.

—  
Que é isto? Vamos fixar
residência?

—   Não seria mau… Aqui perto há campos que foram
cultivados… mas depois falaremos. Coma.

Essa foi a mais gostosa refeição que fiz na minha vida, até hoje. Só no
fim é que percebi que a carne e a mandioca estavam sem sal. Comi uma dúzia de
gostosas bananas E bebi água deliciosamente fresca. Que banquete! Que banquete
!

— Sálvio vai ficar besta,
Quincas.
— Vamos acordá-lo.

Mas
Sálvio não dormia. Estava de pé, diante do monte de pontas de sílex. Tinha uma
flecha acabada na mão, e olhava estupidamente para aquilo, sem compreender. Quando
caí na gargalhada, ele se voltou, dum pulo.

— Até
que enfim! Por onde, diabo, andaram? E você,
Quincas, onde se meteu? Que história é esta?

Contei-lhe rapidamente a heróica
dedicação do nosso amigo. Abraçaram-se, muito comovidos, e depois fomos para a
Casa de Pedra. Diante dela, Sálvio boquiabriu-se:

—   Uma casa! Uma casa de verdade! Não entendo!

—   Construímos essa casa enquanto você dormia, Sálvio.
Vamos ficar morando aqui.

—   É.. . — titubeou ele, sorrindo, desconcertado. —
Interessante. Muito interessante! Quem descobriu isto?

—   Quincas. Enquanto dormíamos ele andou fazendo
explorações, e quando acordei já tinha tudo isto limpo, colhido essas frutas,
feito fogo e preparado uma refeição! Ele diz que há outras casas iguais a esta
e que há por perto campos que foram plantados.

—   Há, sim. E não muito longe.

—  
Deve ser uma antiga
colónia.

—   Foi abandonada há muito tempo — disse eu.

—   Não creio — respondeu Quincas. — Não deve haver muitos
anos que os moradores se retiraram. As plantações foram cuidadas até poucos
anos atrás.

—   Estou pensando numa coisa — disse Sálvio. — Estas
casas não foram construídas pelos selvagens. Eles n£o fazem casas assim, mesmo
porque não permanecem muito tempo no mesmo lugar, gostam de andar mudando. Isto
foi mão de gente civilizada. São casas bem feitas, sólidas. Naturalmente os
moradores foram atacados pelos índios e obrigados a fugir, ou mortos. Mas há
também uma coisa. Se tivesse havido aqui uma colónia de gente civilizada, de
brasileiros ou europeus capazes de fazer estas casas, a notícia teria chegado
às cidades mais próximas. Eles não poderiam ficar inteiramente isolados.

—   Mas, então?…

—   Penso — continuou Sálvio — que os índios desalojaram
os moradores daqui e ocuparam o lugar, mas o seu instinto nómade os levou logo
embora. Observem esse telhado. Não é o primitivo. Não se faz uma casa de pedra
coberta de folhas de palmeiras… Ainda se distinguem vestígios do primeiro
telhado da casa. Naturalmente, desmoronou com o tempo e os índios é que
cobriram com palmas.

– Acho melhor
comer, Sálvio. Depois você discute esse problema.

A proposta de Quincas era acertada e Sálvio concordou Imediatamente.
Depois de comer como um gigante, fomos percorrer os arredores. Encontramos
grande número de casas, que a vegetação estava invadindo e envolvendo
valentamente. Nenhuma delas tinha telhado, e em algumas se notavam
os restos da cobertura de folhas de palmeiras. As casas haviam sido construídas
segundo um plano, em semicírculo, numa praça semicircular com ruas irradiantes.
Exploramos muito bem os arredores, o que tomou toda a barde, e acabamos de
modificar a opinião primitiva. Os construtores das casas não haviam sido
obrigados a fugir, pois que não haviam deixado nada atrás de si.. . Decerto
mudaram-se calmamente, por um motivo qualquer que desconhecemos.

Os
campos de cultura, que também percorremos, haviam sido reconquistados pela
vegetação nativa. Restavam, todavia, algumas touceiras de bananeiras, bosquetes
de mandioca, de árvores frutíferas, e uma espécie de batata doce selvagem. Os
aspecto geral era de desolação e abandono.

Enquanto eu e Sálvio examinávamos as batatas doces,; Quincas, que
estava à beira do barranco, gritou:

— Venham cá! Venham ver uma coisa!

Na sua voz havia um apelo impressionante, que nos fêz correr.

A ribanceira tinha uns cinco metros de altura, era talhada a pique, e,
embaixo, em horrorosa confusão, amontoavam-se ossos humanos Caveiras, tíbias,
perónios avultavam naquela confusão, identificando os esqueletos ao primeiro
olhar.

— Vamos examinar isso mais de perto — disse
Sálvio.

—   Podemos colher informações… com esses esqueletos!

—   
A ideia era fúnebre, mas não nos
assustava. Já estávamos calejados. Fizemos uma grande volta, e pouco depois nos
encontrávamos no fundo, entre os esqueletos. Contamos, primeiro, 85 caveiras.
Muitos ossos estavam cobertos de terra, mas todos se apresentavam absolutamente
limpos de carne e cartilagens, e nos crânios não havia mais sinal de cabelos —
o que dava a ideia do grande número de anos decorridos sobre aqueles despojos.

— Acredito
que estas 85 caveiras sejam apenas a camada superior — disse Sálvio — sob a
terra deve haver muitas mais. Isto parece um cemitério.

Depois, levantando um dos crânios, Sálvio apontou para a brecha aberta
no frontal.

— Olhem.
Isto foi em vida da criatura. Uma cacetada
violenta. . .

Levados por esse indício, examinamos outros ossos e encontramos
inúmeros sinais de violência.

—   Deve ter havido grande luta, lá em cima. Os vencidos foram atirados aqui para baixo e aqui morreram, e aqui ficaram…

—   Só pode ter sido isso, Quincas. Possivelmente, moravam
naquelas casas.. .

Dentro da minha cabeça se desenrolaram rapidamente as tremendas cenas
de que aquele local fora teatro, quem sabe havia quantos anos! O ataque aos
moradores das casas de pedra. A desesperada defesa, a luta sangrenta e a
derrota final. Aqueles que víamos ali no fundo haviam simplesmente morrido.. .
Mas seriam só esses? Quantos outros teriam sido carregados pelos selvagens? E
quem seriam esses homens? Brancos? Vermelhos? Atlantes? Brasileiros?
Estrangeiros? Padres? Aventureiros? Quem poderia responder a essas perguntas?
As casas, decerto, foram testemunhas de tudo, mas essas jamais poderiam falar.
E as perguntas permaneceriam sem respostas.

No
entanto, como Sálvio notou, havia um flagrante contraste entre aqueles
esqueletos que sugeriam uma luta tremenda e as conclusões a que havíamos
chegado pouco antes, ao verificar que os que abandonaram as casas não fugiram
porque nada haviam deixado atrás de si.. . Era um mistério, e talvez o
pudéssemos decifrar algum dia.

Durante muito tempo andamos entre os ossos descarnados, tentando
arrancar-lhes o segredo da vida e da morte.

E assim nos veio encontrar a noite. Voltamos a
casa de pedra, cansados, abatidos, com um estranho peso na alma. Quincas achou
melhor não fazer fogueira.

— Não
sabemos onde estamos. O melhor é trancar a
porta com alguns galhos e nos deitarmos no escuro aí
dentro.

Aprovamos a sugestão e construímos uma sólida porta com galhos e
bambus. Sentados no chão, tentamos conversar, mas era impossível. Não nos saía
de dentro dos olhos a visão daquelas criaturas que haviam sido mortas, que
haviam apodrecido lá embaixo da ribanceira e cujos ossos esbranquiçados se
espalhavam no fundo da ravina. Resolvemos, pois, tratar de dormir. De minha
parte, levei muito tempo virando e revirando no chão, antes de me

entregar ao sono.

* * *

Acordei com a estranha impressão de que alguém se encontrava ao nosso
lado, alguém que não era amigo. Sacudi meus companheiros?

— Não notaram nada?

Sentados,
olhamos em torno. Estávamos no pequeno compartimento do fundo, o mesmo do
fogão, para aproveitar-lhe o calor. Quincas levantou-se silenciosamente e
passou para a sala da frente. Pouco depois voltava, segredando:

— A porta! Tiraram a porta!

Corremos
os três para o compartimento da frente, e vimos, contra a claridade lá de fora,
que a porta feita com tanto trabalho não se encontrava mais no lugar.

Saímos para o terreiro. O dia começava a clarear. Aragem fria nos punha
arrepios na pele. Ninguém. Nada se mexia. O silêncio era completo,
acabrunhante. Só um ou outro pio forte vinha do seio da mata. Entramos
novamente, para ter uma surpresa maior e mais desagradável. A nossa reserva de
mantimentos, frutas, carne — tudo havia desaparecido. Alguém andara em torno de
nós e nos despojara. No entanto, reinava o mais calmo silêncio na manhã
nascente.

EntreoIhamo-nos, e sentimos que o pânico
estava muito próximo.

—    Precisamos ter calma — aconselhou Sálvio. — Se
nos quisessem matar, a esta hora já não conversávamos. Talvez eles só quisessem
as provisões.

—    Mas quem serão eles?

—    Selvagens, decerto.

—    Concordo — disse Quincas. — Mas vamos embora.
É preferível a floresta.

Tornamos
a sair. A claridade aumentara, e a algazarra dos pássaros era infernal. Bandos
de araras, de periquitos e papagaios passavam berrando como possessos. Chegando
ao local onde Quincas estivera trabalhando na tarde anterior, verificamos que
todas as flechas preparadas por ele haviam desaparecido, bem como os cascos de
tartarugas.

—    Levaram tudo o que encontraram. Decerto, não
nos consideraram suficientemente bons — chasqueou Sálvio.

—    O que temos a fazer — disse Quincas — é
preparar algumas flechas, terminar os arcos e dar o fora. Este lugar é mal
assombrado.

Foi
o que fizemos, e, pela hora do almoço, cada um com seu arco e um amarrado de
flechas, estávamos na margem do Xingu, sem ter encontrado nenhum motivo de
alarma. Ali nos esperava uma surpresa. Havia seguramente trinta pirogas
encalhadas na areia da praia. Assim que as vimos, recuamos, receando ter sido
avistados também. Depois, por entre os troncos, pusemo-nos a observar os
arredores. Custou, mas convencemo-nos de que não havia selvagem algum por
perto. Ninguém tomava conta das embarcações. Cheios de coragem e por iniciativa
de Quincas, corremos, metemo-nos numa das canoas e remamos vigorosamente
para a margem fronteira. A correnteza fêz-nos derivar muito e só abordamos a
margem mais de um quilómetro a jusante. Pulamos deixando a canoa, que lá se
foi, rio abaixo, rodando, e metemo-nos pela floresta que se estendia à nossa
frente.

Durante muito tempo caminhamos o mais depressa possível. Paramos ao ver
uma grande ave pousada num alto galho. Quincas resolveu experimentar
sua perícia como arqueíro. Restesou a corda, e a flecha partiu. Ouvimos um
baque surdo. O grande pássaro abriu as asas como para Voar, e deu um grito, mas
as asas bateram o ar desordenadamente e ele rolou vindo a cair aos
nossos pés. Era enorme, branco, de fofas penas. Tinha penacho vermelho na
cabeça, enorme bico recurvo, garras e pernas fortíssimas. Concordamos em que
devia ser uma ave de rapina. De qualquer modo, forneceu-nos excelente assado e
era isso apenas o que esperávamos. A sua classificação não nos importava
absolutamente.

—   Não compreendo como é que não encontramos ninguém
ainda — disse Quincas, quando de novo íamos a caminho.

—   Pois eu estimo bastante não encontrar. Acho muito
melhor andarmos sós.

—   Mas é que não vamos sós.

—   Como ? — espantou-se Sálvio — Você quer dizer
que alguém nos segue?

—   Sem dúvida. Estou certo de que vimos sendo
seguidos desde que saímos da casa de pedra. Talvez desde antes.

Senti um calafrio.

— Mas como é que não vimos
ninguém até agora?

— Pois
é isso exatamente o que mais me preocupa.Não sabemos quem são. Não sabemos se
são amigos ou inimigos e o que desejam de nós. Se os tivéssemos visto, já saberíamos
disso. De qualquer modo, devem ser selvagens. Só eles são capazes de andar pelo
mato sem se deixar perceber.

Continuamos
a caminhar, carregando esse peso. Ao cair da noite, paramos perto de um
ribeirão e fizemos duas grandes fogueiras. Assamos o resto do pássaro e ceamos.
Nossa conversa, desanimada e reticente, girou em torno do mesmo assunto: quem
seriam os homens que nos perseguiam, por que o faziam, por que não se mostravam,
que pretendiam de nós? A noite caiu negríssima, pois a lua só se levantaria
mais tarde, quase sobre a madrugada.

Adormeci logo, apesar das preocupações.

 

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.