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CAPITULO 16

NO LIMIAR DO CAOS

A CORDAMOS AO SOM DE VIOLENTÍSSIMO
TROVÃO QUE

ficou ribombando longamente, como que
arrastado à força por entre picos de montanhas.

instintivamente
nos sentamos e nos aproximamos uns dos outros, com os olhos muito abertos nas
trevas.

—    Trovoada! — disse Sálvio em voz baixa. E, como
para confirmar a sua genial descoberta, um segundo trovão estalou, tão violento
como o primeiro. Imensa espada de fogo ziguezagueante desceu do céu e meteu-se
pela terra em algum lugar, próximo, à nossa esquerda. Ouvimos um gigantesco
estalido. Chegou até nós forte cheiro de terra queimada, e, por um rápido
momento, se descortinou aos nossos olhos deslumbrados uma paisagem atormentada.
Era o panorama do caminho por onde havíamos de continuar a nossa viagem. Tive a
impressão de que alguém havia atirado para aquele canto todas as rochas, todos
os materiais sobrados da construção dos planetas. Visão tão rápida como um
piscar de olhos, mas tão viva e impressionante que me ficou gravada na retina
até hoje.

—   
Vocês viram?

—   
Eu vi.

—   
Eu também. Parece o
inferno…

Um terceiro trovão estourou. E outra língua de fogo riscou as trevas à
nossa esquerda. Só que esta vez ela partiu da terra, equilibrou-se durante
algum tempo, tremulando, e depois subiu em direção a um novelo de nuvens negras. Em seguida
enrolou-se sobre si mesma, regirando, transformou-se numa grande bola ígnea e,
como bolha de sabão solta, deu um salto, percorreu o céu enegrecido e revolto
em longa parábola e foi mergulhar no horizonte à nossa frente, atrás de imenso
pico negro que iluminou durante um décimo de segundo.

— A
Bola de Fogo! — murmurou Sálvio com a voz
presa. — A lenda!… a "mãe do ouro"!…

Nesse
momento desabou o aguaceiro. A chuva começou a cair em torrentes, com ruído
ensurdecedor. A terra estava ameaçada de submersão! Decerto, ia haver outro
dilúvio. Eram cataratas rolando ininterruptamente — e nós sem nenhuma
possibilidade de abrigo! Naquela noite dos selvagens louros, havia as rochas ao
nosso lado; mas, agora, nada. Estávamos no alto de um morro, num platô plano. E
a água rolando, rolando.,.

— E se descermos ? — gritei.

— Você está louco! Se déssemos um passo para baixo, a enxurrada nos
levaria imediatamente como palhas!

Refleti que realmente seria assim. A água se precipitava com tamanha
violência pelas vertentes da serra, que qualquer tentativa de descida seria
simplesmente suicídio. E, assim, ali tivemos que ficar imóveis sob o aguaceiro,
assistindo ao terrível espetaculo dos relâmpagos que se sucediam violentos,
deslumbrantes, seguidos por demorados e ensurdecedores trovões. Por várias
vezes, à luz das faíscas, entrevimos as rochas amontoadas, em desordem lá
embaixo, sem, no entanto, poder fazer ideia exata do verdadeiro cenário.

O dia nasceu, mas a tempestade continuou igual, violenta, ininterrupta.
Parecíamos fechados dentro de um círculo de cortinas cinzentas, que não nos
deixava enxergar nada alguns metros além. Era tudo fosco, impenetrável.

O dia se passou inteirinho, arrastado, lento, desesperador, dentro
dessa chuva pesada, maciça, interminável. Cachoeiras rolavam pela serra abaixo,
juntando seus estrondos aos estrondos dos trovões.

Ao anoitecer, estávamos cansados
e irritados.

—    Que coisa infernal! Isto nunca mais vai
terminar! Foi sempre assim! Decerto só não choveu no momento em que chegamos.
Mas isto foi sempre assim!

—    Realmente já é demais — concordou Sálvio. —
Parece o fim do mundo.

Quincas, que estivera calado, falou também:

— O
pior é que estas chuvas se prolongam às vezes por
uma semana. Já tenho visto chuvas caírem durante um
mês seguido. Raro é ver uma tempestade violenta como
esta.

As palavras de Quincas não eram nada animadoras. Mas, felizmente,
aquela tempestade não durou um mês, nem uma semana. Depois da meia-noite
começou a diminuir a sua violência e, pela manhã, já não chovia. Quando O sol
nasceu, o céu estava tão limpo, tão azul, tão sereno como se jamais houvesse
existido nuvens. Era um céu lavado, esfregado, polido como parede de azulejos
recém-ensaboada.

Olhamos o vale para onde deveríamos descer. E tivemos diante de nós o
espetáculo mais angustioso que olhos humanos já puderam contemplar. O que os
relâmpagos nos tinham permitido ver a intervalos, e à luz rápida, era apenas
uma amostra muito vaga da realidade.

A perder de vista — até onde o céu e a terra se confundiam na mesma
linha — era tudo um mar de escombros!

Aquela
primeira impressão que eu tivera me voltou à monte: era como se O pedreiro que
construiu as esferas celestes tivesse
lançado para ali as sobras do material. Gigantescos pedaços de rocha atirados
ao acaso; montões enormes de areia,
OU do que parecia areia; covas imensas como crateras do extintos
vulcões; lagoas de águas imóveis e, aqui o ali, alguns arbustos,
mas que arbustos!

Galhos retorcidos, nus, disformes, sem folhas!

—    Bem me pareceu que isto é o inferno —>
disse Quincas esbugalhando os olhos para aquele horror.

—    E temos que atravessar isso!
murmurou, fascinado pela fealdade inexcedível daquele abismo.

—   Já que temos de o atravessar, vamos logo!

—   Sim, Sálvio — disse Quincas, sem entusiasmo — mas onde
encontraremos mantimentos e água?

Não
tínhamos pensado nisso…
Mantimentos… Água… As inexoráveis cadeias que limitam os passos do homem!

Fomos até à borda do platô. Olhamos a vertente por onde havíamos
subido. Que diferença! A floresta se estendia, verdejante, esplêndida, desde os
nossos pés, indo per-der-se ao longe, na linha do horizonte! Ali estavam a
vida, água, alimentos, sombras frescas! Embaixo daquelas árvores, era possível
viver, ao passo que lá para diante só nos esperavam a aridez, o calor, a fome,
a desolação, o cansaço!

— Sim…
— disse Sávlio, como se estivesse lendo o meu
pensamento — para trás, tudo é melhor. Mas o nosso destino é aquele, para a
frente — e para a frente caminha
remos !

Não discutimos. Viéramos para chegar a um determinado lugar — e, ou
chegaríamos a ele, ou morreríamos no caminho!

Fazia
mais de seis meses que deixáramos São Paulo e não poderíamos desistir agora. Já
havíamos atravessado um deserto cheio de ameaças de morte, e tínhamo-lo vencido
! Além disso, devíamos estar perto do fim — se é que os cálculos de Sálvio
estavam certos.

— Bem.
Vamos ser práticos, então — disse eu. — Desceremos de novo até a orla da
floresta. Faremos provisão
de frutos e raízes, encheremos algumas cabaças de água,
descansaremos algumas horas e voltaremos para atravessar o caos…

Foi
o que fizemos. Na floresta, Quincas soube encontrar grande provisão de frutos e
raízes. Dormimos toda a noite, que bem o precisávamos e, na manhã seguinte, bem
cedo, enchemos d’água oito grandes cabaças de pescoço fino, que amarramos com
cipós à cintura e, cada um de nós, armado de um cacete — única arma que as
circunstâncias nos permitiam, além dos facões de que nunca nos havíamos separado
— vimo-nos novamente sobre o píncaro da serra onde havíamos passado as duas
noites de tempestade.

Por um desses acasos inexplicáveis, Sálvio descobriu num pilar de pedra
igual ao que já encontráramos dias antes, alguma coisa que lhe chamou a
atenção.

— Venham ver! Há uma inscrição,
aqui!
Realmente, numa das faces do pilar, a que se voltava

para o caos, estavam
profundamente gravados dois grupos de traços, o de cima representando dois
triângulos, ápice contra ápice, e o de baixo, duas linhas curvas entrelaçadas.
Sálvio examinou os traços durante alguns momentos, e, depois, falou:

—    Isto tem um grande significado. Os dois
triângulos, colocados nesta posição, querem dizer: "Fogo do céu e fogo da
terra". O triângulo de cima é Ra e o de baixo é Ta. O primeiro representa
o fogo da terra e o segundo o fogo do céu… Lembrem-se das duas noites
passadas e verão que isso quer dizer alguma coisa…

—    E essas duas linhas?

Querem
dizer quase o mesmo; representam o "Abismo do céu" e o "Abismo
da Terra". Recordem-se do que vimos. Olhem esse cenário, vejam a altura em
que estamos — e perceberão a ligação profunda entre essas inscrições e a
realidade do local em que estamos. Portanto, declarei mais uma vez: Estamos no
caminho certo! Para a frente!

Iniciamos a inesquecível marcha
para o Caos!

O
tempo continuava ótimo. O céu, azul como o interior de uma turquesa bem polida.
Soprava aragem suave — e, lá embaixo, aos nossos pés — "o campo de
destroços do mundo!"

 

CAPÍTULO 17

O VALE DOS ESCOMBROS

ESTA CAMINHADA POR ENTRE OS DESTROÇOS GIGANTESCOS

foi a parte mais penosa de toda a
nossa viagem. As dificuldades começaram no sopé da grande serra, que levamos
dois dias para descer. As rochas de caprichosas formas estavam, como já
dissemos, atiradas a esmo e formavam meandros, corredores, labirintos
fatigantes. Só avançávamos contornando os pedrouços em longas voltas, ora para
a direita, ora para a esquerda. Isso não seria nada, pois aumentaria apenas de
alguns quilómetros o nosso percurso. O pior era o solo, granítico, rugoso,
irregular, uma tortura para os pés. É fácil calcular como estaria o nosso calçado
depois de seis meses de marcha, embora nos tivéssemos provido de botas
excepcionalmente fortes, e embora tivéssemos feito boa parte da viagem em canoa
e nas mulas. As solas se haviam adelgaçado muito com a continuidade do pisar as
superfícies rugosas e irregulares da planície atormentada — e tivemos que ficar
um dia inteiro descansando os pés, assim que encontramos um regato de águas
vermelhas que corria entre as rochas e isto, depois de dois dias de marcha.

Durante
esse descanso, sentimos com maior intensidade o quanto era desolado,
terrivelmente desolado o vale dos escombros. De cima, vinha um sol inclemente,
que reverberava nas arestas das pedras. Do solo subia uma temperatura bochornal
que parecia agarrar-se à pele da gente. E, sobretudo, o silêncio maciço, denso
como água. O silêncio, que estamos acostumados a sentir, o silêncio da noite na
cidade, no campo, ou na mata, é feito de milhares de pequenos ruídos que o
nosso ouvido não distingue nem dl noivo.

Ali faltava isso. Faltava toda e qualquer manifestação da
vida. Faltava qualquer espécie de ruído. Era o silêncio absoluto. Não é
possível transmitir-se a impressão que nos esmagava — e isto, esta incapacidade
de transmissão de certas sensações é muito saudável para o leitor, que, assim,
se livra da angústia.

Só suportamos esse pesadelo durante um dia inteiro de imobilidade
porque nos preocupávamos muito em aliviar os pés e porque estávamos muito
cansados.

Quincas experimentou beber um pouco daquela água vermelha do regato,
mas cuspiu logo:

— Brrrr! Gosto de ferrugem!

Eu
e Sálvio também experimentamos o "gosto de ferrugem" daquela água,
que era, realmente, muito pronunciado.

Pela tarde, quando já
nos sentíamos bem melhor, e quando a impressão de solidão ia aumentando com
aquela imobilidade do ar que caracteriza os ocasos em que a Na-, tu reza parece
desejosa de descansar por um minuto, Sálvio I levantou-se
e começou a andar. Subiu a uma lombada de granito, uns cem metros adiante, e
pouco depois chamou:

— Jeremias!
Venha cá! Só você… O Quincas que
fique aí…

Levantei-me e caminhei para
Sálvio.

— Veja..
. Olhe bem para aquela pedra a cuja sombra
Quincas está sentado.. .

Olhei e, instintivamente, bradei:

—    U’a mão! Sálvio confirmou:

—    Uma gigantesca mão fechada, não é?

Era esse o formato da rocha: uma gigantesca mão, com seis metros de
altura, fechada e apoiada sobre o solo. Nós estivéramos sentados à sombra
daquele monstruoso punho, e Quincas lá continuava, pequenino, entre os dedos
anular e médio do mão de pedra. A perfeição da escultura era impressionante nos
seus menores detalhes — tudo minuciosamente esculpido, como se um
desproporcional artista tivesse trabalhado carinhosamente naquela obra.

Não queríamos acreditar que fosse obra humana, e, no entanto, só
podíamos olhar para ela, sob a impressão de que um escultor havia andado em
redor da pedra, com suas ferramentas, sobre andaimes, polindo, desbastando,
dando forma. No entanto, naquele lugar, só podia ser, realmente, um capricho da
Natureza.

Depois, Quincas veio para o nosso lado e
arriscou:

— Foi alguém que fez isto… Está muito bem
feito!

Perdoe-nos
a Natureza por essa irreverência. Mas chamamos em nossa defesa um fato que
acontece frequentemente e decerto já aconteceu com você, leitor: uma senhora
qualquer pára diante de um ramo de maravilhosas flores. Olha, olha e exclama: —
Que lindas! Parecem artificiais !

Depois,
voltamos para a sombra da mão de pedra, junto ao regato ferruginoso e ali
passamos a noite.

O
medonho silêncio que nos esmagava foi subitamente interrompido. Acordamos
certos de que houvera uma explosão em qualquer parte, não longe. Rumores
surdos, profundos como o rodar de pesados carros, enchiam agora o largo espaço
torturado do vale. Depois, para o nascente, o céu começou a assumir tons
avermelhados, vacilantes, que aumentavam a cada minuto, até se transformar todo
o céu numa imensa mancha rubra.

—    Que será isso? — indagou Sálvio. — Parece
clarão de incêndio!

—    Incêndio ? — perguntei espantado. — Seria
realmente uma coisa sem precedentes, rochas ardendo no deserto!

Quincas
é que não disse nada. Correu e subiu a uma alta rocha. Viamos sua silhueta
negra contra o fundo rubro do céu — e juro que era uma cena de fascinante
beleza, de trágica beleza.

Depois, a sua voz chegou até nós, esganiçada:

— Fogo! Fogo! Está tudo em chamas lá embaixo!

Corremos
e pouco depois estávamos, ofegantes, ao lado do nosso guia. O rosto de meus
amigos estava côr de brasa. Seus olhos, arregalados de espanto, brilhavam como
carvões acesos.

A
última frase de Quincas: "Está tudo em chamas lá embaixo",
pareceu-nos, ao primeiro golpe da vista, expressão da realidade. Mas, depois de
acalmados percebemos que não era bem isso. Na verdade havia fogo lá embaixo,
mas não estava "tudo em chamas".

O que víamos era um imenso lago de chamas, afastado de nós uns três
quilómetros. Dir-se-ia uma bacia de granito cheia de petróleo ardendo. Aqui e
ali, labaredas se levantavam, esticavam-se violentamente, estorcendo-se,
lambiam as nuvens e decresciam como elásticos relaxados. Na margem do lago
havia três imensos repuxos de fogo, três colunas de chamas líquidas que, quais
mangueiras de bombeiros, jorravam da terra mergulhando no centro do báratro
flamívomo.

Estávamos mudos. Não havia o que dizer. Só podíamos olhar. Olhar
fixamente o grande e terrível espetáculo.

O
ruído surdo continuava. As labaredas levantavam-se para as nuvens, umas atrás
das outras, incansavelmente.

Estivemos muito tempo ali,
fascinados. Depois, como | era preciso dormir, descemos. Antes de
adormecermos, Sálvio, que estava muito pensativo, falou:


Acho que compreendi do que se trata. Estivemos olhando para um vulcão
frustrado… Naturalmente, há no subsolo minerais em fusão. A expansão dos gases abriu aqueles repuxos de fogo, e a concavidade natural encheu-se
de lavas. Tivemos a rara felicidade de chegar aqui no momento em que os gases
explodiram, dando origem aos três estranhos "geisers" ígneos. Se isto
não durar muito tempo, amanhã veremos de perto como ficou o lago.

Voltamos a estender-nos junto à mão de pedra. Durante muito tempo,
fiquei ouvindo os roncos subterrâneos e vendo o clarão do fogo no céu, que
aumentava e diminuía constantemente …

* * *

Acordamos com o sol alto na
atmosfera esbraseada.

Subimos a elevação. Agora, lá adiante, havia realmente um lago, de
superfície rebrilhante, lisa, polida como um espelho. Não havia nela o mínimo
movimento. Não havia mais fogo. Apenas, aqui e ali, da vasta superfície
espe-lhante se erguiam, preguiçosamente, volutazinhas de fumo azul, que
pareciam alcançar o céu, mas se desfaziam depressa.

—    Aí está — disse Sálvio. — Tudo quieto. As
forças da Natureza estão descansando.. .

—    Acho muito melhor assim — opinou Quincas.

—    Pois eu não — acudi. — Era um espetáculo
maravilhoso e gostaria de vê-lo novamente.

—    Que gosto estragado! — exclamou Sálvio. — Mas
creio que este deve ser um espetáculo periódico. Não foi a primeira vez, nem
será a última que os três repuxos de fogo se erguem sobre esse lago de lava…

—    Vamos indo ? — lembrou Quincas. — Não temos
provisões para muito tempo…

Fomos
indo. . . Queríamos passar perto do lago, mas não foi possível. Irradiava calor
tão sufocante, que tivemos de passar bem longe. Aquela imensa superfície, lisa
como espelho, dentro de algum tempo, certo estaria fria e sólida, como grande
lente de cristal fundida para fazer parte de ultrapotente telescópio.

Passamos
adiante e seguimos o nosso caminho, sem outra novidade, senão o infindável
silêncio. Pela tarde desse dia, quando descansávamos, Quincas exclamou, de
repente:

—    Ora bolas! Agora é que estou percebendo!

—    Que é? — perguntei, espantado.

—    O silêncio! Já sei!

—    Que tem o silêncio, Quincas?

—    É porque não há nenhum animal, nenhuma ave
neste deserto! Já viram algum pássaro voando?

—    
É isso mesmo — aprovou Sálvio. —
A ausência de árvores e de animais é que torna tão angustiosa esta solidão !
Não há a mínima manifestação de vida aqui… Se víssemos, ao menos, alguma
serpente, qualquer coisa viva… já nos sentiríamos outros!

Nesse
momento, percebi algo lá adiante, junto a uma pedra negra. Suspendi a
respiração e fiz sinal de silêncio nos meus companheiros.

—    Que foi? — perguntou Sálvio.

—    Pssiiu! — fiz eu. — Há um animal qualquer
ali.. . Caminhamos lentamente para o ponto onde eu vira

qualquer coisa se
mover. E outra vez essa coisa se mexeu. Desta vez, porém, nós três vimos o
movimento.

— É um bicho! — murmurou
Quincas.

— Bem
— disse Sálvio, alegre, a meia-voz — então
existe vida por aqui!

Chegamos
até bem perto da pedra negra que ocultava o bicho e escondemo-nos atrás de
outra. Quincas pegou num seixo e atirou-o ao local onde a coisa se movera.
Houve um movimento rápido como um relâmpago. Encolhemo-nos instintivamente.

— Não
pode ser! — protestou Quincas, — Jacarés não
vivem em lugares secos como este!

A "coisa" que se movera tão
rapidamente e parara era, realmente, uma cabeça de jacaré, ou tal me parecera.
A diferença estava em que os olhos, muito saltados, tinham j estranha
mobilidade e que sobre o focinho se levantava uma crista córnea que se
prolongava para trás. Parecia uma. serra de grandes dentes. E, a julgar pela
cabeça, o bicho devia ser muito grande.
De repente, a boca do "jacaré" se abriu, e de dentro dela pulou, como
mola, uma língua trémula, flexível, bifurcada, que se recolheu logo. – É um
lagarto gigante! — disse Sálvio. –
Esperem!.. . Vou fazer esse
malcriado se apresentar – e, apanhando uma pedra maior, Quincas atirou-a.

Então, vimos. O bicho desenvolveu, rapidamente,
espantosa velocidade. Passou perto de nós, fazendo-nos pular e foi parar mais
adiante, em pleno sol, movendo nervosamente a longa cauda.

— Já
sei! — disse Sálvio com ar doutoral. — Meus
amigos! Estamos diante de um animal das épocas pré-históricas,
mas um animal que, segundo os naturalistas, não devia existir aqui. Esse é o
"varanus komodosensis", uma espécie gigantesca de salamandra
encontrada na ilha de Komodo e que contava seis representantes no Zoo de
Berlim. Chega a medir sete metros de comprimento, e esse deve ter uns cinco ou
seis — e, segundo dizem, vivem nos desertos e sentem-se perfeitamente à vontade
no fogo…


Então, já sei onde vai — interrompeu Quincas. — Vai tomar o seu banhozinho
naquele lago que ficou lá atrás…

Assim foi que travamos conhecimento com o primeiro habitante do vale
dos escombros. E ele não pareceu inquie-tar-se muito com a nossa presença.
Deixou-se ficar, imóvel, como se fora uma cobra, botava para fora a comprida
língua, para recolhê-la imediatamente. Quincas quis saber se aquilo era
comestível. Pode ser que o fosse, mas eu declarei, peremptoriamente, que não
provaria nem uma lasca…

E,
assim, deixamos sossegado o "varanus" e prosseguimos a caminhada.
Nossas provisões já eram poucas. Res-tava-nos, apenas, uma cabaça com água,
água ruim. Não esperávamos encontrar tão depressa o rio Iriri, se é que os
mapas estavam certos.. .

* * *

Demos com o rio, mas não foi tão logo. Foi somente depois de mais dois
dias de marcha. Era enorme. Media, ali, com certeza, uns três quilómetros de
largura. Suas águas desciam tão lentamente que nos davam a impressão de
quererem parar a qualquer momento. Não havia árvores, nem ali, nem na outra
margem, nem até onde a vista podia alcançar. Do lado de lá, o vale dos
escombros continuava na mesma desolação atormentada, e subia fortemente. Quando
quisemos tomar banho, descobrimos porque o rio era tão largo: a água dava-nos
pelos joelhos… Ela não conseguira escavar um leito naquele solo férreo, e,
por isso, se espraiava. Encontramos, porém, uma depressão que nos serviu de
banheiro…

Depois, carregando nas mãos toda a nossa riqueza, atravessamos para o
outro lado. Tornamos a encher as cabaças e fizemos uma refeição com as frutas e
raízes que ainda tínhamos e que estavam já quase intragáveis. Passava um pouco
do meio dia quando nos dispusemos a reencetar a caminhada. E então, Sálvio
falou:

—    Amigos, se os meus cálculos não falham,
estamos a uns cem quilómetros apenas do ponto final da nossa viagem. Apesar de
tudo quanto nos tem acontecido, não nos podemos queixar seriamente. Nossos
dedicados companheiros morreram. Eu sabia, de antemão, que apenas três de
nós chegariam ao destino.

—    E por que não disse logo? — perguntei, zangado.

—    Porque não sabia quais seriam os três e, se
tivesse dito, assustaria todos. Estamos na última etapa da viagem. Talvez
alguém nos julgue impiedosos porque não choramos a perda dos nossos
companheiros e das nossas coisas.. . mas o fim que temos em vista é tão
importante, que perante ele as perdas sofridas não têm valor algum. Seremos
felizes até o fim, como temos sido. É possível que encontremos ainda
dificuldades, e grandes, mas chegaremos ao fim. Vou dizer uma coisa: um de
nós não voltará…

—    Quem? — perguntamos, eu e Quincas ao mesmo
tempo.

—    Não sei. Um ficará. Mas isso também não tem
importância diante do nosso objetivo. Portanto, meus amigos, coragem, confiança
e. . . para a frente!

O vale subia. As rochas continuavam loucamente amontoadas por todos os
lados. Os arbustos ressequidos surgiam milagrosamente do solo endurecido, aqui
e além. Por cima, o céu violento, o sol causticante como ferro aquecido ao
rubro-branco, e, por baixo, a rocha dura, irregular, escaldante, requeimada.

O vale subia. Tínhamos, novamente, uma serra diante de nós.

 

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