A PESCA DE "POITA"
Correntoso e encachoeirado, banhando matas e lambendo escarpas, engrossado sempre com milhares de contribuintes, que contravertem as suas margens desde as nascentes na Serra Azul, o velho Ibitirati, ao chegar à Capela de Nossa Senhora da Conceição, a montante do porto da cidade, turbilhonando em rápidos e corredeiras, varando em canais impetuosos os furos meandrosos das lages, que tentam interceptar de lado a lado o leito do caudal, aqui rebujando nos peraus, ali fluindo plácidamente sobre álveo arenoso, o rio vai formar delicado remanso na orla direita, sob a umbela protetora de viçosos ingàzeiros, cuja floração em filetes, na quadra da estiagem, tombando na superfície líquida constitui petisco preferido das piraputan-gas e da variada fauna ictiológica aterinídea do fabuloso Cuiabá. Ali, a população ribeirinha supre-se do pescado necessário para abastecer a casa e alimentar a família na quadra da seca. Em setembro, quando as primeiras chuvas alentam o rio, o cenário transmuda-se. Enquanto os dourados rondam os canais e os igarapés à caça das descuidadas boanas de caracideos, os cardumes das espécies de couro liso dominam o sulco da torrente. A moderna gente cuiabana, mantendo o hábito tradicional herdado dos maiores, vai aos domingos distrair-se em pescarias de preferência naquele recanto sombrio do rio. A haliéutica indígena hoje nada apresenta de dificuldade. Nem mesmo o trabalho de tecer linhas de tucum, ensinado por vovó bororó, pois a modalidade se resume no preparo dos anzóis e das linhadas cuja inovação do nylon supera pela resistência as linhas grossas, dispensando o uso de tinturas para disfarçar no meio líquido a côr dos fios. Assim, ali no poço da chácara da Conceição, pululam pescadores de canoa e de barranca, a encher fieiras de bagres, jeripocas, juru-pensens e caxarás, espécimes ávidos do engodo das minhocas, que a terra fértil proporciona ao pescador profissional ou diletante na sua atividade. Não raro apanham também os amadores da arte dezenas de pacupevas, que a flux atalaiam quase à flor das águas, junto as ramagens dos saranzais os resíduos das enxurradas, ou as inquietas piquiras e trêfegos lambaris, escapulindo-se todavia ao lance das tarrafas dos apanhadores de iscas. Numa destas belas manhãs de domingo de outubro, evitando o "métier" de aproveitar o descanso dominical no recesso do gabinete de trabalho, pesquisando pardacentos volumes ou mal folheando arcaicas folhas, provinciais à cata de assunto para crônicas semanais, querendo mais, muito mais, dar ao espírito atribulado e ao coração cuidadoso, motivos de abstração às preocupações quotidianas de trabalho afanoso, fui com os filhos relembrar os idos da juventude numa pescaria no rio Cuiabá, ali na chácara da Conceição. No bucolismo encantador do recôndito fluvial, na meia sombra acolhedora, que as galhadas dos ingàzeiros iam minguando com a ascensão do astro rei na curva azul celeste, mal embaçado na penumbra que alguns cúmulo ainda projetavam na superfície, sem esperar deparou-se-me interessante motivo folclórico, na lenda ouvida do facundo remeiro da montaria, sentado na popa da canoa a equilibrá-la com a pá do remo levemente agitada na água, de maneira a deixar a embarcação entreparada na área fluida, enquanto enchíamos o bojo da canoa com os mais variados exemplares de pescados.
E contava o caboclo. — "Este poço é o mercado dos pobres, só um pouquinho mal assombrado. Quando era rapagutinho, ali naquelas pedras, uma noite, um cavalo–marinho quase emborcou nossas canoas nestas catorze braças de profundidade. Era uma quinta-feira-santa, no mês de março. As águas tinham baixado bastante e os peixes escasseavam, evitando o anzol. Eu vim acompanhar meu pai numa pescaria do poita. Essa pescaria não se faz sozinho, nem de dia. Reunem-se oito até dez pescadores com as canoas atreladas num lugar escolhido, e com uma grande pedra amarrada numa corda, atirada no fundo e a ela presas as proas das canoas, estas ficam assim ancoradas no remanso. Na noite escura, uma lanterna acesa na popa alumiava assim, à distância de umas dez braças, e a gente podia observar o que se passava em derredor. Nessa noite — podia ser já quase meia-noite, uma nes-guinha do crescente aclarava o cimo da mata — e nós tínhamos apanhado só um jaú, com isca de camboatá, pois os malandros não queriam saber de outros biscates. Nisso, ouvimos um barulho nágua ali para cima do canal e com a meia luz que a lanterna lançava no rio, avistamos um vulto meio curvado, que saía do rio, sacudindo o pescoço enfeitado com uma crina comprida, toda molhada. Pensamos que fosse o minhocão do Pari. Enquanto os pescadores examinavam a aparição, eu que tremia de medo, sem querer apertei o pinguelo da 44, e um tiro reboou pela mata da margem, sem que a bala tivesse acertado no alvo. Na mesma hora, o monstro se atirou na água e deu relincho comprido, enquanto subia o fio da corrente, parecendo que marchava na flor d’água, alvoroçando as ondas que, quase emborcaram nossas canoas. Também todo o mundo colheu as linhadas desistindo da pescaria de poita nessa noite.
Depois disso o cavalo-marinho foi visto outra vez lá na barra do Tarumã, e nunca mais apareceu.
— O sol dardejando sobre as nossas cabeças e refletindo raios vivos de luz no espelho das águas, tinha revérberos inclementes de chamas candentes. Os pescadores enfileirados fervilhavam, dando rabanadas na poça d’água colocada entre os dois bancos da proa da canoa. Pela redondeza, num tumultuar revolto, outros pescadores apartavam os peixes em cambadas, enquanto a massa líquida do rio mitológico, agitada pela brisa à semelhança de ondulações de malacachetas, bojadas, tremeluzentes, lambiam a praia bordada dos capinzais verdes, que sacudiam macios entre saranzais, na grande extensão marginal.
Acadêmico Francisco A. Ferreira Mendes: Lendas e Tradições Cui-abanas. Estado de Mato Grosso, Cuiabá, 6 de novembro de 1960 pp. 3-4.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962
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