A PROMESSA DE JOÃO GUALBERTO – Lenda Popular no Mato Grosso

A PROMESSA DE JOÃO GUALBERTO

Ia quase a findar o segundo quartel do século XIX. Cuiabá, convalescida dos tremendos abalos da década anterior, refazia-se aos poucos, no lento esbater das animosidades que a política jacobiana de 1830 criara e fizera desencadear em formidando tufão, varrendo a província de norte a sul. Os perseguidos tinham volvido serenamente ao seu trabalho, irmanados aos algozes que, um decênio atrás, lhes desbarataram os haveres, quando não lhes fora possível tirar-lhes a existência. Entrava-lhes de prosperar a fazenda, no labor profícuo e constante dos dias de paz. A própria vida social se reanimava, do eclipse tremendo em que se mergulhara. Os engenhos cresciam de número, pela zona serrana; grandes lotes de escravos vinham incorporar-se aos já existentes, intensificando o capital-homem, para a difusão do trabalho e enriquecimento do senhor. Depois da tragédia em que tombara, com uma bala de prata pelas costas, ao anoitecer trágico de 9 de maio, o caudilho de 1834, e do homizio dos mandantes desse bárbaro delito, serenara-se a política, antes encapelada. Pimenta Bueno arco-irisara de bonança os horizontes, que os seus sucessores, com rara exceção, trataram de manter serenos. Ricardo Jardim que, num lapso relativamente longo de mais de dois anos e meio, vinha exercendo o pro-consulado, voltava a sua vista atilada de estratego para a extrema em perigo de invasão estrangeira. No interior, porém, a paz reinava, promissora de trabalho fecundo e de progresso.

* * *

Filho de rico português, um dos expatriados da "Rusga" — João Moreira de Matos —, o jovem João Gualberto vinha, de há meses, torturado por uma idéia que lhe empolgava imaginação e sentidos, de forma insopeável. Fora desde um encontro todo casual, no dia da festa do Rosário, numa tarde de chuva que fizera a procissão recollier-se precipitadamente. O aguaceiro impetuoso o obrigara a refugiar-se no corredor de um casarão da rua do Meio, verdadeiro solar de família, onde, com sua esposa e filhos residia o mineiro Brandão, genro do Capitão-mor Gaudie, uma das figuras de maior evidência social e política daquelas eras. João Gualberto andava, nesse tempo, por volta dos seus trinta anos.

Habituado à vida andeja, que sempre fora a de seu pai, comerciando por Diamantino, Rosário, e pelo sertão, no áspero trato dos tropeiros, meses e meses, faltava-lhe esse polimento que os salões trazem ao espírito, e tornara-se um rústico, um tímido, que corava e tremia diante de uma mulher, posto não lhe desse o menor calafrio a aproximação de uma onça ou de uma tempestade, no meio do campo. Foi, pois, com indissimulável aperto no coração que viu abrir-se a porta da sala e aparecer, encaxilhada no re-tângulo do portal, a mais formosa visão celeste que jamais imaginara pudessem ver os seus pobres olhos mortais.

Era a menina Mariana Amélia, única filha dos moradores daquela casa, que estava no florir de suas treze primaveras, conquanto o seu precoce desenvolvimento parecesse dar-lhe três ou quatro anos a mais. Num sorriso gentil, convidou-o a entrar, até que parasse a chuva. O moço, porém, numa grande atrapalhação, agradeceu à afável donzela e, pretextando que o temporal amainara, lá se pôs, rua em fora, todo vexado, todo medroso, qual se houvesse encontrado aberto o limiar do paraíso e um anjo (ao contrário do que sucedeu ao primeiro par humano) o convidasse a penetrar o Éden. Sem saber como, achou-se à porta de sua casa, ainda com o coração fora do lugar, a vista obscurecida, como quem fitou de frente o sol por algum tempo. Parecia-lhe ouvir, num trilado argentino, a gargalhada que ela soltara quando, pertubado, o vira partir sob a chuva, ainda mais forte que antes, dizendo, contra a realidade mais evidente, que o aguaceiro diminuíra…

Não houve mais sossegar desde essa hora a alma do pobre rapaz. Aquela figura angélica o possuía dia e noite, acordado ou no sonho, trabalhando, velando, meditando. Viveu dias de febril e intensa imaginativa, a supor a ventura suprema de unir-se àquela criatura pelo amor que dura toda a vida, mais era em vão que a buscava, por toda a parte, pois em a vendo, não se arriscava a dela se abeirar, tal o fluido prestigioso que sentia irradiar daquela menina tão simples, na idade que os antigos diziam entre "pulo e boléu.

Era preciso, entretanto, que desse um passo qualquer que lhe assegurasse a mão de Mariana Amélia, já agora condição de vida ou morte para o seu desatinado coração. Sabia o grande número de pretendentes que rondava a casa da grácil moçoila. A sua formosura, sem par naquela época, a situação da família, a esmerada educação que lhe aprimorara o espírito, como a natureza lhe fizera do físico uma obra de arte, tudo tornava aquela nubilidade apetecida e disputada pela flor dos garções do tempo. Êle a todos, talvez, levava vantagem nos haveres. Mas uma circunstância o desfavorecia, impecendo-lhe os ardores e esperanças, tal era a falta dos quatro costados de estirpe, ciosos que sempre foram os parentes da sua escolhida nesse ponto de linhagem limpa e fidalga. Que valia todo o dinheiro que seu pai levara a reunir numa vida de privações e penoso e afã, se não bastava a dar-lhe a felicidade única a que aspirava? Afrontando o receio, sobranceiro ao ridículo do insucesso, cego pela idéia que o dominava, João Gualberto, por meio de prestimosa pessoa, muito da privança dos Gaudie, pediu a mão da menina. Sucedeu o que tinha que suceder: veio-lhe de resposta, velada pela delicada excusa O da pouca idade da, moça, um doloroso, um esmagador não, que lhe doeu mais que se lhe atirassem com a Prainha e o Lavapés por cima.

Semanas longas, feitas de longuíssimos dias, levou o filho do emboaba amargando o seu drama passional, sem que para êle lhe alvitrasse à consciência uma saída. Numa tarde triste de junho, garoante e fria, acudiu-lhe ir à casa de sua mãe de criação, velha preta avantajada em anos e experiência, moradora no alto da Mandioca, num casinholo humilde, de paredes cobertas de registos de santos. A negra velha recebeu-o com o carinho de sempre, como quem, tendo-lhe dado o seu leite, o tomara para sempre por seu filho d’alma.

Contou-lhe João, entre choroso e irado, o seu romance.

Mãe Luzia condoeu-se do sofrer do menino, como lhe chamava, e levantando-se da velha canastra de couro cru, aproximou-se da cômoda de jacarandá, onde o oratório se ocultava entre palmas bentas, velas e jarros de flores.

— Quem vai concertar a sua vida é esta… — disse, apontando uma estampa da Virgem, já encardida do tempo. — Você vai fazer um voto à Nossa Senhora de Muquém, de dar, em cera, o peso de Mariana, se ela for sua mulher.

— Em ouro que fosse, mãe Luzia… Em ouro que fosse eu daria.

— Louquinho! Vai, faz a promessa, m-as é preciso ir fazer no Goiás, lá na capela do Muquém. E logo… que é para mostrar que você tem fé… Tudo pode Deus e faz a quem lhe pede por meio de sua Mãe Santíssima.

João Gualberto não disse uma palavra de objeção. Preparou a viagem e uma semana depois, com uma tropa que saía para a Corte, partiu rumo da ermida dos milagres.

* * *

Voltou, ao cabo de três meses.

Chegando a Cuiabá, soube que Mariana Amélia estivera muito doente, entre a vida e a morte, cerca de duas semanas. No dia da Glória chegaram a esperar o traspasse a qualquer momento.

Nesse dia precisamente êle chegara ao Muquém e fizera o voto. E Mariana entrara desde aí a melhorar.

Os pais — o pai, sobretudo que ficara a pique de endoidecer — prometeram à Nossa Senhora da Glória não contrariar o desejo da filha de casar-se com João Gualberto, caso ela viesse a sarar. E o moço em chegando, soube pela mesma ativa medianeira, do que se havia passado.

Renovou o pedido, logo aceito com grande satisfação e, pouco depois, como nas velhas novelas, que ainda assim são as melhores, (que o digam as moças que me lêem) os dois se casavam, numa festa estrondosa, que marcou época e da qual não faz muito tempo havia entre nós quem se lembrasse, referindo-lhe, de segunda outiva, os belos e memoráveis episódios. E logo, passada a lua-de-mel, faz-se o nosso herói rumo de Muquém novamente, a fim de cumprir a sua promessa.

José de Mesquita: No Tempo da Cadeirinha. Edição da Academia Matogrossense de Letras (Estante Matogrossense, Vol. V), 1946, pp. 35-41.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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