A RELIGIÃO – ORIGEM, CRÍTICA E FUNÇÃO

A RELIGIÃO – ORIGEM, CRÍTICA E FUNÇÃO

Ricardo Ernesto Rose – Jornalista e Licenciado em Filosofia

Origem e desenvolvimento

A religião é uma das mais antigas práticas culturais da humanidade, tendo aparecido no período do Paleolítico Superior, há aproximadamente 50.000 anos. Todavia, nossa espécie, homo sapiens, não foi a única a se dedicar a práticas cujo fim era chamar a atenção de entidades superiores. Escavações revelaram que os Neandertais, outra espécie de hominídeo, mais antiga que a nossa, dedicavam especial atenção aos seus mortos. Alguns aspectos destas descobertas ainda não estão esclarecidos, mas tudo indica que este cuidado com os mortos demonstra alguma crença em uma sobrevivência individual após a morte. O interessante neste fato é que a crença em uma sobrevivência, em um rudimento de pensamento metafísico, não é exclusividade dos humanos sapiens.

Antropólogos culturais e etnólogos são de opinião de que originalmente a religião consistia em práticas mágicas, visando aplacar as forças aterradoras da natureza, dos espíritos dos mortos ou criar vínculos mágicos com os animais caçados pela tribo, de maneira semelhante ao que ainda hoje é praticado por algumas tribos indígenas. As pinturas rupestres da França e Espanha, datando de cerca de 30.000 a 14.000 anos a.C. parecem representar aspectos deste relacionamento mágico-religioso que nossos antepassados tinham com a natureza. Ainda no final do Paleolítico surgem os cultos da fertilidade, cujas deusas, de formas voluptuosas, foram representadas em diversas estatuetas esculpidas em ossos de urso e rena.

A partir do período Neolítico, há cerca de 8.000 anos, quando em determinadasregiões (Oriente Médio, noroeste da Índia e sul da China) começa a ser praticada regularmente a agricultura, surgem as religiões organizadas. Estas já haviam evoluído para uma organização permanente, dispondo de um corpo sacerdotal, ritos estabelecidos, local de culto fixo e organização eminentemente patriarcal. Don Cupitt, filósofo inglês contemporâneo, escreve que “…as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhoresda terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 a.C., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam, e eram, as concentrações maciças de autoridade sagrada e poder disciplinar, necessários para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em um cidadão, era induzir nele o temor a um deus.” Cupitt ainda se refere à transição das crenças dos povos nômades – baseadas em espíritos da natureza – para a religião dos primeiros centros urbanos, sustentados pela agricultura e pelo comércio: “Propus um limite para o uso da palavra deus, limite este que reconhece um sistema simples: vejo a crença nos espíritos como típica da velha ordem nômade, e a crença nos deuses propriamente ditos surgindo com a ascensão das primeiras sociedades-estado, pois, para haver um Estado, era preciso existir um centro e fonte de legitimação e poder que fosse estável e reconhecido por todos – e isso era fornecido por um deus. A imortalidade do deus garantia a continuidade do Estado.”

As sociedades se desenvolvem e praticamente não existe diferença entre o poder secular o poder espiritual. No Antigo Egito o Faraó, além de rei, era uma personificação de um deus. Na Babilônia o rei era filho de um deus em especial, o mesmo acontecendo na China ou em Teotihuácan, no México. A influência da religião e dos sacerdotes na vida do Estado e do indivíduo era quase total; da política, da agricultura, à guerra e ao comércio, passando pelas leis e pela cultura – os sacerdotes exerciam influência em todas as áreas. Referindo-se à religião das cidades-Estado gregas, Jean-Pierre Vernant relata que “entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, portanto, não há oposição nem corte nítido, assim como entre sobrenatural, natural, divino e mundano. A religião grega não constitui um setor à parte, fechado em seus limites e superpondo-se à vida familiar, profissional, política ou de lazer, sem confundir-se com ela.” (Vernant, 2006).

Crítica

Apesar do imenso poder de dominação dos corpos e das mentes, nem sempre a ideologia religiosa foi totalmente hegemônica. Ao longo da história, em todas as culturas, grupos ou indivíduos criticaram a religião estabelecida ou as crenças sobrenaturais em geral. A partir do II milênio a.C. surgem, em diversas regiões (Egito, Babilônia, Irã, Grécia) movimentos de vigorosa crítica às religiões dominantes. “Esse desespero”, segundo Mircea Eliade, “não surge de uma meditação sobre a inutilidade da existência humana, mas da experiência da injustiça generalizada: os maus triunfam e as orações não surtem efeito; os deuses parecem indiferentes aos problemas humanos” (Eliade, 1978).

Na Babilônia aparece neste período um texto célebre, o Diálogo sobre a Miséria Humana; também conhecido como o Eclesiastes Babilônico (em referência ao Livro do Eclesiastes da Bíblia cristã, famoso por sua visão pessimista da vida humana). Em uma de suas passagens o livro faz a seguinte constatação: “Suba nos montículos das velhas ruínas, vá e volte pelo mesmo caminho; olhe os crânios dos homens de outrora e os dos nossos dias: quem é o malfeitor e quem o amável filantropo?” (Eliade, 1978). Outro exemplo é a antiga Índia, onde em torno do século VI a.C. surge a escola de pensamento dos Çarvakas, que além de se opor ao sistema de castas, nega qualquer tipo de divindade ou esfera sobrenatural. Aproximadamente no mesmo período aparece na Grécia a escola atomista, criada por Leucipo e Demócrito e posteriormente desenvolvida por Epicuro. Segundo Diógenes Laércio, o atomismo de Epicuro, ainda mais que o de Demócrito, pelo simples fato que substitui a vontade dos deuses pelo livre querer dos átomos, incita os homens a desinteressarem-se daí por diante de todo o palavreado mítico (Henry Avron, 1967). Ao mesmo tempo surge na Grécia a escola dos sofistas, cujo mais famoso expoente, Protágoras, dizia que “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e das coisas que não são o que não são”. Esta escola de pensamento, muito atacada por Sócrates, Platão e seus sucessores, foi a primeira a defender um secularismo – o conhecimento era originado pelo homem e sobre o homem; as divindades, se as havia, eram incognoscíveis.

Entre os séculos V e III a.C. surgiram diversas escolas filosóficas na Grécia, como os atomistas, epicuristas, céticos, cínicos, cirenaicos e os estóicos, que mantiveram uma posição crítica em relação às concepções metafísicas e religiosas. Os deuses, caso existissem, tinham pouca ou nenhuma influência sobre a vida humana. Os humanos tinham somente a vida terrena, a qual cabia viver da melhor forma possível. O aspecto principal destas escolas filosóficas era seu apelo ao indivíduo; não havia nenhuma teoria sobre a forma de organização da sociedade.

Ao longo da Idade Média, principalmente na Baixa Idade Média, apesar da profusão de movimentos heréticos que pretendiam reformar sem suprimir o cristianismo, não houve fortes críticas aos fundamentos das crenças religiosas. Assim, desde o início da Idade Média até praticamente o Renascimento no século XVI, a religião oficial da civilização ocidental – o cristianismo – permaneceu quase que isenta de críticos, mantendo sua hegemonia e, em troca, validando a política de países alinhados ideologicamente. Os poucos opositores eram ignorados ou, em casos extremos, eliminadas, como ocorreu durante o período da Inquisição em países de forte influência católica.

Todavia, durante o Renascimento (século XIV ao XVII), as mudanças sociais, econômicas e religiosas, aliadas à redescoberta da cultura clássica grega e romana e dos estudos científicos (principalmente a astronomia, a física e a medicina), propiciaram o desenvolvimento de um pensamento crítico em relação à metafísica cristã -a existência de Deus, a imortalidade da alma, entre os principais temas. Tais ataques, porém, estavam limitados aos círculos filosóficos e eram duramente perseguidos pela Igreja e pelo braço secular.

Um dos maiores críticos da religião deste período (século XVII) foi o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Espinosa criticou a religião em diversos aspectos, tendo sido perseguido tanto por seu grupo social de origem, os judeus, quanto por cristãos católicos e protestantes. Um tema atacado por Espinosa foi o da visão teleológica que temos da natureza (de que a natureza é sujeita a intenção ou fim); visão esta que projetamos na religião. Espinosa afirma sobre isso: “Não puderam (os homens), com efeito, tendo considerado as coisas (da natureza), como meios, supor que elas tivessem sido produzidas por elas mesmas, mas, tirando a sua conclusão dos meios que se acostumaram a obter, tiveram que persuadir-se de que existiam um ou mais diretores da Natureza, dotados de liberdade humana, que tivessem provido todas as necessidades deles e tivessem feito tudo para seu uso (dos homens). Não tendo jamais recebido (a) respeito do propósito destes seres informação alguma, tiveram também de julgar segundo o seu próprio, e assim admitiram que os deuses dirigem todas as coisas para uso dos homens, a fim de que esses se lhes liguem e para que sejam tidos por esses na maior honra. Do que resulta que todos, referindo-se ao seu próprio propósito, inventaram diversos meios de render culto a Deus, a fim de que fossem amados por ele acima de todos, e para que obtivessem que dirigisse a Natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua avidez insaciável.”(Ética, Prop. XXVI, Apêndice )

Foi somente durante o Iluminismo, no século XVIII, que surgiram os primeiros críticos sistemáticos da religião como pensamento metafísico e como instituição legitimadora de um sistema de poder absolutista. Até este período a Igreja esteve intimamente associada ao poder secular, seja na França e em outros países deforte influência católica, como a Áustria, a Polônia, a Espanha e Portugal. Os filósofos iluministas, como La Mettrie (1709-1751), Helvetius (1715-1771) e d`Holbach (1723-1789) defendiam uma filosofia claramente anti-metafísica. Em suas proposições defendiam um materialismo mecanicista, baseado no qual o universo e todos os seus constituintes eram partes de um mecanismo gigantesco, determinado exclusivamente pela matéria, cujo movimento é regulado pela causalidade.

Outros filósofos iluministas mais famosos, D´Alembert e Voltaire, foram influenciados pela política e filosofia inglesas e eram deístas. Em seu Dicionário Filosófico, Voltaire define o deísta como alguém que sabe que Deus existe, mas “o deísta ignora como Deus pune, favorece ou perdoa, porque não é temerário a ponto de iludir-se que conhece como Deus age” (citado em Reale e Antigesi, História da Filosofia volume II).

A partir do período do Iluminismo, notadamente na França e na Inglaterra, desenvolve-se uma crítica sistemática da religião e do pensamento metafísico. As ações praticadas durante o Período do Terror (1789-1792) da Revolução Francesa, como o assalto e destruição de templos, assassinato e execução de religiosos e declaração oficial do Estado laico, foram um rude golpe à hegemonia da religião na cultura ocidental, do qual ela (a religião) nunca mais se recuperou.

Produto da filosofia iluminista e do romantismo alemão, o pensamento do século XIX foi rico em filósofos que se opunham à religião. Bastam citar apenas alguns, a começar por Hegel e toda a esquerda hegeliana, como: Bruno Bauer, Max Stirner, Ludwig Feuerbach, Leo Strauss, Karl Marx e Friedrich Engels, que em suas análises críticas da religião, valeram-se da História, do estudo comparado de religiões, da Economia e da Antropologia. Não ligados ao pensamento hegeliano, Schopenhauer e Nietzsche também foram grandes críticos de todo o pensamento metafísico e da religião.

Função

A religião tem uma função social e outra privada. Sob o aspecto social, a religião cimenta a união entre grupos humanos; sejam tribos, povos ou países. Representando um corpo de crenças comuns ao grupo, com as quais este se identifica, a religião atua como elemento de coesão social, mantendo as relações sociais. Ao mesmo tempo – baseado em um conjunto de crenças – a religião legitima estruturas sociais, leis, costumes e práticas políticas.

Se, por um lado, as religiões têm atuado como elemento de pacificação social, por outro, em determinadas situações sociais, a religião tem servido para motivar ou canalizar comportamentos de modificação das estruturas sociais. A religião não tem, portanto, unicamente o efeito de fomentar a apatia das massas, como em muitos aspectos criticava o marxismo. Ocorre que a crença também pode ser motor de revoluções sociais, como ocorreu durante as revoltas camponesas do século XVI, na Alemanha. Em relação ao Brasil, podemos apontar duas situações diametralmente opostas: 1) A escravidão no Brasil, tolerada e apoiada pela Igreja Católica, que atuou na legitimação desta estrutura social; e 2) A oposição das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica ao governo militar, durante o período da ditadura.

No âmbito do indivíduo, a religião fornece uma explicação da vida e de seu sentido. Esta explicação das “expectativas privadas” acaba correspondendo ao nível intelectual e à personalidade do fiel. O que ocorre é que tanto o pensamento individual do crente influencia a religião que pratica (com suas visões particulares sobre certos aspectos da doutrina ou da prática), quanta esta influencia a visão que o crente tem da vida e do universo. Sobre este aspecto da crença David Hume em Diálogos sobre a Religião Natural observou: “Que privilégio peculiar tem esta pequena agitação no cérebro, que nós chamamos de pensamento, que precisamos fazê-la o modelo de todo o universo?” (Hume, Dialogues, parte II).

Por outro lado, afirmar que a religião é apenas um conjunto de crenças de determinado grupo é, sob diversos aspectos, uma simplificação. A complexidade das diferentes teologias religiosas, as elaboradas cosmologias e os variados rituais de culto têm uma riqueza muito maior e representam muito mais do que um simples conjunto de crenças. Não podemos deixar de considerar o quanto as religiões influenciam as sociedades nas quais são praticadas, em seus diversos aspectos: artes, moral, costumes, tecnologias, práticas econômicas, entre outros. As religiões têm seus aspectos mais populares, envolvendo crenças, rituais, costumes e até o folclore, ao lado de uma faceta mais intelectual, que se fundamenta em uma produção cultural (teologia, filosofia, arte) geralmente elaborada pelas elites.

Assim, concluímos que a religião é um sistema de idéias de uma determinada sociedade, através do qual este grupo social procura explicar sua situação no universo e sua relação com a divindade. Baseado neste sistema de crenças justifica-se as leis, os costumes e as instituições.

Bibliografia

  • AVRON, Henri O Ateísmo – 2ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1967
  • CUPITT, Don Depois de Deus – 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999 ELIADE, Mircea História das Crenças e das Idéias Religiosas – 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978
  • ESPINOSA, Baruch Ética Demonstrada à maneira dos geômetras – 1ª ed. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002
  • HUME, David Dialogues Concerning Natural Religion London: Penguin Books,
  • MERTON, Robert K. Sociologia – Teoria e Estrutura – 1ª ed. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970
  • ONFRAY Michel Tratado de ateologia – física de la metafísica – 2ª ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2006
  • REALE Giovanni, ANTISERI, Dario Histório da Filosofia Volume I e II – 5ª ed. São Paulo: Paulus, 1990
  • VERNANT, Jean-Pierre Mito e Religião na Grécia Antiga – 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006

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