A poesia satírica de GREGÓRIO DE MATOS GUERRA

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL

LIÇÃO
XXI

gênero didático espécie   satírica

De l’influence de la
civilisation sur la poésie.
Bruxelles, 1859.

Corrigir os costumes por meio do ridículo foi sempre
lou vável, porém difícil tarefa; e tanto mais difícil quanto custoso é parar no
plano inclinado da crítica. Desde
Arquíloco, que os gregos consideram como
o pai da sátira, numerosos são os poetas que se entregaram a esta espécie do
gênero didático com mais ou menos êxito. Entre os romanos,
Horácio e Juve­nal parece haverem na
compreendido por duas diversas fa-sès; o
cortesão de Augusto, reconhecendo-se
incapaz de deter a torrente da corrupção, imola nas aras da sua faceta musa os
ridículos do povo-rei, e, como
Demócrito, ri-se e zomba dos seus contemporâneos; ao passo que o
implacável discípulo de
Cornuto marca com o ferro candente da sua sátira essa de­generada
raça que aplaudia
os Ñeros, os Claudios, os Calí-gulas e os Domicianos,
e que turiferava diante de suas ima­gens. "Cada sátira de Juvenal, diz o
Sr. Loise, é um exército disposto em ordem de batalha, cuias setas nartem a um
sinal convencionado e dirigem-se ao mesmo alvo."1 A cólera, a
indignação eram suas Musas:
facit indignatio versum, como ele próprio se expressava.


Supõe a sátira o
enfraquecimento dos laços sociais, e o ocaso da moral; é uma maneira de
instruir por demais vio­lenta para existir em tempos regulares; é um antídoto
que reage contra os tóxicos
das Agripinas e das Lucrecias Bórgias. Não nos
devemos pois maravilhar que nas primeiras épocas da nossa literatura se note a
ausência dos satíricos propria­mente ditos; porquanto são para nós semelhantes
às
atellanas latinas
os autos
de Gil-Vicente, em que as alusões substituem às personalidades.

Fatais foram à antiga
simplicidade dos costumes portugueses as riquezas do Oriente; e para
avaliarmos
dos ráp’dos progressos que* fazia a corrupção sobre os
vassalos de D. Ma­nuel e de D. João III leiamos a sua legislação penal, verídico
espelho das
idéias e
tendências da época. A insaciável avidez do ouro, a
postergação de todos os princípios
de ho­nestidade, a hipocrisia mascarada em devoção, contribuíram mais do que o
revés da Africa e os soldados do duque de Alba para a perda da nacionalidade
lusitana,
seqüestrada em
pro­veito do astucioso filho de Carlos V.

Abundam nos escritores
coetâneos lamentáveis quadres da devassidão do tempo, e do
ceticismo egoístico de que todas
as classes se achavam mais ou menos eivadas. Era portanto ocasião de aparecer a
sátira: convinha recorrer aos heróico-: remédios, à
ultima ratio poetarum.

Não era em Portugal
porém que devera nascer
o flagela­dor dos vícios e dos
ridículos dessa era, e sim na capital do Estado do Brasil, na cidade do
Salvador da Bahia de Todos os Santos. Testemunha dos desregramentos dos
governadores, da vaidade dos colonos, de suas néscias pretensões à fidalguia,
das dilapidações dos empregados públicos, das superstições do vulgo ignaro, e
do fanatismo de alguns membros do clero,
armou-se Gregório de Matos do azorrague da sátira, e
zurziu os vícios e as más usanças com inexorável severidade.

Participando da
natureza do Aretino pela sua mordaci­dade e descomedimento de linguagem, da de
Juvenal pela veemência de suas apóstrofes, e da de Horácio pela perfeição dos
seus quadros, é o nosso patrício digno de que lhe consa­gremos algumas páginas
deste trabalho destinado ao estudo da literatura nacional.

GREGÓRIO DE MATOS
GUERRA

Na supramencionada
cidade da Bahia viu a luz a
20 de dezembro de 1633, sendo seus pais Pedro
Gonçalves de Matos

e Maria da Guerra, abastados
fazendeiros. Recebeu na pia ba-tismal o nome de João, que foi depois trocado
pelo de
Gre­gório pelo bispo, D. Pedro da Silva, quando lhe administrou 0 sacramento da confirmação.

Feitos os seus estudos
preliminares com grande aprovei­tamento, passou-se a Coimbra, onde revelou logo
seu gosto para a sátira. Doutorou-se na faculdade de direito, e em Lisbca
granjeou a reputação de habilíssimo
advogado, e serviu alguns cargos de magistratura, gozando da privança do
príncipe re­gente, que foi depois D. Pedro II. Havendo-se eximido da in­cumbência
de vir ao Rio de Janeiro sindicar da conduta de Salvador Corrêa de Sá e
Benevides, parece que por tal motivo
incorrera no
régio desagrado, o que o obrigou a regressar aos seus lares,
provido na dignidade de tesoureiro-mor da catedral. Merecendo as simpatias de
D. Gaspar Barata de Mendonça, primeiro arcebispo da Bahia, acumulou também o
emprego de vigário geral da diocese.

Durante a vida de seu
protetor, exerceu
Gregório de Matos os referidos cargos como simples minorista;
mas, havendo su-ced"do no governo do
arcebispado D. João da Madre de Deus, quis
obrigá-lo a completar a sua ordenação, ao que se recusou o poeta alegando
faltar-lhe a necessária vocação.

Aproveitando-se desse
pretexto, privou-o o arcebispo das
dignidades eclesiásticas, querendo talvez
destarte vingar-se de alguma ervada seta que lhe disparara o
mordaz doutor.

Voltando à banca de advogado,
sorriu-lhe de novo a for­tuna e
avultadas somas foram-lhe oferecidas em
remunera­ção dos seus conselhos e boa direção dada aos negócios foren­ses. Não
era porém
Gregório de Matos homem que renuncias­se seus antigos hábitos, e não havia
vantagem que lhe fizesse desistir dp maligno prazer de lançar um
epigrama. Receand:-se de sua malignidade, abandonaram os clientes o
escritório do primeiro advogado baiano, que se viu reduzido a uma inação
forçada.

Seus mais íntimos e prestimosos amigos, e até a própra
consorte, não lhe escapavam aos
motejos; e, dominado pela funesta
paixão de fazer rir, desprezava todos os respeitos hu­manos. No número dos seus
admiradores contava-se o gover­nador D. João de Alencastre, que, entusiasta
pelo tale .’.to di poeta, mandava registrar em um livro todas as suas sá.iras.
Quando porém se sentiu ferido, resolveu degradá-lo para An­gola, recomendando
todavia que nada lhe faltasse em
ieu trajeto, e dando-lhe cartas de favor para Pedro Jacques de Magalhães, que ali
governava.


Ainda uma vez recorreu
Gregório de Matos com proveito ao seu talento de advogado; e por algum tempo
viveu sossega­damente, até que, havendo prestado ao governador relevante
serviço, aplacando uma sedição militar, obteve licença de
re­tirar-se para Pernambuco.
Caetano de Melo e Castro, que administrava então essa capitania,
acolheu-o benignamente, dispensou-lhe numerosos obséquios,
com a condição porém de não fazer jamais uso da sátira.

Acometido de febres e
havendo recebido cristãmente os sacramentos das mãos do prelado D. Frei
Francisco de Lima, que o fora procurar a uma légua de distância, por
contar-lhe que ele os recusara do
pároco do Corpo Santo, expirou aos
73 anos de idade, no mesmo dia em que chegou a
notícia da sub­missão dos Palmares, sendo sepultado no hospício de N. S. da
Penha dos Capuchinhos Franceses.

Consta que deixara
seis volumes de poesias que nunca viram a luz da imprensa, dos quais porém se
tem feito vários
extratos, de que nos aproveitaremos.

Falando acerca destes
inéditos, assim se exprimia o erudito cónego Januário da Cunha Barbosa:
"As suas poesias correm manuscritas em seis grossos volumes de quarto,
alguns dos quais possuímos; mas é tal a sua desenvoltura, que não con­vém
dar-se à luz pública, podendo assegurar-se que
Gregório de Matos foi único nos rasgos satíricos de que recheava todas as suas
composições, e com tanta graça que era temido por esta arma, e muitos em seu
tempo se diziam seus amigos, só para não incorrerem em sua apolínea
indignação."
1

Como já vimos não
respeitava a musa de Gregório de Matos o poder quase discricionário dos
governadores e capi­tães generais, que, com poucas e honrosas
exceções, vinham flagelar os
míseros colonos. A um destes, Antônio de Sousa de Menezes, mais conhecido por
Braço de Prata, dediceu uma virulenta
sátira, que começa pelos seguintes belíssimos versos:

Oh! não te espantes,
dona anatomia, Que se atreva a Bahia Com espremida voz, com plectro esguio,
Cantar ao mundo esse teu bom feitio: Que é já velho em poetas elegantes O cair
em torpezas semelhantes.

1 Revista trimensal do
Inst. Hist. e Geog. Brás.,
Tomo III.

Da pulga acho que Ovidio tem escrito;
Lucano do mosquito;

Das rãs Homero; e estes não
desprezo,
Que escreveram matéria de mais peso
 De que eu, que canto
cousa mais delgada,
Mais chata, mais sutil, mais esmagada.

Quando desembarcaste da fragata
, Meu dom
Braço
de Prata,
Cuidei que
a esta cidade tola e
fátua
 
Mandava a
Inquisição alguma estátua.
Vendo tão espremido
salvajola,
 
Visão de
palha sobre um
mariola.

O rosto d’azarcão afogueado

E em partes mal untado;

Tão cheio o corpazil de
godilhões,

Que o julguei por um saco de
melões;

Vi-te o braço pendente da
garganta

E nunca prata vi com liga
tanta.

O bigode fanado posto ao ferro
Ali está num desterro,
E cada pelo em solidão tão rara
Que parece
ermitão de própria cara.

Bastante graciosa é a sátira
dirigida contra os hipócritas
e murmuradores.

Destes que campam no mundo
 Sem ter engenho profundo,
E entre o gabo dos amigos,
Os vemos em papa-figos,
Sem tempestade, nem vento,
 Anjo bento!

De quem com letras secretas,
Tudo o que alcança é por
tretas,
Bocalejando
sem pejo,
Por matar o seu desejo
Desd’a manhã té a
tarde,
 Deus me guarde!

Do que passeia farfante,
Muito
prezado
d’amante,
 
Por fora
luvas, galões,
Insígnias, armas, bastões.
 Por dentro pão bolorento, Anjo bento!

Destes beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos,
 Por dentro
faiais maganos,
Sendo na
cara uns Janos
 Que fazem do vício alarde,
Deus me guarde!

Que vejamos teso andar
Quem mal soube engatinhar,
Muito inteiro e presumido;
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento. Anjo bento!

Como a maior parte dos
satíricos procurava
Gregório de Matos ridicularizar sempre que podia os defeitos
físicos que encontrava nos que lhe desagradavam por qualquer mo­tivo. Dentre as
numerosas composições achincalhando a este por feio, aquele por torto, aquele
outro por aleijado, citaremos aqui a primeira estância de umas décimas feitas
contra um advogado de Pernambuco, de quem se diz que era extrema­mente baixo e
muito presumido.

Tu és mosquito que cantas
Pequeno e bem
zunidor;
Dos lanções
malquistador,
Aborrecido das mantas:
Com o ferrão da língua espantas,
E com a músca enfadas:
Cam
nhãs
às
trombetadas
E não sabemcs por onde;
 Porque o invisível te esconde
Para poupar bofetadas.

Com o propósito de corrigir
pelo ridículo a presunção de nobreza que nutriam alguns plebeus da Bahia,
escreveu o nosso poeta algumas boas sátiras, como v.g. o seguinte so­neto:

Bote a sua casaca de veludo
 
E seja
capitão sequer dois dias:
 Conserve a porta de Domingos Dias,
Que pega
fidalguia mais que tudo.

Seja um magano, um pícaro, abelhudo:
Vá a
palácio; e após das cortesias
Perca quanto ganhar nas
mercancias;
 
Em que
perca o alheio, esteja mudo.

Ande sempre na caça e montara:
 Dê nova locução, novo epíteto,
 E diga-o sem propósito à porlia:

Que em dizendo /acção, pretexto, afeto,
 
Será no
entendimento da Bahia Mui fidalgo,
 mui rico, mui discreto.

Para demonstrar quanto era espirituoso e engraçado o nosso ilustre
compatriota, copiemos aqui duas décimas, con-

sagradas a um livreiro e a um músico. Constando ao poeta, que

o
primeiro havia comido um canteiro de alfaces, cumprimentou-o pela seguinte
maneira:

Levou um livreiro a dente D’alfaces todo um
canteiro,
 E comeu sendo livreiro Desencadernadamente.
Porém eu digo que mente A quem disso o quer taxar:
A ites é
para
notar
Que
trabalhou como mouro,
 Pois meter folha? No couro
Também é encadernar

Não menos feliz foi o
improviso feito por ocasião de umas pancadas aplicadas em um músico muito
conhecido na cidade:

Uma grave entoação Vos cantaram,  Brás Luiz.
Segundo se conta e diz,
Por solfa de
bordão.
Pelo compasso da mão,
 Onde a valia se apura,
Parecia solfa escura;
Porque a mão nunca parava,
Nem no ar, nem no chão dava,
 Sempre em cima da figura.

Pelos espécimens que havemos apresentado terá
visto
o leitor que a poesia de Gregório de Matos é rica de ornatos, e de uma infinidade de frases
populares; vivas as suas pinturas, e profundos e penetrantes os seus golpes.
Ressente-se po­rém o seu estilo dos conceitos e trocadilhos que constituíam
o vício radical dessa escola
castelhana, a que ele se prezava de pertencer. Cabe-lhe a glória de haver
introduzido em nossa
metrificação o verso italiano, ou decassílabo, hoje muito usado, e
conhecido nos compêndios de Poética pela denominação de
gregoriano.

Discordando do respeitável
parecer do
cónego Januário acima citado, pensamos que muito lucraria a
nossa literatura com a publicação as obras poéticas de
Gregório de Matos, incumbindo-se um
diligente editor de expurgá-las das obsceni­dades que as deturpam.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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