D. João VI no BRASIL – Olivera Lima
CAPITULO XXVI
AS SOLENIDADES DA CORTE
Aos poucos fora a corte emigrada refazendo seu ambiente de etiquetas. O desembarque em 1808 tinha
sido jubiloso e cordial na sua feição antes popular do que nobre, mas relativamente modesto nas
suas galas. Em 1817, porém, já a
arquiduquesa Leopoldina veio da nau para terra na galeota esculpida e dourada, remada por cem homens, e foi transportada com os sogros e o noivo, do Arsenal de
Marinha845 para a Capela Real
onde se celebrou o consórcio, num coche de gala, como os de D. João V, pomposo e puxado a quatro
parelhas de cavalos morzelos, de penachos vermelhos e mantas de veludo bordado a ouro. Dois outros
coches eram destinados
às Altezas Reais e uma porção mais, vindos quase todos de Portugal,846 aos dignitários
e fidalgos da corte que assim passara a reviver no fausto de Lisboa.
As festas do casamento do príncipe real foram, dentro
dos recursos da
grandeza do novo reino, à altura do acontecimento e dos nubentes. Para dar
brilho ao enlance da infanta Maria Tereza, em 1810, já havia a corte enviado o melhor dos seus
esforços, ordenando touradas e cavalhadas — que não importavam contudo em
novidade para a colônia, onde pelo menos as cavalhadas constituíam um folguedo nacional —
numa praça847 adrede construída no Campo de Sant’Ana com 348 camarotes, recita de gala, decorações públicas e
iluminações. Os artistas nacionais eram ainda insuficientes em perícia para o gosto das
ornamentações, para as quais começariam em 1817 a ser postos em contribuição os talentos dos
artistas mandados
vir de França para a projetada Academia. Não obstante no dizer do minucioso e indulgente
cronista padre Luiz Gonçalves dos Santos, correram soberbas as festas organizadas com os meios de
que dispunha o
senso estético da colônia, antes que os estrangeiros introduzissem no Brasil o sentimento
artístico de que careciam mesmo, para lhes dar relevo à unção religiosa, os
pintores de telas para as igrejas que, com a animação a tudo emprestada pela corte, deram em
descobrir suas vocações,
achando-lhes destino nas decorações dos novos templos e no embelezamento dos já existentes.
É
verdade que Luccock, mais viajado e mais desabusado que o padre, considerou pueris e absurdas
as festas de 1810, o que parece mais exato. Nenhum ridículo haveria, pode crer-se, no bando que
saiu a ler à população o edital da Câmara contendo a nova do consórcio e o
convite ao júbilo nacional, com a comitiva dos oficiais do Senado, montados e
deixando flutuar
suas capas bandadas de seda branca e seus chapéus de plumas brancas, e o séquito dos
criados do Paço conduzindo pela rédea ginetes ornados de fitas e penachos e três azêmolas
carregando fogos de ar. Tampouco seria ridículo, pisando as ricas alcatifas da Pérsia que
cobriam o estrado
dando passagem do Palácio para a Capela, o cortejo nupcial, o primeiro da realeza
brasileira, formado nas salas forradas de damasco, sob os lustres de cristal, e desfeito à porta onde o
aguardavam o bispo e cabido paramentados de branco, para de novo se constituir
à luz das tochas empunhadas pelos moços da
câmara e ao som das salvas e descargas
que abafavam os instrumentos de sopro das músicas regimentais,
Onde
ressumbrava o mau gosto era na fachada de arquitetura erigida fronteira ao mar e representando um fundo de jardim,
com um grande e bem moldurado painel
encerrando os retratos de Dom João e de Dona Carlota encimados por um gênio — o da concórdia provavelmente — mais abaixo, sob a proteção do himeneu coroado de
rosas, outro painel com os retratos
dos noivos. Descreve miudamente o cronista os pedestais de bem fingida pedra
dos medalhões, os emblemas, os escudos, os versos alegóricos, os golfinhos, os vasos de flores
postos no alto da estrutura e a
impressão que nos fica de todo esse complicado vergel arquitetônico é a de uma balaustrada "com bambolinas de
veludo carmesim com forro de arminho".
Do drama Triunfo
da América dado na recita de gala, nada nos permite hoje julgar, mas as danças de africanos no terreiro
do Paço "com estampidos de girândolas
e fogos imitando salvas de artilharia e fogos rolantes de mosquetaria", misturados de rodas e valverdes de São
João, e as cavalhadas de mascarados
em quatorze pares com divisas encarnada e azuis sob forma de listões pendentes do ombro, precedidos de trombeteiros montados, e trotando, galopando,
caracolando, com tochas na mão depois esgrimindo e descarregando pistolas,
deviam produzir uma sensação mista de quadrilha de circo e marcha
nupcial alemã.
O
cúmulo do burlesco atingiram, porém, as. festas, comemorativas ainda da boda, celebradas meses
depois, e que decerto procriaram o carnaval fluminense. Duraram sete dias na praça do Campo de
Sant’Ana e, para
amostra do que foi o desfilar de carros alegóricos, basta referir que o primeiro, o dos mercadores,
figurava um monte coroado pela estátua da América de arco, aljava, cocar e
saiote de plumas, cercada de índios, quadrúpedes e pássaros assomando dentre as
ervas e flores, donde também brotavam esguichos que agüavam a praça. Havia nos outros carros, oferecidos pelos ourives,
negociantes de molhados, latoeiros, carpinteiros e outros como os denominaríamos hoje sindicatos
profissionais, uma dança de chins, uma ilha do Pacífico com seus indígenas, um
castelo donde emergia
uma dança militar, um escaler de marujos remando e cantando antes de desembarcarem e bailarem, um
grupo de ciganos com as mulheres nas garupas dos cavalos, até uma dança de homens disfarçados
em macacos, dandos saltos, fazendo caretas, executando cabriolas, até formarem
a pirâmide humana — nil novi sub sole — e o macaquinho do tope desenrolar diante da tribuna real… os retratos dos
sereníssimos consortes.
Parecendo pequeno o recinto
onde, depois dessas danças zoológicas e mavórcias, correram justas, escaramuçaram, perfizeram
cortesias em ginetes da real casa cavaleiros vestidos de * ‘casacas de fino
belbute e acompanhados
de serventes vestidos de cetim das mesmas cores", e correram touros campeões e capinhas de melhor
intenção do que experiência, o carnaval transbordou e numa gargalhada abraçou toda a
cidade. Foram umas saturnais
decentes. Saíram as alegorias, reboaram os cantares e desdobraram-se as danças
pelas ruas, pelas quais rodava um carro mais, engenhoso e monumental, figurando um
brigue de guerra iluminado e salvando. No Campo improvisara-se um passeio de palmeiras,
engradando ramas entrelaçadas de plantas aromáticas as alamedas terminadas por
arcadas de madeira,
e levantando-se no centro uma peça de arquitetura onde se armara o fogo de artifício que dignamente rematou a
série de festas. Por ocasião do consórcio do
príncipe real já não houve discrepâncias na crítica. Os estrangeiros von
Leithold no número, recordam com louvor a bela ordenação do cortejo nupcial, que ao som dos sinos e dos canhões
percorreu a distância do Arsenal à
Capela sobre as ruas juncadas de flores e entre janelas adornadas de
colchas. À frente um destacamento de cavalaria,
a que se seguiam os lacaios e palafreneiros do Paço em cavalos ricamente
ajaezados, transportando dois deles os escabelos forrados de damasco vermelho para os noivos; atrás a música da
cavalaria; logo oito marceiros, os reis d’armas e arautos, montados
todos e trajando de
grande
gala. Vinham depois a carro os conselheiros reais, o mordomo-mor, os camaristas, acompanhados,
coches e berlindas, de lacaios a pé. O estribeiro-mor, ou antes quem suas vezes fazia,
precedia imediatamente o coche real, que escoltava o capitão da guarda de archeiros e ladeavam
os moços da câmara, de cabeça descoberta.
Durante todo o dia
ressoaram as aclamações populares em frente ao Paço, onde, depois da cerimônia religiosa, se
realizou o jantar de aparato. e à noite, por entre tochas acesas, sob arcos
triunfais e com gerais luminárias, retomou o cortejo o caminho do Arsenal para alcançar São Cristóvão por mar, numa flotilha
caprichosamente iluminada a copinhos de cores. Na véspera tinha ido o conde de Viana a bordo
saudar a arquiduquesa, e mais tarde ali a visitaram todos os membros da real
família, já então sendo
descrito como impressivo o espetáculo das embarcações empavezadas, com os marinheiros nas
vergas dando vivas, enquanto batiam compassadamente a água os remadores metidos nas suas belas
roupas. À noite, relata-se
como feérico o aspecto de conjunto das luzes do Arsenal, das pontes de
desembarque e dos muitos navios, refletindo-se nas águas quietas da baía Logo em janeiro passou o
aniversário da princesa real, sendo a data ruidosamente festejada com touradas,848 danças
de mouros e selvagens organizadas pelo
mestre de bailados Lacombe no salão do teatro e fogos de artifício no jardim de São Cristóvão e no Campo de Sant’Ana.845
Os índios eram parte obrigada e ainda
seriam parte essencial do simbolismo nacional,
mas no fogo de artifício por ocasião da elevação do Brasil a rei no, vira-se o país depor o cocar e saiote de
penas e assumir a coroa e manto com que o brindara o príncipe regente.
De
todas as festas reais celebradas no Rio de Janeiro as mais solenes e deslumbrantes foram, porém, as
da aclamação de Dom João VI, em fevereiro de 1818, com o seu seguimento em outubro do mesmo ano.
Para a função da
aclamação foi que se levantou no largo do Paço, entre o palá cio e a capela, a famosa varanda
ou galeria que Debret desenhou na sua famosa obra, com dezoito arcadas, os troféus e as
estátuas da decoração e ao centro a tribuna em projeção destinada à cerimônia,
de forma a nada perderem dela a família
real, a corte e o corpo diplomático esparsos em tribunas ligadas ao Paço.
O que a litografia não podia porém reproduzir, era o luxo interior da galeria, toda revestida de
veludo carmesim e com pinturas alegórica nos tetos, lembrando as virtudes do monarca que subia ao
trono de seus avós
longe da pátria tradicional, mas no coração de uma nova pátria por
ele fundada.
Recebeu então o Rio de Janeiro o seu batismo de capital
da monarquia. O
espetáculo tanto foi militar como civil e foi paralelamente grandioso. O dia escolhido foi o de 6
de fevereiro. Pela manhã teve lugar a missa do Espírito Santo e à tarde a aclamação com todas
as formalidades costumares. Encaminhou-se
o cortejo do Paço — ao qual por um lado e
pelo outro à capela se achava a galeria ligada por um largo estrado descoberto e alcatifado — formado pelos porteiros da
cana com massas de prata ao ombro,
reis d’armas, arautos, passavantes, archeiros, reposteiros, gentis-homens da câmara, nobres e titulares,
bispos e prelados, oficiais da Real
Casa e grandes do reino. O infante servia de condestável, o conde de Viana de reposteiro-mor, o marquês de Belas de
capitão da guarda, e o conde de Barbacena, como alferes-mor, empunhava o
estandarte real enrolado. Por baixo
da varanda central tocava a orquestra de músicos alemães que tinha
acompanhado da Europa a arquiduquesa Leopoldina.
O rei ostentava, preso no peito por um atacador de diamantes, um manto carmesim com as armas
admiravelmente bordadas de Portugal, Brasil e Algarves, o escudo com as cinco quinas, a esfera
armilar e os sete castelos.
Segurando na sinistra o cetro, de ouro maciço bem como a coroa — obra, uma e outra insígnia, de
um mulato brasileiro empregado pelo joalheiro da coroa — Dom João com a dextra sobre o
Evangelho prestou ao
bispo-capelão o juramento do estilo. Sobre o mesmo missal lhe prestaram os príncipes de sangue o
juramento de obediência. Desenrolando então o estandarte, aclamou o alferes-mor o soberano, e
adiantando-se até o
parapeito da varanda, repetiu o seu brado que o povo recebeu com aplausos estrondosos.
Entre a massa compacta aglomerada diante da galeria, destacavam-se os pelotões da infantaria e os
esquadrões de cavalaria postados com receio de alguma manifestação de descontentamento da
parte do elemento
português pelo fato de ter lugar a aclamação do Brasil. Pela primeira e última vez no reino americano
desempenhou o seu papel o Juiz do Povo da antiga monarquia, o tradicional tribuno popular que
em Lisboa era eleito
pela Casa dos 24 e que no Brasil ainda exercia uma autoridade que se não podia chamar um
simulacro, pois que dispunha para sua afirmação da sanção penal. No cumprimento da sua missão
de defender o povo contra as arbitrariedades do poder, fez o já em todo caso
arcaico magistrado
de depositário da real promessa de respeitar a religião, as leis e os privilégios populares.
Satisfeita esta pequenina deferência, que era antes uma
formalidade, ao
Terceiro Estado, na mesma ordem se dirigiu o cortejo para a Capela Real, onde se realizaram o Te-Deum e a
tríplice benção dada com um pedaço do
Santo Lenho na custódia.
O largo do Paço
oferecia todo ele um aspecto festivo. À beira do cais mandara o Senado da Câmara levantar por Grandjean de Montigny um templo de Minerva850 em que se viam
a estátua da deusa protegendo o rei
e na entrada, em relevo, as figuras da poesia, da história e da fama e bem
assim os rios principais das quatro partes do mundo no ato de tributarem os produtos do seu tráfico. Em
frente ao chafariz colonial, um arco
do triunfo, obra de Debret, erguido pela Junta Real de Comércio, ostentava suas figuras, alegorias e
baixos-relevos, tendo pintadas sobre
transparentes cenas alusivas a Dom João VI: o seu desembarque no Rio e a proteção por ele dispensada às artes e ao
comércio. No meio da praça elevava-se um
obelisco, imitação de granito vermelho, fruto do estatuário Taunay.
O arranjo da praça fora confiado aos artistas franceses,
que assim quiseram
evocar, no templo o estilo grego, no arco o romano e no obelisco o egípcio, transplantando
para o Rio a moda das decorações napoleônicas. Por uma ironia do destino, ao tempo que o
conquistador penava em
Santa Helena,
artistas dos seus, dos que em Paris tinham visto, quando não preparado e executado suas
apoteoses, trabalhavam no Brasil para o monarca emigrado, cuja aclamação, no
gosto das festas delineadas para a glorificação do seu poderoso inimigo, se
verificava no seio de um outro continente, grande parte do qual obedecia ao rei foragido e onde este
havia até alargado
seus extensos domínios à custa dos adversários de 1807.
Já em Paris o clássico estilo napoleônico, de um classicismo meio bárbaro, se pusera ao serviço dos
Bourbons. Por isso escrevia Maler 851 que a
decoração do largo do Paço recordava aos franceses o regresso de Luiz XVIII à
sua capital, não tendo Grandjean feito mais do que reeditar o templo construído
ad hoc no Pont-Neuf.
Obelisco, arco e templo acendiam-se à noite clareando a baía escura onde
se destacavam, do outro lado, as fogueiras ardendo sobre os morros da Praia Grande. As iluminações
mais brihantes foram contudo as do Campo de Sant’Ana,852 transformado em um jardim,
com um palacete central
de madeira, cujos terraços serviam à família real de tribuna, e com fortins fingidos, nos quatro
cantos, em cujas esplanadas tocavam músicas e em cujas salas d’armas se serviam café e refrescos. À
noite o improvisado
jardim aclarava-se como se fosse dia: circundavam o tanque central com repuxo 16 estátuas iluminadas e,
nas alamedas que ali convergiam deparavam-se 102 pirâmides luminosas. Escrevia Maler853
— e o elogio não é
fraco — que o Campo de Sant’Ana exibia brilho e gosto suficientes para fazer pensar nas Tulherias e
nos Campos Eliseus, quando iluminados.
Aí
teve lugar no dia imediato, 7 de fevereiro, a parte popular das festas reais. No vasto recinto da
praça de touros efetuaram-se evoluções militares, deram-se danças e funcionou
um teatro onde, em presença da corte, se representou uma mágica, se executou um bailado
alegórico e durante perto
de uma hora se recitaram poesias alusivas, se pronunciaram alocuções patrióticas e se cantou o hino nacional.
O Elogio de Dom João rematava no palco pela sua
exaltação mitológica.
Fizera-se apelo a Vênus e às Três Graças, que gentilmente compareceram não obstante a pouca
beleza do herói, e enquanto se esperava que descessem do Olimpo, laborava sobre
o altar do himeneu o fogo sagrado da união mística do rei e do seu povo. Representantes dos
três reinos unidos
e guerreiros de toda espécie entravam como comparsas desse final nefelibata, em que se destacavam
animados, pairando entre as nuvens, os gênios
das nações componentes da dilatada monarquia.
No
dia 8, depois do beija-mão, renovaram-se no Campo de Sant’Ana as diversões da véspera e
queimou-se um esplêndido fogo de artifício à noite, quando a corte saiu a visitar as
iluminações, que emprestavam uma aparência fantástica, a toda a cidade, pois não se
limitavam às dispostas pela Intendência de Polícia, Senado da Câmara e Junta do Comércio. Particulares rivalizavam em grandeza
com estas corporações e repartições oficiais:
só uma casa se enfeitara com 6.000 lampiões de cor.
Os artistas franceses tinham prestado seu concurso com a
maior liberalidade, dando uma nota distinta às ornamentações, redigindo
inscrições, forjando
emblemas, escavando alegorias, a fixar sobre as transparentes, distribuindo desenhos, ideando
construções arquiteturais, delineando templos com bustos reais coroados do louro guerreiro ou da
pacífica oliveira. As
armas dos três reinos, o gênio do Brasil e as homenagens de figuras simbólicas eram os motivos
dominantes nas decorações, que todas traduziam, sob a expansão do afeto dinástico, o orgulho
particularista atiçando as rivalidades
que de regionais passavam a nacionais.
O resto das festas realizou-se oito meses depois,
efetuando-se no circo do Campo de Sant Ana as cavalhadas, touradas e danças a
caráter promovidas pelas corporações profissionais. Os desportos eqüestres e
tauro-máquicos
deviam ter sido os mais apurados da época a julgar pelos longos e cuidadosos
preparativos. Marrocos, que não alimentava muita ternura pelo Brasil e estava sempre
pronto a desfazer nas festas fluminenses, assim escrevia ao pai:854 "Trata-se aqui
agora dos arranjos relativos às próximas festas reais, em que se vê o firme ardor, empenho, a concorrência
notável do Senado da Câmara. De algumas das capitanias confinantes têm chegado a esta corte grande
número de pessoas, insignes cavalheiros, para figurarem e brilharem nas cavalhadas, de que já
começaram os ensaios,
a que tem ido assistir imenso povo, menos eu: assim como se mandaram vir
grossas manadas de touros escolhidos em força e braveza, com que se pretende
dar boas tardes a uns, e boas noites a outros. Ouvirei contar, se entretanto puder chegar a essa época
memorável."
A função foi de fato completa. Carros com músicas
transportavam à
arena os bailarinos que ali, apeando-se, executavam quadrilhas e solos: um grupo disfarçado em
guerreiros espanhóis antigos, outro em habitantes da Curlandia, precedidos
ambos pelo carro de Netuno e pela infalível dança de caboclos. Aos exercícios coreográficos seguiram-se
os torneios. Entretanto
de lança em riste, os cavaleiros faziam suas cortesias e procediam às variadas exibições de
equitação e destreza: canas, argolinhas, estafermo, alcanzias etc. Por fim, pondo-se em
contribuição a nova conquista, celebraram-se as touradas com artistas vindos de Montevidéu, os cavaleiros contudo à antiga portuguesa,
de casaco de veludo bordado com bofes de renda e chapéu tricorne, montados nos
estribos de caixa sobre cavalos de boa
raça e vistosamente ajaezados.
O Campo de Sant’Ana era o local para semelhantes divertimentos, mas o Largo do Paço constituía o
centro da vida cortesã, popular, militar e até mercantil da cidade. Aí vemos que se realizavam as
augustas cerimônias
da realeza; aí se davam largas os júbilos da plebe enquanto não chegavam seus desvarios; por aí
desfilavam ao som das bandas marciais os regimentos que iam ou vinham da campanha do sul; aí se
reuniam à hora da
fresca os mercadores temperantes, sorvendo os largos tragos Moringas de fresca, e se congregavam em
turbulenta aglomeração as tripulações ébrias dos navios surtos no porto.
O Palácio com suas dependências dominava o espaçoso quadrilatero. Nas janelas da sacada do
edifício principal costumavam aparecer figu ras aristocráticas quando nele assistia a família real,
assim como do segundo
andar do convento anexado (onde hoje funciona o Instituto Histó rico) se viam
espreitar o movimento da praça os oficiais da corte que ali tinham seus aposentos. No andar
térreo e nos pátios, onde ficavam as cozinhas
e a ucharia, era um fervilhar de criadagem.
As cavalariças tinham ido para o largo do Moura e as cocheiras para a praia de D. Manoel, de sorte que nas imediações da
mansão colonial se tinha formado um
acampamento completo em que se agitava uma verdadeira população palaciana, desde os fidalgos altaneiros de Lisboa até a
arraia miúda dos serviçais brancos,
negros e mestiços: tão numerosos apesar das reduções que sofreu o seu exército, tão pouco disciplinados e tão
velhacos que um dia, ao que refere a crônica epístolar de Marrocos,855
foi preciso meter na cadeia toda a
cambada dos empregados na cozinha e copa
de Dona Carlota, "por haverem gramanteado a merenda destinada para Suas Altezas". Nos dias de função de gala,
com o beija-mão indispensável,
tornava-se enorme a azáfama, concorrendo coches, berlindas, seges, traquitanas, gôndolas, carros ingleses, toda
espécie de veículos a transportarem o pessoal obrigado e facultativo
dessas cerimônias.
Do lado esquerdo do largo do Paço, levantavam-se casas uniformes que foram primeiro ocupadas por
fornecedores e empregados da Real Casa, mas em 1818, tendo-se deslocado o grosso da corte
para São Cristóvão,
já o eram, nas lojas por vários cafés, e nos andares superiores por bilhares e
hotéis à francesa. Por trás deste quarteirão no dedalozinho de ruas que subsistem, encontrava-se
bem repetido o tipo clássico da hospedaria portuguesa, anunciada por grandes tabuletas e
lanternas de folhas de
Flandres, e com armazéns para depósito das mercadorias dos viajores, na maior parte de comércio.
Na fachada do quarteirão da banda da praia as lojas de variados fornecimentos formavam uma espécie
de mercado que nunca se levantava, e da banda oposta, as casas voltadas para a terra
constituíam o começo da
rua Direita com suas boas lojas de negociantes abastados. Encostado mesmo ao mar fazia-se o mercado
de peixe, a que se seguiam os trapiches da Alfândega e depois a praia dos Mineiros, onde se
vendiam bananas, lenha, louças e outros
artigos.856
Se nem toda ela podia haver-se esmerado e adotado o bom tom, que se derivava de um arremedo que
fosse do legítimo esplendor das realezas, a vida fluminense no geral ganhara tanto com a fartura
proveniente de um
comércio direto e extenso, e com a convivência estrangeira, que em 1817, no dizer de Debret,
oferecia mesmo recursos aos gastrônomos. A mesa civilizara-se entre certos; educara-se o paladar de
muitos, dantes embotado
pela monotonia da carne seca com feijão e do cozido com farinha, conhecendo como delícia suprema a franga assada;
o jantar convertera-se para os educados no
que era na Europa: uma reunião agradável
para o corpo e para o espírito, prazer dos sentidos e recreio da inteligência.857
O Palácio de São Cristóvão onde o rei residia mais
freqüentemente do
que em qualquer outro, passou por diferentes arranjos e sofreu algumas adições durante a estada no
Brasil de Dom João VI. Logo
depois da doação,
em 1808, o arquiteto-engenheiro português José Domingos Monteiro fez-lhe o portão e Manoel
da Costa pintou as decorações interiores. A primitiva casa da chácara do negociante Elias tinha por
mimo uma varanda
ou galeria, muito comum nas construções tropicais. Em 1816 chamavam, porém, a atenção a grade,
o pátio de honra e a fachada lateral gótica, obra de um arquiteto inglês — como o
intitula Debret858 — que foi quem preparou os aposentos para o príncipe real na
ocasião do casamento
e prosseguiu nesse mesmo ano de 1817 a construção de um dos quatro pavilhões com arcaria ogival imaginados para os
ângulos.
Neste palácio dava o rei, ao som de uma banda de música,
o que se pode
denominar beija-mão comum todas as noites das 8 às 9, exceção feita dos domingos e dias
santificados. Concorria à cerimônia crescido número de pessoas a pé, a cavalo, de sege ou em
cabriolé, pejando os caminhos da Cidade Nova, Catumbi e Mata-Porcos. Nessas
recepções ordinárias
um mulato pisava os calcanhares de um general, na frase expressiva de
Henderson. Dom João VI gostava
muito que os seus súditos freqüentassem o beija-mão e fazia por isso lá voltarem repetidas
vezes os pretendentes,
particularmente os que vinham da Europa com algum desejo. A estes maliciosamente os demorava
no Rio, como que para lhes ensinar a apreciarem sua capital de eleição. Dotado da prodigiosa
memória dos Braganças,
nunca confundia as fisionomias nem as súplicas, e maravilhava os requerentes com o
conhecimento que denotava das suas vidas, das suas famílias, até de pequenos
incidentes ocorridos em tempos passados e que eles mal podiam acreditar terem subido à ciência d’el-rei.
Ao beija-mão de gala compareciam não só os personagens em evidência como quantos ambicionassem
aproximar-se da realeza e tivessem meios de envergar um trajo de casaca preta, colete
branco, calções e meias negras e chapéu de pasta. Os de nascimento nobre agregavam um espadim. Ao lado da poltrona real, para cá dos dois
enormes anjos de asas e armadura prateadas
que sustentavam o docel do trono, uma mesinha com dois castiçais em cima servia para acumular as petições e permitia ao monarca lançar-lhes uma vista de olhos. O
desfilar não obedecia a precedência
alguma e todos sem distinção fincavam um joelho no chão ou se ajoelhavam
com os dois diante do rei.859
Na casa de campo de Santa Cruz passava Dom João VI todos os anos algumas semanas, e a essa
residência de fazenda afeiçoaram-se muito Dom Pedro e Dona Leopoldina, ali se demorando por
vezes bastante tempo. Foi
de resto por ocasião do seu consórcio, exercendo o cargo de intendente geral dos edifícios da coroa o
visconde do Rio Seco, que se arranjou convenientemente a vivenda, desmanchando-se as celas da
antiga casa da Ordem,
onde continuara a alojar-se o rei, para se fazerem divisões mais amplas.
Não eram mais freqüentes as viagens da corte porque cada uma custava rios de dinheiro, roubando
os fornecedores escandalosamente de combinação com os mordomos. Também fora a fazenda um
desastre completo pelo lado financeiro. Mal cultivada depois que pela força a
desertaram os padres jesuítas, nenhum proveito se tirava dos milhares de
cabeças de gado que
por suas pastagens erravam, nem dos escravos negros, quase mil em número, que nas suas senzalas
se juntavam. Mawe, que esteve feito administrador da fazenda para pôr em execução sua famosa
receita de fabricar
manteiga, escreve que era lamentável a condição da propriedade e deploráveis os abusos. Nas terras
amanhadas cresciam as ervas; as plantações de café pareciam capoeiras, com arbustos bravios
mais altos do que os
cafezeiros; o gado andava tão maltratado que não se encontrava um só cavalo que prestasse para montaria.
Linhares, que em tudo pensava e de tudo se ocupava,
instalou em Santa
Cruz colonos chins, dos que mandara vir de Macau. Não medraram todavia: voltaram uns para a
cidade e venderam foguinhos e outros artigos da sua produção exótica, e desapareceram outros, ou
porque tivessem morrido
de pura nostalgia, ou porque se internassem a esmo, rondando muitos dessatisfeitos à
aventura. Poucos foram os que ficaram na fazenda, sem aliás se importarem de
forma apreciável quer com a agricultura, quer
com a horticultura.
Tal foi o aspecto material da realeza brasileira. Pelo que toca ao moral, fácil é imaginar o tom
predominante na corte do Rio de Janeiro, nos tempos do Reino Unido, para quem conserva
presente na memória ou conhece de tradição a feição geral da fidalguia portuguesa antes que o
cosmopolitismo e a
educação correlativa, transformando a aparência do país, a fossem também muito
recentemente transformando.
Dessa nobreza caracteristicamente nacional, inculta, iletrada, toureira, fadista, dissipada,
arruaceira, foram Dom Pedro, até a luta e o infortúnio o depurarem, e Dom Miguel, até o exílio e a
pobreza o enobrecerem, dois representantes genuínos e completos. Não
desmentiam, um e
outro, nem a filiação materna, nem o meio aristocrático a que pertenciam, na pouca elevação
das inclinações, na grosseria das maneiras, na curteza das vistas, na sensualidade dos apetites,
na animalidade dos gostos.
Conta Henderson que, tendo
alcançado um dia em seu passeio as terras de São Cristóvão, deparou com o príncipe real
amansando com um enorme
chicote, que fazia estalar com o frenesi dum postilhão, animais de tiro para as
cocheiras do palácio, já tendo naquela manhã esfalfado quatro parelhas. Não longe o infante, de
botas altas, chapéu armado e placa ao peito, munido de um longo aguilhão e
ajudado por alguns negros e pelo feitor, lavrava o campo com um arado puxado por três juntas de
bois.
Assim
se preparavam para o governo da monarquia os filhos de Dom João VI, rijos de músculos mas alheios a
todas as questões públicas, cheios de atividade mas estranhos a qualquer preocupação
intelectual, suprindo sua
palmar ignorância por uma grande vivacidade natural e sua odiosa vulgaridade pelos rasgos de um
cavalheirismo espontâneo, de raça ou de índole,
que fazia às vezes de contrapeso moral.
Com
eles faziam coro os jovens rebentos das casas fidalgas transplantadas em 1808, criados nas
tradições da ociosidade mental e com o feti chismo da Lisboa devassa e desordeira,860
cujos palácios cheios do rumor dos dependentes tão pouco se apareciam com as quintas mais tranqüilas na
sua exuberância tropical dos arrabaldes fluminenses, onde por fim se aninhara muita gente principal
da corte, acompanhando os ingleses que primeiro invadiram os subúrbios à cata de residências
frescas e agradáveis.
Eram
na verdade estrangeiros que ocupavam os melhores pontos da praia do Flamengo,
onde residiram os ministros Balk-Poleff e Thornton, de Catumbi, onde foi viver num
alto o ministro Flemming, e de Botafogo, onde sobretudo se destacava a elegante vivenda do
negociante Harrison. Os
arrabaldes aformoseavam-se desse modo sem que porém melhorassem muito os rudes caminhos que a
eles conduziam. O Catete andava como outrora, cheio de buracos que, depois de qualquer
chuvada, se convertiam em vastas poças d’água. A única estrada cuidada — e é mister não exagerar
o qualificativo —, era a de São Cristóvão, a mais freqüentada também por causa da assistência real. A
vizinhança da corte determinara aliás a fundação de aprazíveis chácaras por toda aquela
redondeza, merecendo favor e povoando-se gradualmente o Engenho Velho, o
Engenho Novo, a Tijuca e o Andaraí.
Em
todas as festas da corte, avultavam as recitas de gala. Nessa vida fluminense sem conforto mas com
luxo, que este já despontara quando aquele ainda se não organizara; sem distrações inteligentes mas
com exibições faustosas;
atrasada e vistosa ao mesmo tempo, elas se assinalavam por darem-lhe a nota mais aparatosa. As
modas inglesas e francesas tinham-se ido introduzindo
e apurando o gosto, e as fazendas caras eram realçadas pela profusão de jóias. Von Leithold diz que em parte alguma se podiam admirar tantas pedrarias como as que constelavam
as damas brasileiras que assistiam aos espetáculos, de toucados emplumados,
vestidos carregados de passamanes de ouro e prata e meneando leques decorados
de pérolas e de outras pedras finas.
Não
se tornara portanto o teatro terreno somente para incipientes manifestações políticas; entrara
cada vez mais a ser o ponto por excelência de reunião social, sobretudo depois que a 12 de outubro
de 1813, aniversário
natalício do príncipe da Beira, se inaugurara no Rocio com o drama lírico — O juramento dos
Numes — e a peça dramática e patriótica — O combate de Vimeiro — o teatro de São João (mais
tarde de São Pedro d’Alcântara)
modelado como tudo mais no Rio, edifício ou instituição, pelos figurinos portugueses,
imitação reduzida a sua fachada da do teatro de São Carlos de Lisboa.
No desbravado Campo de Lampadosa, uma vez levantado o
teatro, começaram
logo particulares a construir casas de residência. Ficava-lhes assim ao pé da
porta o divertimento fino da cidade, no qual estavam diretamente interessados
os maiores capitalistas fluminenses, pois que o teatro fora erguido por subscrição,
ficando cada subscritor proprietário de um camarote. O organizador-empresário, José Fernandes de
Almeida, além destas
facilidades de capital que encontrou, usou à descrição de material transportado dos vizinhos
trabalhos de adaptação da Sé, começada no largo de São Francisco de Paula, à Academia Militar
fundada pelo tempo: mas ainda achou meio
de ficar devendo ao mestre de obras a madeira, a cal e as telhas.
Depois de começar a funcionar a nova casa de espetáculos, contribuía o príncipe regente com
largas somas para as despesas das representações oficiais nos aniversários da família real,
celebrados por meio de bailados ou grupos históricos, nos quais veio a primar o talento de Debret,
por bastantes anos
empregado nesse serviço artístico, do que resultou ficarem perpetuadas em suas
litografias algumas das formosas alegorias coreográficas por ele imaginadas, compostas e
ensaiadas. Nada contudo lhe chegando, solicitava o empresário empréstimo sobre empréstimo dos acionistas do Banco do Brasil, dando
em hipoteca o edifício, que em 1825 se incendiou e foi reconstruído pelo mesmo Almeida,
concedendo-se-lhe para tal fim loterias.861
A inauguração ficara memorável. O autor da peça simbólica, bocado de resistência do espetáculo,
chamava-se D. Gastão Fausto da Câmara Coutinho e era um poeta cortesão do
gênero dos que hoje em dia regalam o Imperador alemão com os seus panegíricos
dramatizados dos Hohenzollerns.
Parece-nos agora o seu estilo pretensioso-, empolado e confuso, ao ponto de por
vezes perder não somente a graça e a limpidez, que estas lhe são desconhecidas, mas até a
inteligibilidade. Nenhum todavia podia em certo aspecto expressar melhor essa
época nacional de vangloriosos desânimos, de enciclopedismo afoito e de arremetidas disfarçadas. O próprio entrecho não é fácil de resumir.
O primeiro quadro figura a sediça forja de Vulcano. O
deus incita os
ciclopes a trabalharem com fervor nas armaduras dos portugueses requeridas
pela guerra. Como no Lusíadas, modelo eterno de talentos e de mediocridades, Vênus aparece de
protetora desses amorosos incorrigíveis, rogando ao complacente marido que se apresse em socorrer
a gente dela na
crise em que se vê ameaçada pela França. Vulcano dá-lhe porém a grata nova de já terem os
portugueses lançado o inimigo além dos Pirineus. o que, entre parênteses, não vai
de acordo com o afã pelo próprio patrão recomendado à faina bélica da sua oficina. Após uma
larga explicação musical
e vocal dos motivos da sua perene e suspeita benevolência para com os lusos, retira-se Vênus,
prometendo aos ciclopes, como prêmio da diligência que revelarem, as quatorze ninfas que a
servem. As árias que se
seguem ao descarado contrato são obrigadas a compasso de martelos, batendo sobre as bigornas.
No segundo quadro, que representa um bosque, a Paz vem
queixar-se de só
achar guarida "nos brutos animais, a que o Olimpo previdente nega razão
aguçosa”. Surge a consolá-la o Gênio lusitano, com a esperança de que os monarcas da Britânia e
Lísia hão de fazer levantar o seu templo sobre inimigos sórdidos cadáveres, e de novo a
adornando das insígnias de que ela se despojara, convida-a a entrar no "sacrossanto alcançar
do supremo heroísmo" para ver
A cintilante efígie
portentosa
Do monarca maior, que hão visto as eras.
—
scilicet Dom João VI. A
retórica é capaz de tudo e merece ser perdoada, porque carece dos seus
estratagemas de tropos e hipérboles para efeitos cênicos como esse, difíceis
de preparar e sobretudo de tornar impressivos.
O gênio lusitano conduz de passagem a Paz à forja de Vulcano, a fim de admirarem as armaduras dos
portugueses, que transportam para o templo do Heroísmo, no fundo do qual se desenha o régio
pacato retrato. Ali encontram
Vênus com seu coro de Graças, cantando todos ao desafio e fazendo o Gênio o juramento de Portugal jamais
seria vencido.
Sob
a direção Almeida trabalharam no São João, durante a estada da família real no Rio, uma
companhia de canto dirigida por um certo Rascolli,862 a companhia
dramática da célebre atriz Mariana Torres e a de dança do famoso Lacombe,863 O corpo de baile era cosmopolita: nele figuravam francesas, espanholas e até uma
mulata.864 A orquestra deixava um tanto a desejar, exceção feita de uni
flautista francês e de um excelente violinista.865 Empunhava porém a batuta o célebre
Marcos Portugal, que em Lisboa regia a grande orquestra do São Carlos e gozava
de muita reputação nos palcos líricos italianos pelas suas óperas pomposas e alegres que tanto
agradavam ao príncipe, pela inspiração de quem ou para satisfazer a quem,
refere Debret,
introduziu o maestro na sua música sacra uma tonalidade profana, de música jovial e saltitante,
mais própria do gênero bufo.
Não quer isto dizer que não fosse genuíno em Dom João VI o gosto musical, que é apurado e
tradicional na família Bragança. Podia o real amador deleitar-se com a música mais superficial e
retumbante de Marcos
Portugal, mas não deixava por isso de sentir profundamente a música mais suave e penetrante do padre
José Maurício, a quem condecorara com o hábito de Cristo desde 1810, dando imediatamente e só
por si o valor devido
e à maneira finamente melodiosa, sem grandes efeitos orquestrais, que faziam do padre um Mozart,
comparando-o com o gênio marcada-mente
italiano do seu ilustre êmulo.
Os dois compositores, se personificavam correntes musicais divergentes, também inconscientemente
simbolizavam correntes políticas opostas, antecipando-se o conflito artístico ao patriótico. Era
José Maurício Nunes Garcia um produto espontâneo do gênio nacional, pois tudo
quanto valia, devia tão somente à sua intuição artística, ao contrário de
Marcos Portugal que vivera algum tempo e aperfeiçoara sua faculdade na terra clássica das artes.
O brasileiro nunca saíra com efeito do Rio, onde nasceu em 1767 e estudou com proveito suas
humanidades, conhecendo bem, no dizer do seu biográfico Porto Alegre, geografia, história,
filosofia, francês, italiano, inglês, latim e grego. Preferiu contudo ser
professor de filosofia, depois de ordenar-se, a entrar como mestre da capela para a Sé, dando assim a melhor aplicação daquele
tempo ao seu talento musical: talento completo, porquanto José Maurício não só tocava dois
instrumentos, improvisava
melodias e possuía uma prodigiosa memória acústica, como, dotado de uma
belíssima voz, cantava admiravelmente.866
Ao
chegar em 1808, a família real encontrou na catedral, nas funções de organista, o compositor que
desde 1799 com desvelo se esforçava por propagar o gosto ingênito pela música
entre os seus compatriotas, saindo da aula especial que regia, cantores, instrumentistas e
até compositores. Nomeou-o
o regente inspetor de música da real capela, onde graças à augusta influência,
perfeitamente correspondida, se conseguiram resultados maravilhosos, subindo ainda de
esplendor as funções religiosas da nova capital quando em 1810, chegou de Lisboa Marcos
Portugal,867 acompanhado de
vocalistas e concertistas.
Em 1815 possuía a Capela Real um corpo de 50 cantores,
entre eles magníficos
virtuosi italianos, dos quais alguns famosos castrati, e de 100 executantes excelentes, dirigidos por
dois mestres de capela, avaliando Debret os gastos com esses artistas em
300.000 francos anuais. Também, no dizer dos entendidos, o Miserere de Pergolesi se
cantava no Rio, por ocasião da Semana Santa, com o mesmo encanto que em Roma, na Capela Sistina.
A inclinação musical não era só poderosa no Brasil entre a gente de educação: ela denunciava-se, sem
artifícios nem preparos na característica e espontânea música popular. O que
faltava era apenas escola. Ao próprio padre José Maurício e a outros talentos brasileiros
do gênero foi muito útil,
ao que se afirma,868 o influxo da banda alemã que ficou com a princesa real e ajudou a formar entre
nós o bom gosto e o estilo musicais, determinando a prática inteligente e sábia sem a qual se
extraviam numerosas vocações
profissionais.
Os jesuítas, que tão grandes disciplinadores espirituais e temporais são, tinham fundado na fazenda de
Santa Cruz uma espécie de conservatório de música para ensino dos pretos, onde metodizavam
suas aptidões naturais.
Mesmo depois de expulsos os padres, subsistiu esta tradição, ao ponto de ficar por tal forma
impressionado o príncipe regente, quando visitou aquela propriedade confiscada para a coroa, com
a relativa mes-tria
da execução vocal e instrumental na igrejinha, que estabeleceu na fazenda escolas de primeiras
letras, composição musical, canto e diversos instrumentos.
Logrou destarte Dom João que dali saíssem boas figuras para o pessoal não. só da capela real de
Santa Cruz como da do Rio, e mesmo que alguns dos alunos chegassem a tocar e
cantar primorosamente. Dom Pedro, em quem o gosto pela música foi paixão e paixão cultivada com certo esmero, protegeu muito a
fundação paterna, alcançando, segundo se conta,869 ter óperas, adrede compostas pelos
dois irmãos Portugal, inteiramente executadas por aqueles africanos e mestiços.
Tanto quanto a incomparável musica, abrilhantava as
festas de igreja do
tempo a oratória sagrada, então no seu apogeu no Brasil. Envaidava-se Dom João VI — e assim o repetiu frei
Francisco de Mont Alverne — de contar no Rio uma plêiade de pregadores que não lhe permitia nutrir saudades dos que deixara em Portugal. E com efeito difícil pareceria em extremo, doutro modo, quem, para cantar os louvores da religião e seus protótipos, celebrar as virtudes
evangélicas e exaltar os méritos e serviços da dinastia, possuía em redor de si, para não citar
outras, as vozes eloqüentes
do padre Souza Caldas com seus ressaibos místicos,870 de frei Francisco de São Carlos com suas
galas imaginosas, de frei Francisco de Sampaio com seu verniz acadêmico,871 de Mont Alverne
com seu brilho de forma e sua vibração
mais humana.
Tão soberba exibição de oratória, por mais ortodoxa que
fosse, contribuía muito para que as igrejas representassem uma distração de
sabor quase
profano, a par das festividades da corte e das funções teatrais. Qualquer outra a não conseguiria até
suplantar, visto se exercer a seu apelo sobre toda, não só parte da população, aglomerando-se a
multidão nas naves
estreitas onde a luz sempre mortiça de centenares de velas, se divisavam sobretudo as mulheres de
corpete decotado, cinto e saia meio curta de tule sobre um fundo de seda, todas sem chapéu, com a
mantilha negra, em
vez porém de usada triangularmente na testa, à espanhola, presa por flores no
alto ou parte posterior do penteado que rematava o descomunal pente de tartaruga.
Os viajantes estrangeiros da época notam todos à porfia a pouca dignidade das nossas cerimônias
religiosas; à parte a pompa, o tom era menos de respeito que de folia. O culto ressentia-se do
pouco recato dos eclesiásticos. O clima, a distância dos altos censores
hierárquicos, a relaxação que a existência da escravidão emprestava aos costumes, a ausência de
uma aguda questão
religiosa como a que no século XVI dotara de tanto valor e estimulara tanta virtude entre a combativa
milícia jesuítica, tudo concorria para o desregramento do clero, contra o qual em vão reagia tenazmente o respeitável bispo do Rio,
D. José Caetano de Souza Coutinho, prelado de mérito pela conduta exemplar e pelo zelo
apostólico, e homem de
boas letras, familiar com os clássicos latinos e os bons autores franceses.
Este
e outros perdiam muito o seu tempo, é caso de dizer o seu latim. A libertinagem distinguiria
tanto o clero da Independência quanto o liberalismo. Freycinet refere que muitos dos frades
nédios e bem tratados que ele via de dia metidos nos seus severos hábitos
monásticos, envergavam à noite trajes seculares para saírem à cata de aventuras de amor, e que no
seu aspecto muito
pouca humildade havia em qualquer ocasião, afetando um ar antes marcial que conventual e
primando a altaneria à piedade. Eles eram entretanto um elemento necessário da população
porque, se já não representavam
a fé em toda a sua pureza, ainda representavam a inteligência na sua sugestiva expressão.
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As últimas grandes festas da realeza brasileira foram,
em 1819, as do batizado
da princesa Maria da Glória. Um cortejo vistoso como os anteriores cruzou o mesmo tablado do
largo do Paço entre o palácio e a capela; orquestras em abundância tocaram as mesmas músicas
alegres e vibrantes;
iluminações e fogos de artifício como os outros lançaram os mesmos clarões rubros e jubilosos. Era
a apoteose final. Em 1820 a revolução estalava em Portugal e vencia: uma
revolução que era antibrasileira, assim como fora uma revolução anti-portuguesa a debelada sedição
pernambucana de 1817.
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