AS IRMÃS INVEJOSAS – Conto popular

irmãs invejosas
The Jealous Sisters from Arabian Nights Collected and edited by Andrew Lang Illustrated by Vera Bock Copyright 1960 illustration from the tale 'The Jealous Sisters'

AS IRMÃS INVEJOSAS

UM rei mancebo, de idade de vinte e dois anos, virtuoso e casto, que até esta idade não tinha conversação de mulher alguma, requerido dos seus que casasse, para que houvesse filhos que sucedessem no reino, e desejoso de achar na sua própria terra mulher para isso, recusava o casamento de muitas mulheres forasteiras que lhe traziam.

Queria êle que a mulher fosse de virtuosos costumes, claro sangue e boa vista, sem ter respeito à fazenda. Porque, como rei, já que a queria de seu reino, entendia que não podia ser desigual a seu merecimento, pelo qual, por dote, queria que ti-vease estas três cousas.

E andando, com esta imaginação, passeando um dia por uma rua, saíam as gentes, como é costume, a ver El-rei. E assim saíram certas mulheres, todas formosas, a uma janela; e quando El-rei passou ficaram falando umas com outras.

El-rei, que as ouviu, por saber o que era, chamou a si fidalgos que estiveram, mais perto, e as ouviram e entenderam, e perguntou-lhes que ficaram dizendo.

Foi-lhe respondido:

— Senhor: uma disse que, se casasse com Vossa Alteza, se atreveria a fazer, de suas mãos lavores de ouro e seda, tão ricos e tanto em vosso ser viço, que, se se avaliassem, valessem tanto dinhei ro, que basta-se para gasto da mesa. Outra respon deu que aquilo era muito; mas, se ela tivesse tal dita que casasse com El-rei, lhe faria camisas e outras cousas, de que tivesse necessidade, que o fei tio delas valesse tanto como o mais que sua Alteza vestisse e calçasse. E a outra respondeu a ambas:

 Não sabeis o que dizeis, nem vale todo vos so lavor, tão estimado, tanto que baste para vossa mantença. Eu vos digo o que faria, se Deus me chegasse a este estado de casar com El-rei meu se nhor; de seu ajuntamento, querendo Deus, lhe daria dois filhos formosos como o ouro e uma filha mais formosa que a prata. A qual promessa, ajudadas de Deus, as mulheres podem cumprir; e essoutroras que vós, senhoras, dizeis, são palavras de vento!..

 Isto era o que as mulheres diziam. El-rei folgou de o ouvir; e, notando as considerações em que elas estavam, propôs de casar com uma delas, se Deus lho ordenasse, sendo pessoas para isso.

Chamou quem as conhecia e, perguntando por elas, foi-lhe dito que eram da nobreza e fidalguia mais antiga do Reino, e cada uma por si mui formosa. E quanto aos costumes, não se achou que dissesse bem nem mal, porque com ninguém tinham, conversação.

El-rei, visto isto, mandou chamar donas de título, e senhoras, a quem deu conta, e diante das quais quis falar com estas donzelas, para se determinar qual tomaria por mulher.

E logo fêz vir ante si a mais velha, que, vista, foi julgada por muito formosa, sem esperança que outra o seria mais, nem tanto.

El-rei lhe perguntou:

— O que prometestes fazer, estando na vossa janela, se eu casasse convosco, atraveis-vos a cumpri-lo?

Ela se envergonhou, e, mudada a côr, disse:

 Senhor, de palavras de moças não lance Vossa Alteza mão. Se quere servir-se de mim, ainda que o não mereço, farei em seu serviço tudo o que minhas forças bastarem.

A todos pareceu bem a resposta; El-rei a fêz recolher, e vir a segunda. A qual, depois de apartada a primeira, por todos foi estimada por mais formosa que a irmã. Porém nas perguntas, o que a esta aconteceu foi assim como à primeira; pelo que El-rei a fêz recolher, e vir a menor, que, vista dos presentes, ficaram admirados de sua grande formosura, que claramente mostrou ser ela a mais formosa de todas.

El-rei lhe perguntou se se atrevia a cumprir o que prometera passando êle por ante as suas janelas; e ela, muito envergonhada, respondeu:

 Senhor, sim, com as condições que então disse.

E fazendo-se de uma côr tão viva, que acrescentou muito em sua grande formosura, lhe fêz El-rei que dissesse o que prometera, e ela disse:

 Senhor: prometi que, querendo Deus, e sendo ditosa que com Sua Alteza casasse, lhe daria dois filhos formosos como o ouro e uma filha mais formosa que a prata. Isto disse confiada em Deus,primeiramente sobretudo, e em Vossa Alteza e em mim mesma. Porque quererá Deus que os filhos sejam conformes a nós; e, sendo tais, serão mais formosos que o ouro.

Coube isto em tanta graça a El-rei, que a rece beu por mulher, e se fizeram grandes festas que duraram muito, e El-rei trouxe para casa da Rai nha as suas duas irmãs, que a acompanhassem e servissem, e elas fossem servidas e tratadas como irmãs da Rainha sua mulher.

Na verdade, elas, por suas presenças, parecia que mereciam toda a honra; e assim vieram ao Paço, e El-rei fêz vida mui amorosa com a mulher,, tratando-a com tanta veneração e honra como se fora filha do maior rei do mundo, o que ela por suas muitas virtudes lhe merecia.

Porém durou pouco tempo: porque, como o demônio tem por costume em semelhantes lugares danar e meter cizânia, assim o fez entre as irmãs da Rainha com ela.

Vendo que, sendo menor, era a mais honrada, elas não tinham paciência para o sofrer; e não olhavam que, estando assim menos que sua irmã, estavam em maior grandeza que nenhuma da sua geração antes delas; e que dali podiam casar altamente.

Com a inveja que tinham do estado da Rainha, ambas de um conselho buscavam todo o dano, e como a pudessem empecer, e tirar da alteza a honra em que estava, não agradecendo a Deus e a ela as grandes honras e mercês que cada dia lhes fazia.

Ensinadas pelo demônio, que é pai de toda a maldade, de sua industria e com falsas testemunhas publicaram com falsidade que a Rainha dera A luz monstros peçonhentos, e não criaturas; do que o Reino todo se alterou. E El-rei aborreceu tanto a sua mulher que, lançando-a fora de casa, não lhe permitiu em todo o Reino lugar algum em que tivesse repouso nem quietação.

As irmãs lhe buscavam tanto mal, que o faziam a quem a recolhia ou lhe queria bem; de modo que, de Rainha, veio a ser a mais pobre e abatida mulher de serviço que em seu tempo houve na terra. Porém, como virtuosa permaneceu em toda a limpeza; e para melhor o poder fazer se fingiu forasteira; e por mulher de serviço novamente vinda à terra a recolheram em um mosteiro de freiras para servir dentro de casa; porque a sua presença, e a honestidade com que ela o foi pedir, mostraram ser ela de mais merecimento do que dizia.

Ali esteve recolhida, depois que El-rei a lançou fora, por muitos dias. E ainda que nos primeiros serviu como ela sempre quisera, as madres piedosas não lho consentiram ao diante, porque logo se suspeitou entre elas que devia ser pessoa de muita qualidade, ainda que sempre o negou.

E, por esta presunção que as Religiosas tinham, a recolheram entre si, escusando-a de serviços, e mandando que fosse servida igualmente como uma delas, porque sempre se achou nela que o merecia.

E esteve em este encerramento mais de quatro anos.

* * *

Neste tempo que a Rainha era fora do Paço, as irmãs procuraram ilicitamente ver se podiam agradar a El-Rei, de maneira que, esquecido da Rainha, se afeiçoasse a alguma delas, procurando isso cada uma por si o mais que podia, o que El rei entendeu.

Dissimulando e apartando-se da conversação delas, fazia El-rei que as não entendia; e quando se achava só, dizia mal da fortuna, que lhe apar tara da sua presença a cousa do mundo que ele mais amava, que era a Rainha sua mulher, orde nando que houvesse causa para êle a apartar de si.

Com esta dor viveu todo este tempo, em o qual, ainda que lhe lembrava quão bem estava com a Rainha e que lhe dava pena seu apartamento, to davia parecendo-lhe que tinha razão para isso, nun ca permitiu que fosse buscada, nem quis saber no vas dela.

Para consolação do desgosto que trazia consigo não tinha outra recreação senão ir muitas vezes em um barco pelo mar, ao longo da terra, por espairecer. Algumas vezes pescava, e outras ia caça, ao longo de umas ribeiras que se vinham ali meter no mar, e onde por vezes achava garças e outras aves que lhe davam algum contentamento.

Costumando isto, aconteceu que um dia, ao longo de um ribeira acima, viu à borda da água uma casa feita de novo, ao parecer dos olhos formosa, e posta em um sítio para gozar dos ares, e vista do mar e terra.

Chegando perto, e desejando saber cuja era, viu a uma janela um menino que seria de sete anos, de muito formoso rosto, pobremente vestido. E perguntou-lhe:

 Filho: quem mora nesta casa? E o menino, com muita discreção, disse:

 Senhor: mora meu pai, que agora não está aqui. Se Vossa Mercê quer que chame minha mãe, vitá logo.

E neste tempo outro menino, de menos idade dizia dentro:

 Senhora mãe: está aqui um fidalgo à nossa porta…

A essa conjunção saiu uma mulher à porta da rua com uma menina pela mão, pequenina, e disse:

 Senhor: que manda Vossa Mercê?

El-rei, que tinha pregados os olhos e coração nos meninos que via, tendo no sentido que, se Deus fora servido dar-lhe filhos da Rainha sua mulher, já houveram de ser daquele tamanho, lhe disse:

 Vejo estas casas ao longo desta ribeira e estes meninos tão formosos… Folgaria de saber cujo isto é.

Ela respondeu:

 Senhor: as casas e os meninos são meus e de meu marido, para servir a Vossa Mercê.

El-rei, que tinha os olhos fitos neles, disse:

 Dona: as casas creio, que são vossas; mas os meninos… Sois já de dias, que parece não deveis ter tão pequeninos filhos. Porém, antes que me parta daqui saberei a verdade. Por isso chamai vosso marido.

E ela, turbada, lhe disse:

 Senhor: diz Vossa Mercê isto com tanta autoridade, que suspeito que é pessoa de maior merecimento do que eu imagino. E, porque não erre falando, antes de passar adiante me faça mercê de dizer-me quem é, que pode ser pessoa que eu lhe diga o que me pregunta, e não esperará a vindo do meu velho, que é no mar a pescar.

A El-rei pareceu mui bem a fala desta mulher, e lhe disse:

— Dona honrada: sou El-rei, e quero saber cujas são estas casas e estes meninos. Ainda que venha só, não duvideis do que digo e respondei-me ao que vos pregunto.

Ela se humilhou muito, e com os joelhos no chão pediu que lhe perdoasse não lhe haver falado até ali com a cortesia que devia; e, ao que pregun tava, soubesse que as casas eram suas, para ser vir a Sua Alteza; mas que os meninos ela não sabia cujos filhos eram; não sabia mais que ter-lhos trazi do seu marido, um a um, pequeninos, nascidos da quele dia, p’ra que os criasse. E ela, por sua in dústria, e com ajuda de uma outra mulher de outro pescador, que era companheiro de seu marido na barca, os criara. Que o marido lhe podia dar razão; que fora aquela manhã fora, e viria à noite. Deus querendo.

Então disse El-rei:

— Pois dizei-lhe que amanhã ao jantar vá tei comigo ao Paço, e leve estas crianças para me dir zer o que sabe delas, que o heide esperar sobre mesa.

E ela assim lho prometeu.

Ido. El-rei, como se meteu ao longo da ribeira, li acompanhado de muitos dos seus, e iam buscando se descobriam alguma caça, como ali costumavam achar, viu Sua Alteza umas lapas, que parecia que outro tempo foram pedreiras de tirar pedraria. E de dentro saiu uma mulher que trazia os cabelos muitos grandes, soltos e pretos, e os vestidos muito rotos.

Assim como ela saiu, e viu a El-rei, e que êle a vira a ela, com muita diligência se tornou a me ter para dentro, por se esconder. Mas, como foi vista, El-rei a seguiu; e como ia em um bom cava lo, asinha a alcançou.

Chamando por ela, que já se metia entre aque las lapas, não pôde ela menos que sair e responder ao que lhe preguntava El-rei:

 Quem sois, e porque estais neste ermo? Ela, que conheceu muito bem que era El-rei que lhe falava, lhe disse:

 Senhor: para que quer V. A. saber a vida de uma mulher desventurada, que em penitência de seus pecados faz desta maneira que agora vê? Recolha-se, pelo amor de Deus. E deixe-me acabar a vida e a minha penitência…

E com isto chorava tão fortemente, que era maravilha. El-rei, que viu que era conhecido dela, e que, por muito que lhe rogou, não quis dizer quem era, nem porque estava em tão solitário lugar, desejoso de o saber a fez tomar por dois homens. E, queixando-se ela que não era honesto ser deles maltratada, El-rei lhe mandou dar uma capa-de-água sua e um sombreiro, com que se cobrisse; e que a pusessem em ancas de uma mula e que um escudeiro com muito resguardo e honra a levasse ao Paço, e sem que fosse vista de outra pessoa alguma a vesse, até que êle chegasse.

O que se fez assim. E, chegando El-rei, man dou algumas donas de que se confiava muito que a vestissem, como ela se quisesse vestir, para lhe falar ao outro dia aó jantar. Porém que até então não a deixassem ver, nem falar com outra pessoa.

Ao outro dia, chegadas as horas de recolher a mesa, trouxeram aquela mulher por mandado de El-rei, que de novo lhe perguntou quem era, e por que andava daquela sorte.

E ela, cheia de lágrimas e soluços, disse:

 Senhor: saberá V. A. que eu nasci em casa da mãe da Rainha minha senhora. Criei-me com ela e com suas irmãs, e em sua companhia vim ao Paço — o que não devera, pois minha vinda foi para tanto mal como eu fiz…

A este tempo esmoreceu, e caiu, que não po dia falar, nem bulir pé, nem mão. Acudiram-lhe as donas com remédios, e El-rei se chegou a ela e a esforçou, rogando-lhe que se consolasse em qualquer tribulação que fosse a sua, e que lhe desse conta do que lhe perguntava, que êle lhe faria mercês.

Lançando-lhe água no rosto, com amorosas pa lavras a esforçaram; e ela, tornando em si e suspirando, tornou à pratica, e disse:

 "Estando eu nesta casa em muito vício, fa vorecida da Rainha minha senhora e de suas irmãs, elas me apartaram um dia, e me disseram que | S. A. ia ter o primeiro menino e que elas tinhamdeterminado mostrar a El-rei um grande sapo, e dizer-lhe que este era o filho da Rainha.

"Que tomasse eu com diligência a criança, que alas ma dariam envolta em panos, e a fosse lançar ao mar. Que isso faziam, para que não acertasse a ter filho, como prometera; que elas não podiam sofrer que a menor irmã fosse senhora das mais velhas.

"E eu, desaventurada de mim, por lhes ganhar a vontade, sem atentar o muito que nisso perdia, quis fazer o que mandavam. Aceitei aquilo; tomei a criança acabada de nascer, a mais formosa que vi em meus dias. Envolto em uma mantilha, com outras toalhas ricas debaixo, mo deram, encarecen do-me que importava muito lançá-lo no pego do mar; e que não tivesse cobiça da mantilha, ainda que era rica e com barras de veludo verde atorça ladas de ouro, porque elas me dariam jóias ricas, e tantas, que não tivesse saudade daquilo.

"E logo, em minha presença, tiraram um grande sapo que tinham em uma panela, e o embrulharam; e, isto feito, gritaram, fingindo que era do medo do sapo, e lançaram a fugir, e eu juntamente com elas. Com esta revolta tive tempo de me sair do Paço, levando a criança comigo sem que ninguém me sentisse, deixando na câmara e na sala tantos gritos e alvoroços espantosos, que era pasmo o que todos faziam. Uns diziam que o filho da Rainha era um sapo, outros diziam outra cousa.

"De tudo V. A. se lembrará, que era presente. Quando me vi na rua, encaminhei para o mar; e como todos corriam para o Paço, não se atentou para mim, e fui ter àquele lugar onde Vossa Alteza me achou. Desembrulhei a criança que era varão, formoso como um anjo. Temi de lança-lo no mar, emulo que Deus me castigaria gravemen te, e aguardei, a ver se vinha por ali alguém; e nisto vi vir um velho pescador. Deixei a criança embrulhada, nos fatos, como vinha, e lancei a cor rer, fugindo. Êle, como me viu deixar aquele vulto vermelho, foi ver o que era; é eu, que esperava o que êle fazia, como lho vi erguer do chão, e levá-lo para casa tornei ao Paço com o rosto ledo, e disse às senhoras que o lançara no mar fora. Porém, o menino ficou em poder do pescador, que não sei o que faria.

"As senhoras foram contentes do que eu disse que fizera, fizeram-me grandes mercês, e esteve êste segredo encoberto nelas e em mim. E desta manei ra que contei aconteceu outra vez, quando levei o segundo Infante, formoso como um serafim, em um mantéu branco com barras de veludo azul, lavradas de trochados de seda laranjada; e parece que, com a pressa, foram atadas as toalhas dentro com umas trançadeiras de encordoar os cabelos, que eram mui ricas. Ao sobressalto que mostraram ter, quando disseram que o segundo filho da Rainha era uma cobra, fugindo todas, fugi, eu também; e levei o In fante ao próprio lugar aonde levara o outro; e, em eu chegando, o pescador me apareceu diante, e eu, que o vi, lancei a fugir, deixando o que levava, como já fizera de outra vez.

"O velho me viu, e quisera que o esperasse, cha mando-me com meiguices. Eu fiz que o não entendia; e êle, tomando a segunda criança, se foi aonde nunca mais soube déle. Tornei-me ao Paço

i disse que o lançara no mar, como o primeiro; pelo fiuú também me fizeram mercês. E neste tempo es-iiwa neste Paço V. A. e todos os seus leais) vassalos In o tristes pelos filhos da Rainha serem alimárias tçonhentas, e não criaturas racionais, que não havia contentamento em nada, do que V. A. mesmo tode ser boa testemunha. Porém, antes de. outro Vito, ou nele, veio a Rainha a ter uma meninja; e forque não posso, com a dor de alma, especificar já mais pelo miúdo isso, o direi em suma. Chegada a hora que Deus foi servido, me deram a criança, envolta em uma mantilha de cetim verde, forrada de veludo de Bragança branco, chã, sem guarnição alguma, com ricas toalhas debaixo, atadas com um cordão de retroz azul, que tinha uns nós muito curiosos de ouro e aljôfar. E fingiram, como de antes, haver a Rainha tido uma toupeira, que tinham para isto prestes; e no espanto e alvoroto disto, quando fugiram, fugi eu, e fui ter à borda da água, ao lugar onde deixei seus irmãos; e vi que levava uma menina, cuja beleza e formosura não sei encarecer.

"Estando contemplando comigo a grandeza de Deus, que tal criara, $ como eu o ofendia e era algoz de inocentes, e que por. mim se perdia tanto bem na terra — esmoreci. Quando acordei, achei o pescador comigo, que me tomava a criança, e pegando em mim, quisera-me deter. Mas, como êle era velho, e eu moça e valente, tirei por mim tão rijo, que lhe fugi das mãos, ãeixando-lhe a criança. E porque me temi que me buscasse no Paço, não quis tornar a êle e meti-me naquelas lapas onde Vossa Alteza me a-chou, e em que, haverá bem quatro anos,

estou comendo das ervas que nascem ao longo ribeira, e bebendo da água do rio. E isto fiz agora, com intenção, que, se nunca fosse descob to meu delito para ser castigada como mereço, menos para com Deus Nosso Senhor tivesse fe’ alguma penitência dele, pois cometi contra sua vina majestade tais e tão feios pecados, e con V. A. tão grande maldade…"

* * *

El-rei, acabando de ouvir isto, ficou espantado da traição que as irmãs fizeram contra sua irmã As quais ambas foram chamadas, e viram a don zela, e entenderam tudo o que ela tinha dito; e como tudo era verdade, não tiveram boca com que o negar, nem rosto para aparecer. E como que que riam falar uma com outra — se chegaram a uma janela daquela sala, que ia ter ao mar; e abraçan do-se ambas, se lançaram dela sem lho poderem estorvar.

Ainda que El-rei mandou gente que as fosse favorecer e tirar, não se afogassem, quando chegaram e as tiraram fora, acharam que eram mortas. Todavia se lhes fizeram muitos benefícios e remédios, mas nada lhes aproveitou; porque, do grande golpe que deram, e da água que haviam bebido morreram; do qual pesou muito a El-rei, que era tão benigno, que, se elas, arrependidas, lhe pediram perdão, lhes perdoara.

Mas permitiu Deus que pagassem |o grande mal e dano que fizeram à Rainha sua irmã, e aos Príncipes e Infantes seus sobrinhos.

Ainda a gente do Paço não estava de todo sos segada deste alvoroto, quando entrou pela porta o velho pescador e sua mulher, e a mulher do companheiro que andava com êle na barca.

Os dois velhos traziam no colo os dois infantes, e a outra mulher a infante. E, chegando ante El-rei, o velho se adiantou de sua companhia e disse alto, que todos o ouviram:

— Senhor: eu vivo meia légua desta cidade, pouco mais; e de meu ofício, que é pescador, me mantenho com uma pobre barca em que andamos, tu e outro companheiro, marido desta mulher que aqui está, o qual fica olhando pela barca. Disseram-me que ontem passara V. A. pela porta da casa em que vivo, e, vendo estes meninos, pregun tou cujos filhos eram. E porque minha mulher lhe não deu razão suficiente, V. A. mandou que viesse eu aqui, e que os trouxesse, que queria saber cujos eram tão formosos meninos. Pelo que eu vim, e os trago comigo, como V. A. vê; porém ainda que lhe diga tudo o que deles sei, por derradeiro não sei dizer-lhe cujos filhos são.

Saberá que este é o mais velho, e eu o achei ao longo da praia, nascido daquele dia, que não sei por que desventura o lançou ali uma donzela, que o pôs e fugiu. Êle vinha envolto em ricas toalhas e numa mantilha fina de escarlate, que tudo lhe tive guardado; e a mantilha a trago aqui, que é esta.

E logo mostrou a mantilha em que a donzela disse que fora envolto o primeiro filho da Rainha. Mostrando o outro menino, disse:

Daí a pouco mais de ano aquela mulher, o outra, trouxe ao mesmo lugar outro menino, envol to em estoutro fato, que minha mulher traz.

E mostrou o mantéu branco bordado de velu do azul, e as toalhas, tudo assim como a donzela dis se que o levara com o segundo filho. E depois, mos trando a menina que a mulher do companheiro tra zia, disse:

 E daí a outro ano, pouco mais, passando pelo próprio lugar, achei aquela donzela com esta menina no regaço. Ela estava esmorecida, eu lan cei mão dela, por saber quem lhe mandava fazer tanto mal. Pôs-se-me em defesa; e eu, por acudir à menina, que a esta hora chorava muito, a dei xei ir. Tomada a menina ao colo, a levei para minha casa, como costumava fazer aos outros; e a cada um a seu tempo fiz batizar. Trouxe esta mulher para minha casa, desde o dia que achei o primeiro menino, a qual lhes deu leite a todos três, que naquele tempo tinha um filho de um mês. E ela traz ali o fato que trazia consigo a menina.

E logo desenvolveu e mostrou a mantilha de cetim verde, forrada de felpa branca, e o cordão azul, e as toalhas, assim como a donzela disse que levava a filha da Rainha. E, depois de mostrada, tornando à sua prática, disse:

 Do meu trabalho e do marido desta mulher nos mantivemos sempre graças a Deus, que nos fez continuadamente tantas mercês, que não nos faz míngua cousa alguma, antes temos já casa de nosso, e na barca as redes com que pescamos…

Ouvindo isto, e visto o que a donzela dissera, todos os circunstantes a uma voz diziam que todos

aquêles três eram filhos de El-rei; e confirmou-se mais, em que naturalmente se pareciam os machos com El-rei, e a filha era muito em extremo formo sa, que diziam se parecia com sua mãe.

A este tempo seria já de quatro anos; e, ain da que vinha no colo da ama, a que chamava mãe, tanto que a puseram no chão fugiu dela, e se meteu entre as pernas de El-rei, dizendo:

 Ah! ah! agora sim, que está aqui meu pai! Não quero ir convosco.

Nestas palavras atentou bem El-rei, e abraçou-a, e teve-a consigo. As pessoas que estavam presenteei, e as donas todas de casa, vieram, e conheceram todo o fato era que os infantes foram envoltos, que tudo eram peças conhecidas do Paço, e das senhoras irmãs da Rainha. E a morte desastrada que elas tomaram por si acabou de confirmar ser verdade o que a donzela disse, e que aqueles, todos três, eram irmãos, filhos de El-rei e da Rainha.

El-rei assim o teve logo por certo; e virando-se para a donzela, que ali estava chorando, crendo que lhe dariam cruel morte pelo delito que fizera, El-rei lhe disse:

 Erguei-vos, e recolhei-vos com estas donas e senhoras, que em dia de tantas festas como se devem’fazer por descobrimento de tais filhos, não convêm lembrar os delitos passados. Eu vos perdôo tudo!

E ao velho pescador, e a sua mulher, e à pobre, ama dos infantes, recolheu consigo no Paço. E, mandando chamar ao amo, fez a todos grandes mercês, e os teve sempre em muito estado e honra.

Logo El-rei mandou por todo o Reino em bus ca da Rainha e que se publicassem as novas do acha mento dos três filhos infantes, e da traição irmãs da Rainha, o da sua morte.

Foi ter esta nova ao mosteiro onde a Raínha estava, e as Religiosas fizeram por esta festa dolene procissão por dentro do seu mosteiro, com Te Beum laudamus.

Todas estavam ledas do contentamento que El rei tinha; mas sobre todas mostrava o rosto da Rainha tanta alegria em si, que, ainda que o não publicava pela boca, todas viam nela mais alegria que em nenhuma pessoa. E foi tanta, que a Madre Abadessa, com outras donas e religiosas, suspeita ram o que era; e, apartando-a, com grandes jura mentos inquiriram dela que era mais do que elas sabiam.

A Rainha, vendo que já não era tempo de se encobrir, lhes manifestou e declarou a verdade. A qual sabida, a Madre Abadessa mandou pedir a El-rei, por mercê, que ao outro dia fosse ouvir missa àquela casa, que tinha que lhe dizer.

El-rei, crendo que lhe queria pedir esmola para a casa, por ser tempo de tanta festa, determinou de lha dar; e com essa intenção foi lá, e dita a missa se recolheu dentro na casa. As Madres religiosas, todas, saíram a recebê-lo em procissão; e a Madre abadessa lhe apresentou a Rainha pela mão, dizendo:

— Senhor, esta jóia tínhamos cá conosco, com a qual sempre vivemos ledas e contentes; que as mais das vezes, o que o mundo tem por mau, isso é o que Deus tem por bom. Esta é a Rainha. Dai

graças que vo-la deparou, que tal Senhora não merecíamos nós por nossos pecados. Honre-a, estime-a, Vossa Alteza, como é razão, como nós confiamos que o fará.

El-rei, que a viu, quisera-lhe fazer grande cortesia, pedindo-lhe perdão do passado. E ela se pôs em giolhos, pedindo lhe fizesse mercê de esquecer que já fora, que tudo o havia por bem passado, pois Deus Nosso Senhor o permitia. Ao qual dava muitas graças, que teve por bem mostrar a ver dade das ofensas que lhe fizeram; e mostrava pe sar-lhe da morte de suas irmãs.

El-rei mandou chamar toda a fidalguia da Corte, e a muitos senhores que trouxessem suas mulheres. E com todos eles e elas, levou a Rainha dali para o Paço com tanto alvoroço de ale gria, como se então casaram de novo.

A Rainha viu seus filhos, alegrou-se com eles, c com os velhos e a ama que os criaram, e a todos fez mercês. Mandou mais esmolas ao mosteiro onde estivera, e toda sua vida foi bem agradecida a Deus pelas mercês que lhe fez, em lhe guardar os filhos e torná-la a seu estado.

A donzela que levou os infantes ao mar foi metida em um mosteiro, pedindo-o ela; onde fez grande penitência e muito boa vida.

As irmãs da Rainha floram enterradas sem pompa, por sua desesperação.

Gonçalo Fernandes Trancoso, Histórias de proveito e exemplo, edição do prof. Agostinho de Campos, XV, 101, Lisboa, 1921. ‘

Trancoso retirou o conto da tradição oral e desnudou-o de todos os elementos de encanta mento, tornando-o narrativa moral, um exempl ético. Versões populares foram incluídas na coleções de José Leite de Vasconcelos e Teófilo Braga, e no Brasil na de Sílvio Romero, Contos Populares do Brasil, IIo, Os três coroados. Rei nhold Kohler e Stanislau Prato estudaram minuciosamente as variantes européias do cont em sua expressão corrente, com as occorência sobre-naturais. A página de Trancoso é uma utilização literária, guardando o frasco e perdendo o perfume.

Antti Aarne e Stith Thompson fixaram o’ motivos, Mt. 707, The Three Golden Sons, mas; trata da versão popular e não da que Trancoso escreveu. Straparola, "XIII Piacevoli Notte", noite 3, Fábula IV, regista o conto com seu enredo miraculoso. (CASCUDO)


 

Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora.

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