Oliveira Lima
COTEGIPE
Celebrou-se em 1915 o centenário do nascimento do Barão de Cotegipe, um dos estadistas de maior nomeada do Brasil imperial e aquele, depois do Rio Branco pai, cujo nome se acha vinculado à extinção do cativeiro, de quem a memória melhor se conserva
entre as classes menos esclarecidas, mercê de funda e geral impressão causada pelo seu vaticínio do desaparecimento do regímen monárquico, motivado pelo modo por que o trono levou a cabo, sem respeito aos interesses conservadores, a grande reforma econômica e social da abolição do elemento servil. Cotegipe foi de íato um homem de Estado dotado de argúcia, de descortino e de previsão, e foi especialmente um diplomata no sentido mais largo da palavra, não no de mero executor com mais ou menos jeito de ordens recebidas, mas no de inspirador de atos e gestos de que se avoca a responsabilidade.
Seu campo de ação foi naturalmente o Rio da Prata, onde nossos interesses são mais diretos, c mais importantes eram então,, quando o Brasil, grande potência comparativamente à porção das chamadas "republiquetas" que o rodeavam, fazia o que costumam fazer todas as grandes potências — desejava conservar essas nações menores numa condição de relativa inferioridade que lhe assegurasse para sempre o primado internacional na América do Sul. Daí a defesa estrénua da soberania do Paraguai e do Uruguai contra as tentativas e pretensões de absorção argentina, fundadas, como é sabido, numa tradição de governo colonial. Se o Brasil, cujo vice-reinado não compreendia o Pará-Maranhão, englobou a Amazônia, não parecia fora de propósito que Buenos Aires continuasse a ser capital de todo o vice-rcinado do Prata, tornado independente.
Não era o amor às pequenas nações que ditava tal proceder. Cotegipe perguntava num dos seus discursos do Senado se seria "uma espécie de cavalheirismo, de donquixotismo político, sus tentarmos o princípio da integridade do Uruguai e do Paraguai?"
E êle próprio respondia que não, "que era o nosso interesse nacional imediato: aqueles Estados são dois pára-choques; impedem o dos dois outros países". Era portanto a preocupação da própria grandeza que não comportava ou antes não suportava a grandeza alheia.
Tiveram afinal as duas grandezas que se harmonizar sob pena de chocarem, do que resultou o estado atual de equilíbrio que não há razão para que se não prolongue indefinidamente, porque cada um dos dois países, Brasil c Argentina, possui um campo vasto de expansão onde se exercerem suas atividades. A Argentina, senhora de si, isto é, dos seus destinos, já não tem motivos para desconfianças e receios, e o Brasil já não dispõe com relação a ela dos mesmos meios eficazes de intervenção e do mesmo eficiente prestígio. Aproximaram-se portanto os dois, e da aproximação proveio logicamente a concórdia. Cotegipe teve porém de arcar com a má vontade aguda anterior a êsse período de aclamação, numa ocasião em que a expansão argentina visou o Chaco paraguaio.
Foi o pior momento das nossas relações, e da habilidade e vigor com que se houve o negociador brasileiro ficou uma impressão duradoura. O momento parecia aliás único para as ambições argentinas: "a República do Paraguai sem elementos de resistência; a do Uruguai enfraquecida pela guerra civil; a Bolívia fraca e alegando os argentinos direitos seus incontestáveis a duas de suas províncias". Com o seu natural cepticismo, consolidado pela longa experiência dos negócios públicos, Cotegipe não se fazia ilusões sobre aquelas ambições, que reputava ingênitas em todos os argentinos.
Eu respondo [dizia êle] àqueles que afirmam que Mitre e seu partido pensam diversamente que são nuances Uns querem ver se conseguem por jeito o que outros pretendem pela força.
Para garantir de algum modo o futuro do Paraguai, incapaz de defender por si sua independência, c que o Visconde do Rio Branco tinha aventado sua neutralização; mesmo para justificar com ela a proibição de poder o Paraguai levantar fortificações à margem do rio, proibição que se pensava tornar extensiva à ilha argentina de Martin Garcia.
Este episódio da vida diplomática de Cotegipe — sua missão ao Prata e ao Paraguai — acha-se tratado com maior desenvolvimento do que qualquer outro na conferência que sobre o estadista do Império pronunciou no Instituto Histórico da Bahia, em sessão comemorativa, seu genro c antigo governador do Estado, Dr. Araújo Pinho. A conferência, redigida em bom estilo acadêmico, pôs em contribuição, muito menos contudo do que seria para desejar, o arquivo particular deixado pelo eminente homem público.
As cartas privadas dão imenso valor a qualquer estudo histórico; não porque elas revelem tudo, mas porque o deixam perceber, e a verdade nelas transparece mais facilmente do que nos papéis oficiais. São, portanto indispensáveis para a compreensão exata de uma época e das suas personagens, contanto, bem entendido, que as utilize o intérprete com o necessário critério. É por isso lastimável que tantos arquivos de homens públicos do Brasil se tenham extraviado sem deles poder o estudioso colher informações interessantes sobre o passado nacional. Joaquim Nabuco não teria podido escrever a excelente biografia paterna, que é antes a história do segundo reinado, se o velho Senador Nabuco não tivesse sido um ótimo arquivista dos seus próprios papéis.
Faltam igualmente a quem quer escrever sobre história no Brasil os subsídios representados pelas "memórias" dos contemporâneos, que tão viva podem tornar a evocação de um dado período e dos seus tipos representativos. Cotegipe, por exemplo, tem que ser localizado nos salões fluminenses de 1850 a 1890, não porque êle houvesse sido um dandy como Maciel Monteiro, mas porque foi um homem de sociedade, e o "mundo" que daí derivou deu-lhe incontestável superioridade sobre a raça de políticos bisonhos e canhestros de que o Brasil é pródigo.
As poucas cartas escritas pelo Barão de Cotegipe, ou por êle recebidas, de que se serviu o^seu biógrafo — se biografia posso chamar a uma conferência — dão-nos a sensação de um aperitivo. Quereríamos poder dispor de toda sua correspondência, surpreender
em postura mais familiar os grandes atores do regímen decaído, e se eu pudesse fazer um pedido ao Sr. Dr. Araújo Pinho seria para que não deixasse dispersar-se um repositório seguramente tão valioso. Seu grande carinho pelo estadista desaparecido deve indicar-lhe que essa figura original de político espirituoso ressaltará fatalmente maior ainda, espraiando-se à vontade, com seus motejos e o seu esprit de repariie, entre as linhas das cartas redigidas no seu estilo tão pessoal na clareza e na concisão.
Diz-se que era um encanto jogar com Cotegipe, tanto êle sabia amenizar a partida com os seus ditos felizes. Todos conhecem sua predileção pelo voltarete c pela manilha, gosto que já foi invocado no Senado Federal para justificação de paixão mais dispendiosa, e menos inocente pelo pôqucr c pelo bacará. É como se embaixadas faustosas, quais as temos tido desde então, invocassem para justificação dos seus gastos os modestos dois contos e quinhentos mil-réis, cobrados pelo Barão de Cotegipe a título de despesas reservadas feitas no decorrer da sua missão ao Rio da Prata e Paraguai, da qual resultou a assinatura em Assunção dos tratados em separado que quase nos levaram à guerra com a Argentina, do que nos salvaram a diplomacia superior daquele barão e a nossa boa estrela.
Parnambim, maio de 1917
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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