A LENDA DE LA SARRAZ

Suíça

Toda a tortura inenarrável de viver, viver, viver, sem poder fugir, entretanto, à decadência física e à solidão afetiva e mental, está palpitante nesta lenda que tem início na Suíça, em um castelo todo de pedra…

A LENDA DE LA SARRAZ

NUM CASTELO da Suíça vivia outrora opulento senhor, chamado o barão de La Sarraz, homem dotado de bom Jovem, rico, respeitado pelos vizinhos, amado pelos vassalos, desposou formosa dama da mais alta estirpe, que o amava, e a quem êle correspondia. Tinha um único desejo, e esse desejo foi satisfeito: sua esposa deu-lhe um filho.

Uma noite de inverno, achando-se a senhora de La Sarraz sentada ao lado de seu marido, vendo o filho a dormir, eis que violenta tempestade desencadeia-se lá fora.

 Que terrível tempo! — disse a baronesa. — Nesta cruel estação, em noite de tal temporal, como se é feliz, dispondo–se de abrigo seguro!

— Casa bem solidamente construída — prosseguiu o barão, sorrindo — bom fogo crepitando, excelente esposa e um formoso filhinho. É verdade, se não estivéssemos satisfeitos com tantos benefícios, não seríamos merecedores das graças com que nos cumula a Providência.

— É bom que te lembres, entretanto, meu amigo, — falou a baronesa, — que há talvez muitas pessoas que, surpreendidas no caminho, longe de qualquer abrigo, distantes de qualquer habitação, estão a estas horas sendo vítimas da tempestade. Como as lastimo, e quanto desejaria socorrê-las!

— Foi por isso, minha querida Ana, que ordenei aos criados que abrissem as portas a qualquer hora, a todo aquele que viesse pedir hospitalidade. O meu velho escudeiro, Hermann, disse-me que isso era muito imprudente, e que os ladrões poderiam, assim, introduzir-se no castelo. Estamos, contudo, aqui, e saberemos nos defender. Prefiro expor-me a um perigo, aliás bem pouco provável, a faltar com o dever da caridade. Ouve: se não me engano, eis que chega alguém. Precisamente um daqueles bandidos que o velho Hermann tanto receia, ou um dos pobres viajantes que te causam tanta compaixão.

A baronesa prestou atenção, e, por entre os rugidos do temporal, julgou também ouvir ressoar a sinêta do castelo.

Alguns minutos depois veio o criado anunciar que um estrangeiro pedia asilo por aquela noite.

— Conheces bem as minhas ordens — falou, vivamente, o barão. — A ninguém recusarei abrigo, principalmente num tempo destes. Que aparência tem o estrangeiro?

— Viaja a cavalo, — disse o criado, — e tem o olhar de um fidalgo, conquanto me pareça extravagantemente vestido.

— Convida-o a subir até aqui, e manda preparar-lhe uma ceia.

Quando o criado saiu, o senhor de La Sarraz falou, vol-tando-se para a esposa:

— Conheci um negociante que, tendo adquirido grande fortuna no comércio, queria passar por fidalgo. Se alguém vinha dizer-lhe que um desconhecido desejava falar-lhe, respondia, rcclinando-se na poltrona: "Veja quem é. Se fôr um valdevinos, metam-lhe o pau; se fôr um fidalgo, mandem-no entrar". Não temos, graças a Deus, nenhum credor, nem mandamos meter o pau nos valdevinos. Entretanto, imitaremos o aristocrático negociante, recebendo esse fidalgo.

O estrangeiro entrou. Era um velhinho, magro, mas esperto, e estava, de fato, vestido de maneira extravagante: casaco justo de veludo preto, preso à cintura por uma faixa de seda vermelha, e ornado com botões de prata. Pequeno saco de couro pendia-lhe do cinto, e do outro lado trazia uma adaga, em bainha de damasco. Largos calções de pele de gamo, botas macias. Sobre o peito, um assobio de prata. Trazia na cabeça uma espécie de gorro frígio.

Todavia, o olhar, a linguagem, as maneiras denunciavam, imediatamente, um desses homens habituados a viver entre fidalgos e a fazer-se respeitar em qualquer lugar onde aparecesse.

Saudou com elegância os barões de La Sarraz, a quem jamais vira, dirigiu-lhes em poucas palavras um cumprimento delicado, e, satisfeito esse dever de cortesia, acomodou-se junto ao fogo da lareira.

— Esta formosa Suíça — disse êle, esfregando uma na outra as mãos geladas — há muito tempo que não me vê. Depois disso envelheci um pouco e já me custa suportar os rigores de seus invernos. Que tempestade! Por instantes julguei que ia ser forçado a agarrar-me ao pescoço do meu cavalo para não ser atirado pelo vento dentro do lago Iver-don, ou sobre um dos picos do Jura.

— Não reside aqui no país? — indagou o senhor de La Sarraz.

— Não — respondeu êle, secamente, como se se ofendesse por ter sido interrogado. Depois, tomando um tom de voz mais amável, prosseguiu:

— Passei aqui algum tempo da minha mocidade, her-borizei em suas florestas e em suas montanhas, fiz mesmo algumas observações, e como a gente se prende com facilidade aos lugares onde tira resultados de seu trabalho, mais de uma vez estive tentado a permanecer aqui. A curiosidade, porém, o amor da ciência, a paixão do sobrenatural, levaram-me a países longínquos. Tal como me vedes, viajei de todas as maneiras: a pé, a cavalo, no dorso de um elefante, na corcova de um camelo, nas cadeiras de bambu carregadas por pobres homens reduzidos ao estado de bestas de carga, em trenós puxados por duas renas, em outros atrelados a cães, nos grandes navios europeus, nos juncos chineses, em canoas feitas com troncos de árvore, e jangadas, em tudo. Só não viajei como ícaro, com asas de cera; nem como Baco, em carro puxado por tigres; nem como Jonas, dentro do ventre de uma baleia. Admirei, assim, por diversas vezes, os processos inventados pelo homem para procurar os meios mais fáceis e cômodos de locomoção.

O velho foi interrompido naquele monólogo pelo criado que trazia a ceia.

O barão e a baronesa já tinham ceado, mas ambos aproximaram-se da mesa, a fim de fazerem as honras ao hóspede. A baronesa serviu-lhe com suas próprias mãos uma fatia de carne fria, e o barão encheu-lhe o copo com velho vinho de Borgonha.

O velho comeu com excelente apetite, bebeu alegremente, e recomeçou a conversar, ou antes, a discorrer com tanta volubilidade que não deixava ensejo para uma réplica ou para uma pergunta. E com uma certeza que não permitia dúvidas sobre a veracidade do que dizia.

Os donos da casa, entretanto, estavam pasmados diante de tais narrativas. O hóspede contava-lhes coisas dos países distantes que visitara, e as aventuras que ali lhe haviam acontecido.

— Sim, — dizia èle, fixando no fogo os olhos flamejantes, como se buscasse nas chamas alguma recordação da mocidade, — sim, tive a ambição de continuar a obra dos homens que penetraram os arcanos da natureza. Quis, também, estudar a natureza, porque entre ela e nós existe íntima correlação. Viajei longamente. Estive de região em região, ascendendo às mais altas montanhas para colher plantas menos conhecidas, descendo ao fundo dos subterrâneos para estudar os veios metálicos, observando os diversos fenômenos do ar, da água, do solo, e por toda a parte buscando as diferentes espécies às quais a crendice popular atribui misterioso poder. Vi magnetizadores de serpentes e os faquires da índia, os dervixes de Constantinopla, os velhos coptas do Cairo, os rabinos da Palestina, os chamans da Tartária. Não estive na China, onde há tão antigos elementos da ciência, nem no Ceilão, onde nosso pai Adão, banido do Éden, segundo diz a lenda, refugiou-se num pico que ainda hoje tem seu nome — e disso guardo grande pesar. Mas vivi entre as tribos nômades dos ciganos, essa raça pobre, depauperada, miserável, cuja origem ninguém conhece, mas que ainda conserva um tipo de beleza sem igual, traduzindo nos olhos o fogo do Oriente, na memória os fragmentos de poesias que lembram os tempos homéricos, e que mantém tradições, pilastras de colossal edifício em ruínas.

Quis também ver o que eram os pretensiosos mágicos modemos, adivinhos, astrólogos, fazedores de amuletos e sortilégios. Na Finlândia, para navegar no mar do Norte, comprei a um homem hábil um vento favorável, amarrado dentro das quatro pontas de um lenço. Na Lapônia, sentindo-me doente, consultei um outro sábio. Esse disse-me que eu me sentia enfermo porque minha alma me havia abandonado, e fora visitar outro mundo. Aí encontrara outras almas conhecidas, que procuravam retê-la. Para fazer com que ela tornasse para dentro do meu corpo, o sábio evocou-a, atiran-do-se de bruços no chão, e, finalmente, à força de conjurações, obrigou-a a voltar. Na Alemanha mantive inúmeras conversações com uma velha, que pretendia levar-me a conhecer tudo quanto se passava no alto do Blocksberg, em noites de sábado. Por meu lado, tentei muitas vezes pôr em prática os conhecimentos que adquiri. Neste saquinho que aqui vedes há diversos ingredientes, com os quais fiz operações curiosíssimas. Em Leipzig, os professores da Universidade deram-me o nome de Faustino, em recordação do célebre doutor Fausto. Em outras cidades consideraram-me como feiticeiro. E a verdade é que o sou, um pouco. Nada receeis, porém, pois sou um feiticeiro honrado e inofensivo, que não faz mal algum, e que se confessa pelo menos uma vez por ano.

Assim falou o singular desconhecido.

A baronesa estava maravilhada com as suas narrações, mas o barão não podia reprimir um sorriso de incredulidade, de quando em quando. Entretanto, escutou em silêncio, sem manifestar dúvida, as histórias de seu hóspede, que prosseguia em sua interminável exposição.

Finalmente, quando soava a última badalada da meia–noite, êle erguçu-se e, aproximando-se do berço onde repousava tranqüilamente o futuro herdeiro de La Sarraz, disse, depois de tê-lo contemplado atentamente por alguns instantes:

— Que linda criança! Como se chama?

— Emílio — respondeu a mãe.

— Emílio! Lembrar-me-ei dele. Gosto de crianças. A sua inocência eleva meus pensamentos para as esferas celestes de onde descende, como sopro de Deus, nossa alma virginal. A figura viçosa e rosada das crianças surge a meus olhos como uma das mais lindas flores da terra. No seu sono e nos seus sonhos, o homem se parece com as plantas — e, porventura, não são as plantas seres vivos?

Entretanto, não posso olhar para uma criança sem certa perturbação, pela ignorância em que fico em quanto diz respeito ao futuro dela. Tudo quanto a natureza produz é regulado por leis certas, determinadas, invariáveis — tudo, exceto o futuro do homem.

Quando examino uma bolota, um caroço, um gérmen imperceptível, sei que dali sairá um carvalho, uma árvore frutífera, um cravo perfumado. Do ôvo manchado em diferentes pontos sairá o abutre ou a pomba; de um dos milhares de glóbulos aglomerados na água nascerá a carpa. Salvo alguns acidentes excepcionais, alguns abortos, algumas monstruosidades, a obra geradora da natureza é perfeitamente determinada com antecedência e perpetuamente imutável. O milhafre não produz rouxinóis harmoniosos: o lobo não produz cordeiros. A indústria humana jamais pode modificar essas leis irrefreáveis. Assim, a ciência sabe que os patos gerados sob o calor das galinhas correrão igualmente sobre as águas, como os outros patos, e que as perdizes criadas dentro de uma gaiola do mesmo modo voarão pelos campos, desde que se apanhem em liberdade. Mas a criança, que será dela? Semelhante a seus pais pela sua organização física, que será ela, moralmente? Talvez guerreiro valente, artista, sábio, homem de gênio, ou, o que seria melhor, pacífico e honesto cidadão, bom pai de família… Talvez ap contrário…

— Oh! sossegai — exclamou o velho, notando a inquietação que sua nova hipótese, antes mesmo de ter sido formulada, despertara no espírito de seus excelentes hospedeiros. — Sossegai. Se ao vermos uma criança não podemos dizer qual será seu destino neste mundo, não sera impossível à ciência ter ao menos algumas intuições, por meio de certos diagnósticos. Tudo, neste encantador entezinho, que me estende tão alegremente os braços, o desenho harmonioso do rosto, os lábios, a conformação craniana, os contornos da fronte — tudo, até as linhas delicadas das mãozinhas, tudo, a meus olhos, fala de um prognóstico feliz. Já que me acolhestes com tanta bondade, permitis-me fazer um presente ao vosso querido Emílio?

— Oh! senhor! — falou a baronesa, com ar embaraçado, não ousando aceitar o oferecimento do viajante, mas receando ofendê-lo, se recusasse.

— Expressei-me mal, — voltou êle, — pois vós mesma, minha senhora, dareis esse presente ao vosso filho, formulando um desejo, qualquer que seja, desejo que será satisfeito.

O barão e a baronesa olharam-se em silêncio, não sabendo como responder a tal proposta.

— Falo muito seriamente — acrescentou o doutor Faustino. — Tenho o poder de realizar o desejo que manifestardes. Peço-vos, somente, madura reflexão antes de formulá-lo. . Cuidai de não serdes arrastados por idéia falsa ou desejo enganador, pois, desde que tiverdes manifestado vossa vontade e eu a houver acolhido, minha palavra irá tornar-se irrevogável sentença.

Articulou essas palavras com tom solene, e, inclinan-do-se sobre o berço do menino, quedou-se absorto em muda contemplação.

A baronesa ergueu-se, chamou o marido para junto de uma janela e perguntou-lhe:

— Que achais dessa estranha proposta?

— Ora, minha querida — disse o senhor de La Sarraz — trata-se de uma brincadeira jovial, e nada mais!

— Não! Não posso acreditar que se trate de simples brincadeira! Este viajante, que entrou no castelo de maneira tão singular, que nos fêz narrações tão espantosas, não é, certamente, um homem vulgar. Há no brilho de seus olhos, na entonação de sua voz, na expressão de sua fisionomia, na extravagância de seu vestuário, em toda a sua pessoa, um não sei quê a se impor, e que me impressiona. Lembra-te que se êle fôr realmente um feiticeiro, se puder, de fato, não sei por que poder misterioso, exercer influência sobre o futuro de nosso querido filho. ..

— Mas, desde que êle deixou a teu cuidado formular o desejo que quiseres, nada tens a recear. Se êle puder cumprir esse desejo, só terás de te alegrar, e se êle estiver brincando, havemos de nos divertir, por nossa vez, com seus belos discursos e suas pretensões.

— Zombas e ris. Eu também queria rir, e, contra a minha vontade, não consigo faze-lo. Entretanto, precisamos responder a um oferecimento que, apesar de tudo, estou certa de que é feito com a melhor intenção do mundo. Que pedirei eu?

— Foi a ti que o mágico se dirigiu, e deves, por ti mesma, resolver a questão. Quanto a mim, se me fosse dado pronunciar meus sentimentos, desejaria que nosso filho fosse belo, valente, generoso, e que um dia tivesse a felicidade de casar-se com uma mulher tão bondosa e gentil quanto a minha querida Ana. Se existisse outra igual neste mundo…

— Obrigada pela gentileza — disse a baronesa, um tanto animada. — Farias melhor se me ajudasses na minha perplexidade. Nosso filhinho é belo, e será valente, porque todos os seus antepassados o foram; generoso, pois hei de ensinar-lhe essa virtude, e galante, nada mais tendo a fazer para isso senão seguir-te o exemplo. Além disso, será também rico, e casar-se-á com quem quiser.

— Vamos, minha querida amiga, não vejo então que mais poderemos desejar. Se todas as fadas do país de Vaud, de Berna e de Genebra fossem convidadas para o seu batismo, não sei que mais poderiam elas juntar a essas boas qualidades.

A baronesa inclinou a cabeça, olhou em torno de si com olhar cismador, e, de repente, exclamou:

— Sou tão feliz, tão feliz, que não duvido estar próximo o termo da minha felicidade, isto é, a morte. Espero que meu filho seja tão feliz quanto eu, e desejava, portanto, que ele não morresse.

— Muito bem — disse o marido. — Eis aí uma famosa idéia, que implica, simplesmente, uma revolução na lei universal.

— Podes zombar quanto quiseres, mas pedirei isso, e somente isso!

Com essas palavras aproximou-se do doutor Faustino e formulou o seu desejo.

O barão ria-se. O velho, ao contrário, tornou-se grave e austero.

— Oh! minha senhora! — disse êle, com uma nota de tristeza na voz. — Pensastes bem no que acabais de me pedir?

Examinastes ou entrevistes, ao menos, as suas conseqüências? Antes que eu aceite vosso pedido, e que empenhe minha palavra em cumpri-lo, peço-vos que penseis novamente. Esperarei com paciência o resultado de vossas reflexões.

A jovem mãe, perturbada por aquelas palavras, calou-se, olhou para seu marido, e consultou-o de novo. Mas, como o barão estava convencido de que todas as promessas do doutor eram puro divertimento, não procurou dissuadi-la.

— Tanto vale isso como qualquer outra coisa — disse-lhe êle, baixinho.

— Ah! — exclamou o doutor: — Estais firmemente resolvida?

— Firmemente!

— Vamos! Conquanto me custe ceder a tal erro, empenhei minha palavra e cumprirei o que prometi. Vosso desejo será satisfeito. Estais vendo aquele tição meio queimado? Enquanto êle existir, vosso filho existirá.

Ouvindo aquelas palavras, o barão, tomado de súbito e irresistível impulso, adiantou-se para o fogão, apoderou-se do tição e apagou-o.

O velho contemplou-o tristemente, estendeu as duas mãos sobre a cabeça da criança, murmurou algumas palavras ininteligíveis, e saiu da sala.

No dia seguinte procuraram-no em vão por todo o castelo. Desaparecera, com seu cavalo, sem que pessoa alguma soubesse como, nem a que horas.

Este último acidente impressionou o barão. Ainda tentou falar zombeteiramente da aparição noturna do velho, das suas fantásticas histórias e de sua maravilhosa promessa.

A seu pesar, e no fundo d’alma, recordando-se da fisionomia e linguagem daquele homem, experimentava uma espécie de crença supersticiosa. Por isso, julgou de seu dever guardar com cuidado a acha de lenha carbonizada, à qual, segundo as palavras do feiticeiro, estava ligada a vida de seu filho.

Apanhou cuidadosamente o tição, mandou vir um pedreiro, e abriu uma parede, mandando consertá-la em seguida. Dentro ficara a lenha chamuscada.

A criança cresceu e tornou-se o que seus pais desejavam: um formoso e generoso cavalheiro.

Chamado a combater pela defesa de seu país, lutou violentamente nas primeiras fileiras, em várias batalhas, e saiu sempre são e salvo.

Depois, casou-se com uma nobre e bondosa menina.

Mais tarde morreram seu pai, sua mãe, sua mulher e seus filhos. Êle não morria. Viu, sucessivamente, desaparecer toda a geração a que êle pertencia, a geração seguinte, uma outra ainda.

A morte entrava em sua casa e levava, um após outro, todos aqueles que o ancião considerava seus herdeiros, aqueles cujo afeto invocava para sustê-lo em sua velhice e socorrê-lo em sua última hora. A morte ceifava sem cessar em torno dele, mas não o atingia.

Não morria, e, entretanto, sofria, como as outras criaturas, a ação destruidora dos anos. Estava caduco, débil, trêmulo, fraco tal uma criancinha, e via-se sozinho, no meio de uma raça nova, que olhava para êle com uma espécie de espanto, e da qual não compreendia os movimentos, as idéias, nem sequer a linguagem.

Todos os seus laços afetivos já de há muito se haviam quebrado. Sua vida era destituída de alegrias e ligações — era, mesmo, como um sopro num cadáver. Não tinha outra sensação a não ser a do sofrimento, e implorava a morte a todos os instantes.

Quando ouvia ressoar o sino a finados, exclamava, soluçando:

— Não ressoará êle nunca por mim?

Seu pai contara-lhe a visita do doutor Faustino e sua singular promessa, e êle rira-se. Mas, à proporção que envelhecia, essa recordação passava-lhe pelo espírito como fato digno de atenção.

Pouco a pouco apoderou-se dele a idéia de encontrar o tição e destruí-lo. Onde, porém, achá-lo? Em que parte do castelo, em que esconderijo fora êle metido? Buscas e mais buscas foram empreendidas em diferentes pontos: móveis foram quebrados, paredes derrubadas. Nunca se encontrou um vestígio sequer do tição mágico.

Um dia, certo jovem camponês da aldeia ouviu falar naquelas pesquisas, e recordou-se de uma tradição que remontava a seu tetravô, e que de boca em boca, de idade em idade, tinha ficado na família. Dirigiu-se ao castelo, e, chegando a certo lugar, lembrou-se que fora ali que certo antepassado seu, muito surpreendido, tinha sido convidado a esconder na espessura de uma parede um tição apagado.

De acordo com esse novo indício, novas buscas foram feitas, e a parede, pedra por pedra, demolida numa longa extensão. Num de seus ângulos encontrou-se, efetivamente, o pedaço de lenha.

Levaram-no imediatamente ao velhinho, que o tomou nas mãos, exclamando:

— Deus seja louvado!

Depois, lançou a acha ao fogo, e no momento preciso em que as chamas devoravam sua última parcela, o desgraçado valetudinário exalou seu último suspiro.

A algumas léguas distante de Lausane, sobre a estrada que vai de Morges a Iverdon, ainda hoje se ergue imponente e severo em toda a beleza e elegância de sua arquitetura gótica, o castelo onde esta história se passou.

No alto da porta principal, e em algumas de suas ogivas, pedras esculpidas representam um homem tendo na cabeça um barrete frígio. A gente da terra diz que se trata do homenzinho vermelho de La Sarraz.

Fonte: Maravilhas do conto popular. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.

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