Barão de Paranapiacaba

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

TERCEIRA ÉPOCA OU PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO ROMÂNTICA — POESIA (1830-1870)

CAPITULO II – continuação

PRIMEIRA FASE DO ROMANTISMO: O EMANUELISMO DE GONÇALVES DE MAGALHÃES E SEU GRUPO

Veja a entrada para o Barão de Paranapiacaba na Antologia Nacional de Escritores

João Cardoso de Meneses e Sousa, Barão de Paranapiacaba (1827…)65 — É também um mito literário este, ao gosto e pelo jeito do Brasil.

A mitologia literária entre nós segue andar inverso a toda mitologia em geral.

Esta foi sempre uma representação do pensamento primitivo, idealização do passado obscuro e longínquo. Aqui a cousa é diversa; os heróis divinizados são sempre recentes e a canonização dura enquanto o indivíduo existe aí em carne e osso e pode prestar algum favor… Morto o homem, desaparecido o semideus, esvai-se a lenda e lá fica um lugar vazio no altar dos crentes fervorosos e… interessados.

Qual o brasileiro notável falecido a distância de mais de dez ou vinte anos, que seja o objeto de uma veneração especial da parte de nós outros, povo superficial e prodigiosamente ingrato?

Que espécie de glória reservamos nós para Gregório de Matos, Cláudio, Alvarenga, Basílio, Gonzaga, Andrada e outros dessa estatura?

Quem aí guarda e zela a memória de Magalhães, de Macedo, de Varnhagen, de Gonçalves Dias, de Alencar, de João Lisboa e outros ainda ontem incensados?

Onde estão os crentes, onde param eles?

É que o mérito literário, científico, político, todo e qualquer mérito não é aqui a outorga de uma opinião lúcida

e disciplinada, não é uma palma oferecida pela crítica e pela justiça. É um negócio de camarilha, de claque, de conveniências e simpatias de apaniguados. A nação em geral não toma parte nestas cousas; estão fora de sua alçada entre nós.

Só a vivos, disse eu, é concedida a canonização nas letras; mas não é cousa que vá bater à porta dos mais meritórios. O processo é especialíssimo, tem manhas ocultas, que requerem estudo especial. Este assunto constitui um interessante capítulo de psicologia nacional, que não pode ser agora explanado.

Basta-me dizer, por enquanto^ que a fama, o ruído em torno de um nome no Brasil é sempre uma ocupação e empresa de alguns grupos e em certos e determinados casos a política não é estranha ao negócio.

Uma cousa posso também desde já avançar e é esta: o merecimento positivo, obtido por trabalhos sérios e de difícil apreciação, especialmente na esfera científica, esse nunca foi reconhecido e proclamado pelos brasileiros, em se tratando de patrícios seus. Sempre, pelo contrário, é constantemente negado quase a ferro e fogo, se preciso for.

Todos os tropeços imagináveis, todos os obstáculos e óbices são inventados; não há injúria, não há calúnia, que não saia da imensa forja da maledicência. É um horror de fazer enlouquecer. É sempre necessário que do estrangeiro nos mandem dizer: "Não sejais estúpidos: vosso patrício tem razão!" Então, sim; todos curvam a cabeça e abrem as bocas, submissos ao mando da Europa e espantados da existência daquele monstro cá nesta terra de macacos e papagaios!…

Felizes aqueles que logo em vida tiveram o bom quinhão nestas lutas brasileiras. Paranapiacaba é deste número. Para que perturbá-lo em seus idílios de glória? Ele é querido, é proclamado grande homem por um grupo, e é de boa polidez deixá-lo em suas ilusões…

Deram-lhe o título de conselheiro e os brasões de barão por seus serviços às letras…

Limitar-me-ei a enumerar esses serviços.

E ficará feita a crítica e tirado o retrato do ilustre titular.

O conselheiro João Cardoso é de 1827, ano em que nasceram José Bonifácio e Bernardo Guimarães; creio ser desse ano também João Silveira de Sousa.

O primeiro livro de João Cardoso, a Harpa Gemedora, é de 1849; desta mesma data são as Rosas e Goivos de José Bonifácio e as Minhas Canções de Silveira de Sousa. Nesse tempo figuravam também em S. Paulo Aureliano Lessa e Álvares de Azevedo.

Todos eles vão formar a fase especial do romantismo brasileiro presidida por este último.

O Barão de Paranapiacaba figura na fase presidida por Magalhães, por haver afinidades entre eles.

Ao passo que os seus coevos e colegas se entregaram resolutamente ao romantismo e até ao ultra-romantismo o futuro barão teve sempre veleidades clássicas; é hoje ainda, e sempre foi, um espírito tardígrado. Ainda hoje vive no tempo de Garção e Filinto, ainda hoje tem o cheiro da Arcádia Ulissiponense…

Tem-se manifestado como poeta e como publicista. Nesta última qualidade só tem produzido trabalhos de encomenda do governo, em a sua qualidade de empregado público. O barão foi durante anos diretor de uma das secções do Tesouro Nacional. Entre os trabalhos de tal gênero, e que ouso considerar os melhores devidos à sua pena, figura um sobre a colonização estrangeira no Brasil e outro sobre a discriminação de impostos gerais, provinciais e municipais entre nós.

Adiante direi alguma cousa de tais escritos. Por agora ver-se-á o poeta.

O Barão de Paranapiacaba não é, nem foi jamais, um temperamento literário e menos ainda poético.

Os seus livros em prosa, disse, são devidos a incumbências do governo; estão bem longe de ser obras espontâneas, filhas das necessidades fundamentais de um espírito.

Os livros de poesia reduzem-se a quatro.

Dous são as traduções do Jocelyn de Lamartine e das Fábulas de La Fontaine.

Os dous outros são a Harpa Gemedora e a Homenagem a Camões. Este é um pequeno volume de ocasião, sem préstimo quase nenhum, e o primeiro é também de diminuto valor.

Há uma circunstância especial, que deve ser notada para mostrar como a literatura é uma superfetação na índole do nosso titular.

Refiro-me à interrupção enorme que vai do seu primeiro livro de poesias aos seus companheiros recentes.

Da Harpa Gemedora, prosaica até no título, à tradução do Jocelyn, vão 26 anos; dela à Homenagem a Camões vão 31; dela à primeira edição das Fábulas^ 34.

Aquele primeiro e grande intervalo foi preenchido por pequenos artigos de circunstância e leves poesias esparsas.

Entre estas figura A Serra de Paranapiacaba, fonte inspiradora do título de seu baronato.

O poeta deu também o nome a uma rua da capital do império americano…

Compare-se esta vida, só acidentalmente votada às letras, com a atividade de seu contemporâneo — Gonçalves Dias.

Este faleceu aos 41 anos de sua idade, tendo apenas 20 de atividade literária (1843-1863).

Neste curto intervalo deixou pegadas indeléveis na poesia, no teatro, na crítica da história e na etnografia deste país. Um quadro sinóptico de sua vida vem prová-lo irrecusavelmente. Eis os seus livros:

Em 1843 — Patkull, em 1844 — Beatriz de Cenci, 1846 — Primeiros Cantos, 1847 — D. Leonor de Mendonça, 1848 — Segundos Cantos, Os Timbiras, 1849 — Reflexões Sobre Berredo, 1850 — Últimos Cantos, Boabdil, 1852 — O Brasil e a Oceania, 1854 — estudo sobre as Amazonas, sobre o Descobrimento do Brasil, Vocabulário da Língua Geral Usada no Rio Amazonas, 1857 — edição geral e aumentada de todos os Cantos, 1858 — Dicionário da Língua Tupi, 1860 — Relatório da viagem de exploração ao Norte e as últimas composições poéticas.

É este o elenco das publicações de Gonçalves Dias, pelas datas, deixando de parte grande porção de artigos pelos jornais e revistas.

Ninguém foi mais sinceramente um homem de letras nesta terra do que esse pobre mestiço, obscuro e desdenhado, felizmente pouco tempo, porque logo Alexandre Herculano nos mandou dizer — que ele tinha talento, mais talento do que muitos dos nomes já feitos na literatura dos dous países…

O Barão de Paranapiacaba até a morte de Gonçalves Dias era quase obscuro. Sua grande nomeada é uma criação dos conservadores de 1868 em diante.

Tem trabalhos de poeta e de publicista, adiantei eu; na poesia tem produções originais e traduzidas. As originais podem sofrer a divisão em três grupos: a Harpa Gemedora, simbolizando a primeira maneira do poeta, peças soltas, das quais é a mais notável a já referida Serra de Paranapiacaba, individualizando a segunda maneira do cantor paulista, maneira que vem finalmente caracterizar-se na Camoniana Brasileira.57

56. O Conselheiro Joáo Cardoso é filho de Santos em Sáo Paulo.

 

Vejamos tudo isto metodicamente. A Harpa Gemedora é um produto enfezado; são poesias que nada exprimem nem do que se pensou nem do que se sentiu neste país em seu tempo.

Pode-se-bem ajuizá-lo lendo a Imprecação do índio, peça que o ilustre barão achou digna de figurar na grande festa literária celebrada em 1883 no Rio de Janeiro em honra ao Dr. Vicente Quesada, ministro argentino.

É uma longa poesia em versos brancos trotados em monótono diapasão, referindo as queixas de um caboclo a Tupá, por haver sido conquistada sua terra… A tese já naquele tempo (1849) era gasta e toleirona. Há evidente intenção de imitar Gonçalves Dias, cujos Primeiros Cantos, como já disse, corriam mundo desde 1846.

A peça tem 172 versos taludos; ouçam-se apenas os primeiros:

"Tupá, Tupá, por que mudaste em sangue
A cristalina linfa dos regatos?
Por que prostraste com tufões medonhos
Os troncos gigantescos das palmeiras,
A cuja sombra, em leitos de boninas,
Dormíamos em paz tranqüilo sono?
Por que já não branqueia, além, na serra
O
itutinga nas pedras reboando,
E não semeia a viração da tarde
Nuvens de flores sobre
a verde grama?
Em vez do grato aroma das mangueiras,
Que nos traziam zéfiros nas asas,
Mefítico odor de sangue infecto.
Em vez dos hinos do plumoso bando,
Que em doce acorde os ecos despertavam,
O som destas algemas que roxeiam
Pulsos dos filhos da floresta virgem."

Compare-se esta prosaica rima de versos soltos com a Deprecação de Gonçalves Dias, antiga poesia publicada nos Primeiros Cantos sobre a mesma tese:

"Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com o denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!"

e veja-se a distância. Já nem se compare às posteriores poesias americanas do poeta maranhense publicadas nos Últimos Cantos; porque seria injustiça, sabendo-se que a Imprecação do índio é da primeira mocidade do nobre barão.

Não é só nesse gênero exterior de poesias americanas que Paranapiacaba foi um poeta de terceira ordem. Na poesia pessoal é ainda inferior. Sabe-se que o romantismo nesse gênero fez verdadeiras maravilhas. Sua ação no teatro foi notável, no romance imensa, na poesia social e filosófica distinta; mas na poesia subjetiva, pessoal, íntima, no lirismo individualista foi quase inexcedível. Isto em todas as literaturas da Europa e da América. E essa enorme corrente de poesia pessoal e subjetiva vai ser no futuro uma das grandes fontes por onde se há de reconstruir a psicologia do século XIX.

De certo tempo a esta parte começou-se a desdenhar da poesia pessoal em prol de uma poesia mais geral. O argumento principal a favor desta é o seguinte: "Que nos importam a nós as idéias e os sentimentos de cada um, que temos nós com as alegrias e mágoas alheias? Dêem-nos alguma cousa que se refira e interesse a todos, uma poesia geral para toda a sociedade."

Ouso dizer que este argumento é inepto. Primeiramente, toda e qualquer manifestação da psicologia dos indivíduos, máxime dos grandes poetas, nos deve interessar a todos como documentos autênticos de humanos caracteres, como miniaturas em que se vai retratar a vida inteira de uma época.

Aqui o que parece particular é ao contrário verdadeiramente geral. Depois, não é só isto: as produções que se dizem de caráter social, universal, em essência se reduzem a modos de ver e apreciar particulares, individuais de um dado autor sobre a vida coletiva de um dado período histórico.

Aqui o que parece geral não passa veramente de apreciações particulares, individualíssimas. No fundo cai-se na mesma cousa.

A poesia pessoal, portanto, ainda e sempre terá um grandíssimo valor, se uma crítica impertinente não a matar definitivamente.

Pois bem, neste gênero, que se me antolha a pedra de toque do talento dos poetas românticos, o Barão de Paranapiacaba foi demasiado pobre.

Pode sabê-lo com certeza quem ler, por exemplo, as Saudades da Infância. O poeta reporta-se à quadra da meninice, procura em imagem os sítios onde brincara, punge-lhe saudosa a lembrança de sua mãe já falecida. Os sentimentos são puros; os versos é que não são lá mui grande cousa.

Ali lêem-se frases assim:

"Agora o que resta
Ao pobre cantor
Sem gozos na terra,
Imerso na dor?

Se a aurora desdobra
Seu manto de flores,
Se trinam seus hinos
Do bosque os cantores,

Se ruge a tormenta
Da noite no horror,
Se fere os seus olhos
Do raio o fulgor,

Se o pranto roxeia
Seus túrgidos olhos,
Se o peito lhe pungem
Da dor os abrolhos,

Embalde procura
Maternas carícias,
Em vão; que fugiram
Da infância as delícias.

Em vez da harmonia
Da voz maternal,
Escuta somente
Um som sepulcral.

Oh! que sina acerba e crua,
Céus! que tão agro existir!
Asrael, vem com teu sopro
Esta lembrança extinguir."

Bem se vê que isto é fraco.

Se quiserem, comparem-lhe as duas poesias do já citado G. Dias sobre assunto semelhante: Recordação, Recordação e Desejo. São ambas da primeira mocidade do poeta maranhense e apareceram nos Primeiros Cantos.

Se a Harpa Gemedora não é bem garantidora do talento poético do nobre barão, procurem-se seus grandes títulos por outra parte. Entre a Harpa e a Homenagem a Camões ele espalhou poesias por vários jornais e periódicos.

A Serra de Paranapiacaba é uma dessas e é chegada a ocasião de ser lida. É uma poesia enfática escrita em décimas octossílabas e quadras dodecassílabas quase todas erradas sob o ponto de vista do ritmo.

Só toco neste assunto, porque o Barão de Paranapiacaba é ingenuamente apontado como impecável na forma e ele mesmo labora nessa ilusão.

Ainda não sabe que a poesia, no tocante à metrificação, tem de atender a três cousas perfeitamente distintas e indispensáveis para a beleza musical e rítmica da forma, e vêm a ser: l.a o metro em particular, isto é, o verso em si; este deve ser correto, obedecendo a um número determinado de sílabas que deverão ligar-se naturalmente e ser longas ou breves em certos e determinados lugares; 2.a a rima que deverá ser espontânea, fácil e rica; 3.a a estrofação, isto é, a disposição dos versos por dísticos, tercetos, quadras, quintilhas, sextilhas, oitavas, décimas, etc, de modo que as rimas obedeçam a um determinado concerto de graves e agudos, conditio sine qua non da melodia poética.

É a conhecida questão das rimas masculinas e femininas, segundo a expressão da métrica francesa, verdadeiro modelo no gênero.

Na língua portuguesa, por ser pobre de rimas masculinas, não se exige esse rigorismo nos dísticos, nos tercetos e até nas quadras, exceto se estas são em versos demasiado longos, a saber, de 12, 13 e 14 sílabas. Da quintilha em diante, porém, o rigor é indispensável, sob pena de não se fazerem estrofes e sim verdadeiros amontoados de versos sem arte e sem harmonia.

Ora, é justamente o caso de nosso barão nas quadras e décimas da Serra de Paranapiacaba.

Em toda a poesia existem apenas duas quadras que saíram por acaso corretas sob o ponto de vista da estrofação. As duas primeiras condições da métrica são observadas mais ou menos geralmente pelo poeta; a última ele desconhece quase sempre.

Se toco em tal ponto, repito, é por ser este escritor por toda a crítica fluminense, que aliás liga enormíssima importância ao assunto, apontado como corretíssimo na forma.

Respondo-lhe que não há tal; o barão tem muita poesia incorreta e a célebre Serra é uma delas. A poesia é evidentemente imitada do Gigante de Pedra de Gonçalves Dias. O metro é o mesmo em ambas e o tom o mesmíssimo ; ambas começam apostrofando o gigante, que dorme.

No tocante ao metro, apenas Gonçalves Dias não se limitou às quadras dodecassílabas e às décimas octossíla-bas; na divisão IV de sua famosa poesia introduziu quatro estrofes de doze- versos setissílabos. A produção de Gonçalves Dias é corretíssima em todos os gêneros de estrofes em que é escrita, quadras, décimas e duodécimas. A do barão é cem vezes mais fraca em estilo e inspiração e só contém duas quadras certas ocasionalmente.

Aqui fica inserida a decantada poesia, levando grifadas as terminações dos versos errados no tocante às rimas masculinas e femininas:

"Dorme, repousa em teu sono,
Da força assombroso
emblema,
Que tens o oceano por trono
E as nuvens por
diadema!
Imóvel, silenciosa,
Ergues a fronte orgulhosa
Ao sólio da
tempestade;
E os prelúdios da tormenta
Vais ouvir, de medo isenta,
Do espaço na
imensidade.

Salve! soberbo gigante,

Altivo Titão do mar,
Que a teus pés triste descante
Ouves a vaga entoar!
E em teu manto de esmeraldas
Envolves as vastas faldas
E as empinadas cimeiras;
E a brisa te agita os cachos,
E os verdejantes penachos
Da coroa das palmeiras!

Teus troncos gravados do selo dos tempos
Agitam aos ventos as soltas
madeixas,
Quais harpas eólias, sussurram nos ares
Canções magoadas, sentidas
endechas.

És berço do raio!
Sublime harmonia
Entoa em teu seio o trom dos trovões;
E os ecos ao longe repetem em coro
A orquestra tremenda de roucos tufões.

Do raio ao ribombo horrendo
E ao som do trovão que estruge,
De pavor estremecendo
A feroz pantera ruge.
Une-se à orquestra assombrosa —
Uma nota sonorosa —
Que do fundo abismo sai…
Ê o som da catarata,
Que em alvos flocos de prata
Num leito de pedras cai.

Que majestade sublimei
Que pomposa
poesia!
Jeová seu dedo imprime
Neste quadro de
magia.
Esta cascata da serra
Parece um hino que a terra
Espontânea aos céus
eleva.
Então nossa alma se humilha,
E ao ver esta maravilha,
Na glória de Deus se enleva.

Ocultas nas veias,
Ó serra fragosa,
De ouro e de gemas tesouro
infinito,
Retalham teu solo torrentes sem conta,
Que nascem das urnas de rijo
granito.

Povoam-te as selvas e negras gargantas
Inúmeras feras e enormes reptis;
Aí cantam aves que as cores do íris
Desdobram nas asas de vário matiz.

Horríveis despenhadeiros,
Profundos, vertiginosos,
São os degraus altaneiros
De teus tergos majestosos.
Às vezes de horrendo tombo
Se escuta o surdo ribombo
Que ao longe ressoa a espaços…
E despegado rochedo
Que no eriçado fraguedo
Se vai fazendo em pedaços.

Além, que plaino azulado
Se prende no azul dos céus!
É o mar que encapelado
Ergue os móveis escarcéus!
Então a vista desmaia
No espaço que além se espraia
A perder-se no
infinito:
E esse imenso panorama
Do Eterno o nome proclama
Na face da terra
escrito.

Desenham-se às vezes arfando nas ondas
As velas de um barco na brisa
enfunadas;
Qual alva gaivota que a flor do Oceano
Brincando desflora com as asas
nevadas.

Dos topes aéreos, estreitos e golfos
Semelham regatos talhando as
campinas;
Quais pontos esparsos desdobram-se aos olhos
As casas e torres, ilhéus e
colinas.

De teu pico o sol dourado
Se balança a fulgurar;
E o seu clarão desmaiado
Verte a lua sobre o mar.
Outro céu de anil cintila
Na superfície tranqüila
Desse espelho
tremulante:
E embaixo a vaga chorosa
Beija a areia preguiçosa
Morrendo em flor
alvejante.

Quem sabe se o cataclismo
Que puniu a
humanidade,
Não te fez surgir do abismo
Das ondas na
imensidade?
Quem sabe, fragosa serra,
Se és coetânea da terra,
E do berço oriental? Q
uem sabe de quanta vida
Tu foste a extrema guarida
No dilúvio universal?

Plantou-te nos mares o braço divino,
Ingente montanha, barreira das
ondas,
Quem dera perder-me contigo nas nuvens,
Também devassando mistérios que
sondas!

Prodígios que encerras, são cordas sonoras
Duma harpa sublime de maga
harmonia,
Que os hinos que exala, perenes descantam
A glória do Eterno de noite e de
dia."

São dezesseis estrofes enfáticas e erradas todas, exceto duas. O Gigante de Pedra tem vinte e duas estâncias, todas corretíssimas, exceto uma em que o autor dos Timbiras deixou razoavelmente de ser demasiado rigoroso. Convido o leitor a ir verificá-lo nos Últimos Cantos do grande poeta, dispensando-me de citar.

Entre as produções, que se dizem originais, do Barão de Paranapiacaba, tem merecido especiais e fervorosos gabos a decantada Camoniana Brasileira ou Homenagem a Camões no tricentenário de sua morte.

Esta Camoniana Brasileira, disparatada cousa semelhante a uma Homeriana turca, ou a uma Shakespeariana mongólica, mereceu ser o primeiro livro da série de uma nova Biblioteca Escolar, sendo adotada nas aulas primárias, onde deve substituir a leitura dos Lusíadas.

Creio não ser mister juntar mais nada para mostrar qual a desgraçada intuição reinante sobre cousas literárias na mente do Barão de Paranapiacaba e daqueles que o têm protegido…

Ora bem; o livro foi feito para emendar, para polir, para variar e modernizar o poema de Camões…

"Resumi, diz o novo polidor no seu Prólogo, resumi os trechos mais belos do poema, dando-lhes feição moderna e variada metrificação."

Que horror! Um espírito cansado e retrógrado, querendo modernizar um monumento genial, novo, fresco, matinal, como se fora ontem escrito, uma criação que não tem data; porque é contemporânea de todas as fases da cultura humana, como os Lusíadas! Custa em verdade conter a indignação. E há e houve simples que aplaudiram aquilo!…

Modernizar Camões! Em todo o percurso da história da literatura brasileira bem vê o leitor ser a maior ber-nardice em que tem tropeçado… E não foi um homem do tempo da colônia, nem um pobre provinciano, que a realizou…

O livro é acompanhado de notas em que o autor, repetindo desjeitosamente elementares notícias mitológicas lidas por toda a gente em Decharme, Max-Müller, Bréal, Eugênio e Emílio Burnouf, Des Essarts, Renan, Guber-natis e vinte outros elementaríssimos mitólogos, supõe santamente que ele está a lançar no Brasil as bases da mitologia comparada!

Insiste demasiado nas tais notas sobre esta nova empresa e volta à carga em as notas da tradução das Fábulas de La Fontaine de que direi em breve.

Esta tradução faz também parte da Biblioteca Escolar, está adotada e tem custado contos de réis ao governo para ter a glória de impingir aos estudantes um La Fontaine modernizado a par de um Camões também modernizado. Nem se pense que o barão nutre dúvidas sobre os melhoramentos praticados em Camões. É o caso que alguns membros do Conselho de Instrução Pública acharam excelentes as corregidelas passadas aos Lusíadas, estranhando apenas a grande sabedoria das notas.

57. Fdtrulas de La Fontaine, vertidas e anotadas pelo Barão de Paranapiacaba. vol. 1.°, pág. IiXI.

 

O titular lhes respondeu assim: "Constou-me que alguns distintos membros do Conselho de Instrução Pública, ao apreciarem a Camoniana Brasileira, há pouco adotada (sic) pelo Governo Imperial para uso das escolas, entenderam que as notas explicativas dos assuntos mitológicos, contidas naquele opúsculo, estavam acima dos meios de compreensão das crianças. Se esses cavalheiros se referem à linguagem das aludidas notas, observarei que essa é a mais singela e corrente possível, acompanhando o movimento evolutivo do nosso belo idioma e evitando as transposições, os hipérbatons e outras figuras de dicção, que tornam difícil não só a inteligência do texto camoniano, como também a elementar análise gramatical e lógica de certos períodos. Para os tenros cérebros da infância é quase sempre um ecúleo o processo sintático de algumas estâncias dos Lusíadas. Logo na invocação há uma notável amostra de colocação inversa e transposta, estando no fim da segunda oitava, isto é, dezesseis versos abaixo, a oração principal, seguida de multíplices e complicados complementos. Algumas estâncias adiante depara-se a célebre passagem:

— Maravilha fatal da nossa idade:
Dada ao mundo por Deus que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande —

trecho que oferece mais visos de anfiguri do que de corrente período clássico."57

E assim vai por diante nesta série de heresias o ilustre barão.

Parece que estamos a ouvir o padre José Agostinho de Macedo. E tais cousas mandam-se ensinar aos alunos das aulas do Rio de Janeiro. Que idéia formam esses senhores de um monumento literário ou artístico, uma obra-prima do espírito humano? Modernizar os Lusíadas é o mesmo que passar um reboco de salão ou de massapez brasileiro na face da Notre-Dame de Paris, ou da Catedral de Estrasburgo, ou dar uma pintadela de tauá ou tabatinga nacional na Vénus de Milo, ou no Apolo de Belvedere.

58. Camoniana Brasileira, pág. 88.

 

Para bem apreciar as horrorosas mutilações, praticadas nos Lusíadas, é bastante ver como o livrinho fluminense escangalhou as principais passagens do poema. Vejam o Adamastor, a Inês de Castro, a Ilha dos Amores… vejam e pasmem. Notem como, por exemplo, aquele sublime trecho de poesia do Adamastor, aquela narrativa dramatizada e dialogada entre o fero gigante e o Gama, trecho em que ambos falam em primeira pessoa, aparece desfigurado, miseramente informe… Gama narrava sua viagem ao rei Mouro, e referiu-lhe o caso do Adamastor:

"Porém já cinco sóis eram passados", etc.

"Ó potestade, disse, sublimada", etc.

"Não acabava, quando uma figura", etc.

"E disse: ó gente ousada mais que quantas", etc.

"Lhe disse eu: Quem és tu? que esse estupendo", etc.

"Eu sou aquele oculto, e grande Cabo", etc.

Não cairei no disparate de transcrever as vinte e quatro estâncias do episódio do Adamastor, que parecem, pela frescura da linguagem, escritas ontem por algum poeta de gênio, para compará-las às quadras em alexandrinos do nobre barão. O diálogo entre o Gama e o Gigante desaparece; a fala do Adamastor muda-se nisto:

"O monstro futurou torrentes de desgraças,
Vingança e mal, sem conto, aos lusos valorosos;
Predisse a quem passasse os términos vedados
Naufrágios, perdições, castigos horrorosos…"58

Parece incrível; custa a admitir que aparecesse neste tempo uma empresa destas. Duvido que nos Estados Unidos, com todo o seu materialismo, como nós costumamos tolamente dizer, houvesse um simples que se lembrasse de emendar e modernizar Shakespeare. Se o leitor quer uma vez por todas apreciar o gênero de gentilezas dispensadas a Camões no dia do centenário pelo Barão de Paranapiacaba, compare o canto 2.° dos Lusíadas ao canto 2.° da Camoniana Brasileira.

Veja aquelas belas estrofes referentes a Vénus quando vai falar a Júpiter:

"E como ia afrontada do caminho,
Tão formosa no gesto se mostrava… etc.
Os crespos fios d’ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia... etc.

Cum delgado cendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural reparo… etc."
Toda esta poesia do canto 2.° mudou-se nestas doze quadras ásperas e erradas, onde há treze quês e nenhuma beleza:

"Eis presto as Nereidas, surgindo das fumas,
Rodeiam a frota,
que oscila nas águas;
Tritão
que, soberbo, levava Dione,
Da ardente petrina se abrasa nas fráguas.

Encostam as ninfas os peitos nas quilhas

Que, ao mágico impulso, da costa recuam;
A faina referve, restruge a celeuma,
E os Mouros se arrojam nas vagas, que estuam.
Ao céu, que o salvara, dá graças o Gama,
E invoca o socorro da Guarda Divina;
O súplice rogo,
que a turba enternece,
Às plantas de Jove conduz Ericina.

Os paramos fende da abóbada etérea;
Perpassa de estrelas a esfera brilhante;
Penetra, segura, recessos do empíreo,
E surge ante o sólio do grande Tonante.

A face, afrontada do afã do caminho,
De glória e beleza, serena, resplende;
O olhar, em que o força do amor se concentra,
Espaços, estrelas e pólos acende.

Com fina escumilha velando os encantos,
Tal como ante os olhos surgira de Anquises,
Os numes inflama, mostrando, entre sombras,
Dos lírios divinos incertos matizes.

Flutua áurea coma, beijando-lhe o colo:
Andando, estremecem-lhe os seios de neve;
Desejo arrojado se enlaça às colunas,
E sobe a tesouros,
que a mente descreve.

Estala em ciúmes Vulcano irritado;
O peito de Marte transborda delícias;
E mais melindrosa,
que triste, Acidália,
Do pai,
que o estremece, recebe as carícias.

Altera uma sombra de vaga tristeza
O meigo sorriso,
que os lábios lhe enflora;
Semelha seu rosto, banhado de pranto,
Cecém, rociado do aljôfar da aurora.

O pai do universo, beijando-a nos olhos,
Ao peito a conchega, limpando-lhe o pranto;
Prediz-lhe a grandeza futura dos Lusos
— Terror do universo, dos evos espanto. —

Descreve-lhe as quinas, varrendo o oceano,
Que ferve, abrasado de fogo e metralha;
E como em conquistas na face da terra
O luso domínio se firma e se espalha.

O filho de Maia, batendo os talares,
A frota a Melinde dirige, em bonança;
E manda por ondem de Jove supremo,
Que tenha uma trégua tão longa provança."59

Compare-se esta poesia palavrosa e mole com o brilhante e terso laconismo de Camões e ter-se-á perfeita idéia de como foi resumido e modernizado o grande poema português.

Os críticos alemães da escola romântica de Schlegel, Tieck e Novalis, no começo do XIX século, nas suas investigações sobre a poesia das nações européias, colocaram os Lusíadas muito acima da Jerusalém Libertada de Tasso, como manifestação sincera do ideal cavalheiresco e cristão. É uma das mais finas e delicadas provas do espírito crítico dos alemães que eu conheço. A Jerusalém não emprega a mitologia, e os Lusíadas a empregam ; a Jerusalém canta as proezas dos cavaleiros da Idade Média, e os Lusíadas cantam as façanhas de navegadores modernos ; a Jerusalém refere-se a um fato da história do cristianismo, da história da Igreja, por assim dizer, e os Lusíadas referem-se a um fato da história do comércio e da navegação, de um pequeno povo dum canto da Europa! E, todavia, aqueles críticos deram a preferência à obra de Camões sobre a de Tasso, como encarnação do espírito de nobreza e de idealismo, da intuição cavalheiresca e cristã!

Qual a razão? É que no Tasso tão elevados intuitos aparecem no plano exterior do livro e não se mostram n’aima do poeta, alheio àquela ordem de sentimentos; e em Camões, sem esse haver sido o alvo de sua obra, aquela eflorescencia de sentir aparece sincera e espontaneamente; porque tal era a alma do poeta português.

59. Camoniana Brasileira, pág. 27.

 

Que se vai concluir disto? É que a leitura dos Lusíadas não é indispensável nas aulas primárias somente como auxiliar pára o estudo da língua; é antes e acima de tudo um grandíssimo estimulante para o caráter, um saudável tônico para a elevação moral da vontade; é que a substituição de um livro como os Lusíadas por um monstrengo ao jeito da Camoniana Brasileira é um desses fenômenos singulares, só por si suficientes para caracterizarem uma época.

Deixe-se este ingrato assunto e vejam-se os outros serviços prestados pelo Barão de Paranapiacaba às letras brasileiras.

Ainda no terreno da poesia se lhe deve a tradução do pequeno poema de Byron Oscar d’Alva, do Jocelyn de Lamartine e das Fábulas de La Fontaine. Nem de propósito o barão poderia encontrar três poetas de gênios tão dessemelhantes entre si e tão diversos do seu para os traduzir…

Byron, isto é, a velha poesia saxónica comprimida por seis séculos de cultura, irrompendo de repente em ousada rebeldia contra hipocrisias e convenções; Lamartine, isto é, um céptico eivado de doce idealismo, um espírito ondulante, cuja poesia é personalíssima e inseparável da forma que ele lhe deu; La Fontaine, isto é, uma das mais nítidas encarnações do gênio gaulês, todo nutrido de — esprit et gloire, um homem, cuja poesia leve e brejeira é ao mesmo tempo profundamente verdadeira, como manifestação de um caráter nacional, poesia, cujo fundo é ainda mais inseparável de sua primitiva forma do que a de Jocelyn… E foi a esta gente que o Barão de Paranapiacaba tentou traduzir!… Três gênios tão diversos, tão independentes, tão ousados, metidos nas compressas de um espírito curto, pesado, áspero, dispondo de um vocar bulário parco e duma imaginação rasteira!

Em geral sou infenso a traduções de poetas. Trasladados em prosa ficam mortos; vertidos para verso, ficam sempre desfigurados. Uma tradução poética dificilmente dará o desenho da obra traduzida e jamais fornecerá o colorido. As melhores traduções existentes, como a da Ilíada por Voss, a do Fausto por Mare Monnier, são obras de terceira ordem. Não podem jamais reproduzir o ritmo, o tom, a melodia do original.

O Barão de Paranapiacaba deu, por exemplo, o sentido, a tradução das idéias do Jocelyn e das Fábulas; mas a poesia? Evaporou-se.

Para provar não se precisa ir muito longe. É abrir o La Fontaine, logo na primeira página, e 1er a primeira fábula, A Cigarra e a Formiga:

"La cigale, ayant chanté

Tout l’été, Se trouva fort dépourvue Quand la bise fut venue: Pas un seul petit morceau De mouche ou de vermisseau. Elle alla crier famine Chez la fourmi, sa voisine, La priant de lui prêter Quelque grain pour subsister Jusqu’à la saison nouvelle. ‘Je vous paierai, lui dit-elle, Avant l’oût, foi d’animal, Intérêt et principal.’ La fourmi n’est pas prêteuse: C’est lá son moindre défaut.

 Que faisiez-vous au temps chaud? Dit-elle à cette emprunteuse.

 Nuit et jour à tout venant Je chantais, ne vous déplaise.

 Vous chantiez, j’en suis fort aise! Eh bien, dansez maintenant."

É um pequeno pedaço em vinte e dous versos, formando um todo harmonioso, num estilo singelo, num tom popular de encantar a quem conhece bem a língua. A pequena fábula começa rimando os versos dous a dous. De repente, sem mudar o metro, muda o poeta o sistema da rima; tudo sem esforço, sem transição brusca.

Note-se aquela maneira popular que se mostra nas expressões — quand la bise fut venue, elle alla crier famine, avant l’oût, foi d’animal, à tout venant, ne vous déplaise — e outras.

Repare-se como passou tudo isto para a língua portuguesa.

O tradutor começou por distribuir a fábula em quadras, tirando-lhe desde logo a feição plástica; as duas primeiras são suportáveis; seguem-se duas inteiramente más, por alheias quase ao original; as quatro últimas não reproduzem a poesia de La Fontaine na sua suave simplicidade. E, entretanto, é uma das melhores versões de toda a coleção. É esta:

"Havendo a cigarra
Cantado no estio,
Achou-se em apuros
No tempo de frio.

De mosca ou de verme
Não tendo migalha,
Procura a formiga
Rogando que a valha.

cigarra

‘Chegar-se a abastados
É sina dos pobres;
Por isso, amiginha,
Me empreste alguns cobres.

Preciso ir à feira
Comprar cereal,
Com que me alimente
Na quadra hibernai.

Em vindo a colheita,
Eu juro pagar,
Com prêmios e tudo,
O que me emprestar.’

Não gosta a formiga
De dar emprestado;
É nela o defeito
Mais leve, notado.

formiga

‘Nos meses calmosos
Você que fazia?’

cigarra

‘Andava cantando
De noite e de dia.’

formiga

‘Cantava no estio?
Que bela vidinha! A
gora tem fome;
Pois dance, vizinha.’ "

O leitor faça por si o cotejo.

Não me devo despedir do Barão de Paranapiacaba na qualidade de poeta, sem apreciar umas singulares idéias suas, neste assunto, exaradas em carta-prólogo à Musa Latina do Dr. Castro Lopes.

Ele escreve uma carta impertinente sobre o estado atual da poesia no Brasil e em França, defendendo o velho romantismo contra o parnasianismo e o naturalismo. É impossível em tão poucas páginas acumular tantas inexa-tidões e incongruências.

Começa por uma confissão que não é de todo correta: "Admirador e sectário do romantismo, laudator temporis acti, sou, como já o foram muitos outros, excluído da lista desses poetas geniais, ricos de fogo sagrado e cultores irrepreensíveis da forma, que destronaram de sua imortal sede o Arcanjo inspirador da poesia a Chateaubriand, Lamartine e Vítor Hugo, para recolocar no cimo do Parnaso a Musa que acendeu o estro do poeta da Ascra."60

Quanta ilusão e desconcerto!

Por entre as ironias do velho poeta, bem se conhece a alta conta em que ele se tem, e isto seria o menos, se não revelasse também o profundo desconrjècimento em que labora das cousas literárias nos dous :p$ísês que tomou para centro de suas referências. r

Dá-se por estrénuo sectário do romantismo; a verdade é que jamais compreendeu e assimilou bem as doutrinas e a índole desse sistema; a verdade é que jamais passou de um pseudoclássico entre os românticos.

Por que, referindo-se à literatura estrangeira, falou só na francesa? É bem exato que os brasileiros lêem de preferência livros franceses; mas de um mestre tinha-se o direito de esperar indicações lucrativas sobre o movimento da bela literatura na Alemanha, na Inglaterra e na Itália para a boa compreensão das correntes poéticas na segunda metade do século XIX.

O que disse de França está cheio de inúmeras lacunas e desacertos.

De Chateaubriand, Lamartine e Vítor Hugo passou, sem caracterizar os fatos, aos parnasianos, cuja índole desconheceu, e aos naturalistas, cuja crítica fez inexatamente.

60. Musa Latina, pág. II.
61. Musa Latina, pág. XXVI.

Fora mais regular que desse uma noção ampla do romantismo em geral e especialmente naquele país; aqui indicasse as intuições diversas abrigadas no seio do grande sistema e determinadamente suas fases sucessivas até abrir espaço a outras doutrinas. Veria a figura de Staêl e Constant ao lado e em inverso sentido da de Chateau-briand; compreenderia a significação do belo talento de Vigny, saberia que Lamartine e Hugo passaram por mais de uma mutação; veria o lugar de Sainte-Beuve e Sand; encontraria em caminho Dumas, Sue e Balzac e os entenderia; conheceria a posição de Musset; Teófilo Gautier deixaria de ser um enigma; e, assim progressivamente, passaria por de Laprade, por Dumas Filho, por Feydau, Augier, por Sardou e todos os epígonos dos grandes mestres do sistema. Quando chegasse ao momento da dissçlução da velha doutrina compreenderia a poesia mórbida e satânica de Baudelaire, as reações cientificistas de Sully Prudhomme, as ressurreições históricas e etnográficas de Leconte de Lisle, o realismo bruto de Richepin e o mturalismo seleto de Coppée. Compreenderia também o movimento do romance, divisando a significação dos trabalhos de Flaubert, dos Goncourts, de Daudet e de Zola. Saberia que nem todas aquelas tentativas de reforma possuem igual mérito e veria o motivo pelo qual a reforma no romance tem sido mais vigorosa do que na poesia, sem contudo deixar de ser ainda vacilante e desregrada por mais de um lado.

Nestas diferentes escolas há verdadeiras gradações.

É um erro encerrá-las todas no parnasianismo e no naturalismo, como praticou o barão, e ainda maior equívoco é dar uma só cor tanto a um como a outro.

Há vinte maneiras de interpretar o naturalismo e outras tantas de praticar o parnasianismo. O anátema do velho poçta não pode ferir senão algum lado esconso das novas doutrinas.

Quando passa ao Brasil sua exposição é terrivelmente estreita e inexata.

Refere somente três nomes, sem lhes compreender o significado; e a prova é esta: "Admiro Teófilo Dias no Brasil e Castilho e Soares de Passos em Portugal; são dignos êmulos de Bocage e Nicolau Tolentino."61

Singular período este!

Que gênero de ligação achou Paranapiacaba entre Teófilo Dias e Castilho? Que têm eles de peculiar com Bocage e mais ainda com Tolentino?

E a que vem ali Soares de Passos?

São dessas ligações que revelam completa ausência de senso crítico.

O Barão de Paranapiacaba deveria ser mais justo, mais imparcial para com as modernas gerações de poetas brasileiros que têm sido tão gentis para com ele…

O número dos novos poetas é bem crescido; não são três, são três dúzias. Nem todos possuem o mesmo e igual mérito; alguns, porém, são altamente apreciáveis.

Como quer que seja, o Barão de Paranapiacaba não vai bem inspirado em esconjurar as novas tendências em nome de um passado que não volta mais. Deixe suas idéias absolutas; coloque-se no relativo e não queira representar o papel de reacionário. Tudo passa; tudo tem valor bem limitado; o romantismo não desmente a regra geral.

A lei que rege a história brasileira é a mesma que dirige a de qualquer outro povo: a evolução transformista. Por maior que seja a cegueira dos imitadores, a precipitação dos copistas e plagiários, sempre a literatura brasileira não é uma cousa que lhes pertença exclusivamente. Apesar de tudo, um povo é sempre o fator principal de sua vida e de sua literatura.

Podem os políticos ineptos e os escrevinhadores madraços desviá-lo de seu caminho. Cedo ou tarde encontrará a larga estrada de suas tendências naturais.

Ponhamo-nos a par dos iniludíveis e majestosos problemas científicos e literários que se digladiam no Velho Mundo; mas premunamo-nos contra as imitações trapentas, contra as teses charlatanescas, os erros bojudos com pretensões a verdades demonstradas. Sobretudo robusteçamos o nosso senso crítico, e ponhamo-lo em condições de resistir à febre devoradora de inovações inconscientes e banais. Nosso tempo já está desiludido de fórmulas; aprendamos afinal qual o valor delas.

A receita é fácil; fatos e mais fatos, bom senso e mais bom senso.

Como não era ridícula para os espíritos compreensivos a velha teima do letrado nacional, afirmando, obstinada e rancorosamente, com a boca aberta entre pontiagudos colarinhos, o pescoço enrolado no clássico lenço de seda, nos dedos a infalível pitada, as excelências únicas das cantatas

do Garção e das odes do Filinto? Do velho sistema, que foi levado de vencida e hoje alimenta apenas as lucubrações dos tontos decrépitos e desmemoriados, a defesa obstinada quando a lemos nos livros de 1820 a 30 nos provoca o riso…

Dele restam apenas as obras imortais, as obras-primas dos homens de gênio;’as apologias insensatas enjoam-nos.

Mesmíssimo é o caso do romântico, amortecido e embriagado das fumaças de 1830, ainda hoje sonhando com as valquírias, as fadas, as castelãs mediévicas; ainda hoje pálido sonhador à Manfredo ou à Rolla, pobre tolo de comédia, que nos arrebenta de riso… Entretanto, é muito para ver a segurança, a infalibilidade do pontífice do prólogo do Cromwell, esse lastimoso acervo de frases túrgidas e aéreas que não lemos hoje sem um sorriso de ironia.

Da enfatuada escola os programas sesquipedais molestam-nos a mais não poder. Restam-lhe as raras inspirações sérias e profundas; tudo mais esvaeceu-se.

Cada uma destas fórmulas, ao nascer, anunciava a literatura definitiva.

O mesmo temos estado, a presenciar nos últimos trinta anos com a sucessão do romantismo. Não menos de cinco sistemas têm surgido a proclamar a literatura impecável: o satanismo, com as suas cóleras afetadas, suas maldições caricatas, seu pessimismo de almanaque; o parnasianismo, com seus versos escovados, suas descrições de países que não yiu, suas teogonias pantafaçudas, suas orientalidades idiotas, seu tom de um profetismo de nicromante; o cientificismo poético, vacilando entre as triagas descritivas de Júlio Verne e as tafularias psicológicas, de Sully Pru-dhomme e André Lefèvre, cientificismo produtor quase sempre de uma poesia de contrafação, com seus problemas indigestos, suas teses pretensiosas e prosaicas, uma poesia de compêndio em suma; o naturalismo, de escalpelo em punho, farejando pústulas para as romper, ou alvas pernas para as apalpar, para as beijar, com suas verdades e seus exageros, com suas belas pinturas e suas sensações novas, com suas bagatelas, seus erros, seus disparates quando manejado pelos tolos e pedantes, com suas descrições brilhantes, suas análises finas, seu grande sopro de realidade quando arquitetado pelos Daudets e Zolas. Finalmente o simbolismo, com seus nevoentos mistérios.

Por que é que a reforma prosperou no romance, e tem quase sempre abortado na poesia? A natureza íntima das

duas artes, das duas manifestações literárias o explica; o romance é um produto sui generis, que pode vacilar entre a ciência e a fantasia, entre a demonstração de um fato e a improvisação imaginosa; a poesia, ao contrário, tem um terreno especial e seu; quando entra a transformar-se em ciência perde-se na prosa e na vulgaridade.

O romance pode-se dizer um produto recente, quase do XIX século; a poesia é uma filha das eras primitivas, que se vai tornando cada vez mais rara e vendo cada vez mais restrito o seu terreno.

A poesia deve ser sempre a expressão de um estado emocional, subjetivo, íntimo; o romance deve ser o estudo fisiológico dos caracteres sociais.

A poesia é como a música; é vaga e não deve ser submetida às exigências demonstrativas. Eis oor que todos os formuladores de teses, quando passam à experiência, nada fazem de aproveitável; é sempre uma poesia de arrière-pensée,. premeditada, vestida em umas japonas doutrinárias, sem espontaneidade, sem limpidez, sem efusão, sem graça, uma cousa terrível em suma.

Eis por que não nos devemos muito entusiasmar com as cinco soluções que aprendemos recentemente de França.

Se tomarmos a defesa opiniática de semelhantes doutrinas, provisórias como tudo que é obra da evolução humana, correremos o perigo de fazer a figura do velho clássico ou do velho romântico, que ficou atrás pintada.

E, todavia, não julgo extintas na humanidade as fontes da poesia.

As novas intuições que determinaram a nova fase do pensamento humano, podendo dar pasto ao romance e ao drama analíticos, bem poderão aproveitar as sínteses, as largas visualidades, os sentimentos generosos e altruístas, as expansões íntimas, em formular uma poesia viva, enérgica, ampla, entusiasta, uma poesia de todas as grandes emoções que experimentamos na luta gigantesca e terrível da civilização moderna.

Uma poesia sem catecismos retóricos, sem as pequenas receitas que os pretensos reformadores nos têm querido impingir; mas, uma poesia em que se vazem todas as lutas, todas as perplexidades, todas as efusões, todos os desalentos, todas as esperanças, todas as certezas, todas as dúvidas, todas as mutações, em suma, do espírito moderno.

Tenhamo-la também no Brasil.

E o Barão de Paranapiacaba já não é mais apto para no-la dar. Nem atrapalhe aqueles que têm entusiasmo e desejam progredir.

Este último termo leva-me naturalmente a dizer algumas palavras finais sobre o ilustre paulistano. E é na sua qualidade de publicista. Em 1875 o digno escritor publicou, por incumbência governamental, um livro sob o título de Teses Sobre a Colonização do Brasil. É um trabalho interessante, merecedor de atenciosa leitura. Não contém idéias e planos originais; é antes um apanhado de doutrinas aliunde espalhadas.

G livro é metódico e basta ele referir-se a um dos mais importantes problemas da nossa atualidade para despertar o interesse. Parecerá estranho que, tratando agora de poetas, tenha de gastar uma ou mais páginas sobre um assunto tão distanciado, a colonização.

Dous motivos me levam a proceder por forma contrária: em primeiro lugar, segundo o método adotado neste livro, tenho obrigação de dar de uma vez, salvo raríssimas exceções, o perfil inteiro de cada um dos meus heróis, por mais variadas que hajam sido suas manifestações espirituais; depois, desejo que esta obra seja mais uma história da cultura brasileira em sua totalidade, do que uma história literária no velho e acanhado estilo.

Esta dupla consideração justificar-me-á do defeito indicado, se defeito aí existe.

O livro do Barão de Paranapiacaba tem por fim estudar as causas que na segunda metade do século XIX têm determinado um maior movimento imigratório para os Estados Unidos e República Argentina do que para o Brasil. A seu ver, tais causas são as seguintes:

"I — A falta de liberdade de consciência; a não existência do casamento civil como instituição; a imperfeita educação, a ignorância e a imoralidade do clero; a ambição de mando temporal da parte do Episcopado Brasileiro, traduzindo-se na luta impropriamente chamada — Questão religiosa.

"II — A insuficiência do ensino e principalmente a ausência de instrução agrícola e profissional.

"III — O diminuto número de instituições de crédito, especialmente de bancos destinados a auxiliar a pequena lavoura e indústria.

"IV — As restrições e estorvos, que a Legislação e a Pública Administração do Império põem à liberdade de

indústria, peando, em vez de desenvolver, a iniciativa individual.

"V — Os defeitos da lei de locação de serviços e dos contratos de parceria com estrangeiros; as lacunas e a inexecução da lei das terras públicas e a não existência do imposto territorial sobre os terrenos baldios e sem edificação.

"VI — A falta de transporte e de vias de comunicação, que liguem o centro e o interior do Império aos mercados consumidores e exportadores.

"VII — A criação de colônias longe desses mercados e em terreno ingrato e não preparado, bem como a falta de providências para recepção dos imigrantes e colonos nos portos do Império e para seu estabelecimento permanente nas colônias do Estado, ou nos lotes de terras, que compram.

"VIII — A incúria em fazer conhecido o Brasil nos Estados, donde procede a emigração, de que necessitamos, e em refutar, por todos os meios de bem entendida publicidade e por penas hábeis e desinteressadas, os escritos, por meio dos quais naqueles Estados nos deprimem, exageram nossos erros em relação aos emigrantes e nos levantam odiosos aleives."62

Tal o resumo das idéias do ilustre funcionário apresentadas ao governo.

Alguns pontos batem em cheio no âmago da questão; algumas dessas teses são verdadeiras.

Outras, porém, não são evidentemente- causas do efeito que se aponta e se procura remover. A primeira é uma delas.

O livro foi escrito em 1874, ainda no tempo da nossa chamada questão religiosa; o autor, impressionado por ela, elevou a conhecida tolerância e quase indiferença religiosa dos brasileiros a um verdadeiro espírito inquisi-torial e fez disso fantasticamente um grande obstáculo à imigração.

Outras das teses são igualmente mal colocadas, e constituem verdadeiros círculos viciosos, quero dizer, que o autor aponta como causa da falta de imigração fatos que são antes destinados a desaparecer justamente quando tivermos grande população. São cousas que não se podem remover por disposições legislativas, e que só uma popu-

62. Obra citada, pá&. 31.

lação basta poderá afastar. Deste modo, não é porque tais fatos se dão entre nós, que não vem cá a imigração; ao contrário, é porque esta não tem vindo que os fatos se verificam.

Como poderá um país ainda em via de formação, como o Brasil, possuir, por exemplo, as vias de comunicação, as indústrias, as fábricas, as instituições econômicas, as criações de crédito, as fortes e amplas normas de vida governativa, comercial, social, política e em geral todas as grandes maravilhas que fazem o orgulho de velhas nações como a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, a França? Um impossível a olhos vistos.

Só o trabalho lento do tempo é apto a desenvolver as forças latentes de nossa nacionalidade e produzir a evolução normal de nosso progresso.

Um dos maiores e mais nocivos erros, que vivemos todos nós aqui a cometer, é a velha mania da europeulatria, que envolve dous grandes despropósitos, a subserviência em imitar tudo que no Velho Mundo se faz, e a vaidade de querer parecer bem ali.

Não vemos diariamente homens políticos porem-se à frente de propagandas antipatrióticas e nocivas a nosso país, uns só pela mania de imitar, outros só para terem gabos dos círculos estrangeiros existentes aqui, serem falados nos seus jornais e figurarem nas folhas européias? Não admira, pois, que haja quem faça as maiores loucuras para ser notado em França ou na Alemanha ou na Inglaterra ou na Itália…

Ninguém se quer contentar com a parca notoriedade, a pequena fama que a pátria pode dar… É uma nota da psicologia brasileira.

Deste último pecado parece não ser vítima o Barão de Paranapiacaba; mas com certeza sofre do sestro da imitação européia em alta dose. Fora melhor que o seu livro fosse mais diretamente um estudo da vida brasileira do que um apanhado de notas de autores estrangeiros.

O nosso publicista negligenciou alguns dados, muitos dados do seu problema. Não tomou as questões de conveniente altura. De outra forma, teria notado que a simples imitação do que se faz na Europa não é sempre o nosso mais acertado caminho, teria visto que temos ações a praticar, providências a levar por diante que são o inverso do que se pratica em qualquer outra parte.

Sob o ponto de vista da colonização, verbi gratia, a teima em comparar nossas condições com as dos Estados Unidos e República Argentina, as duas grandes nações americanas que recebem imigrantes, a referida teima é um horrendo absurdo.

Os Estados Unidos são um país de clima quase uniforme, com exceção do território comparativamente pequeno do extremo Sul às margens do Golfo mexicano. Possuía já uma população enérgica, apta a assimilar a de seus parentes alemães, quando estes começaram a afluir para ali. E estes espalhavam-se por toda a extensão do território, não indo acantoar-se num ponto, como se tem feito no Brasil. A nova população formou-se e cresceu, sem mudar de aspecto. Todos são americanos e falam inglês. É singularíssimo este fato: apesar dos muitos milhões de imigrantes entrados na república, não haver um só distrito, por pequeno que seja, donde a língua inglesa tenha desaparecido e o americano seja considerado estrangeiro. É o que não acontece no Brasil.

A República Argentina é também inteiramente dessemelhante do nosso país. É um território muito menor, muito mais igual pelo clima e mais unido geograficamente. A colonização espalha-se e é facilmente assimilada. E, quando acontecer que o não seja, os argentinos saberão pôr-lhe óbices, como praticaram os americanos com os chins.

No Brasil nada se tem feito com plano e sob a direção de idéias justas e científicas.

Começou-se por desacreditar o clima de todo o Norte e declarar aptas para a colonização somente as quatro províncias do extremo Sul.

Ficam possessos os fautores desse erro quando se lhes fala em espalhar os colonos por todo o país. É que isto seria matar-lhes o plano de criar no Sul uma população diversa da do resto do território, população que dentro de cinqüenta ou sessenta anos dê o grito da rebelião separatista desmantelando assim aquela famosa peça de arquitetura politica de que falava o grande Andrada.

São notórios os argumentos terroristas dessa gente contra quem não lhes facilita os planos. Conhecedores da vaidade nacional, que nos leva a todos à ambição de passarmos por adiantados, lançam em rosto aos adversários o espantalho de nativistas e atrasados!. .. Diante da força probante de tais razões curvam-se todos. Entretanto, ainda é tempo de dizer a verdade.

Há hoje três sistemas sobre a colonização do Brasil por estrangeiros: a) o dos imobilistas intransigentes que nada querem fazer por este lado; 6) o dos políticos interesseiros que aspiram pela transformação completa dos quatro Estados do Sul, e c) o da colonização integral e progressiva. Este último é o meu sistema.

Noutro lugar deste livro, tratando das lutas de brasileiros e portugueses em 1822, a propósito do V. de São Leopoldo, discuti rapidamente o fato da colonização incompleta, aqui praticada pelos descobridores, e avancei algumas desconfianças sobre o futuro da raça portuguesa neste país, se não for convenientemente encaminhado o problema do moderno povoamento com elementos estrangeiros.

Nesta questão, minhas idéias resumem-se nas seguintes teses, oferecidas em estilo aforístico para serem bem compreendidas:

l.a — A antiga colonização do Brasil pelos portugueses foi lacunosa, especialmente no alto Norte e grande Oeste do país;

2.a — Mesmo no Sul e Leste sua influência tende a diminuir, ali pela introdução de fortes elementos estranhos, e cá pela superabundância dos mestiços de sangue índio e africano;

3.a — O meio de formar no Brasil uma nação forte é atrair a colonização estrangeira por modo diverso do que tem sido até agora praticado;

4.a — Deve-se acabar com o sistema de cuidar só do Sul, deixando o Norte e o Centro em completo esquecimento ;

5.a — É preciso acabar uma vez por todas com o descrédito que ttetultamente foi lançado sobre o clima do Norte e do Oeste do país, reconhecendo que em todo o vasto planalto brasileiro há zonas perfeitamente apropriadas à colonização européia;

6.a — Não faço distinção entre europeus do Norte ou do Sul para a imigração brasileira; todos são perfeitamente aptos, com a condição de misturarem-se e espalharem-se por todo o país;

7.a — Este sistema de colonização integral do Brasil, assimilando os elementos estrangeiros, máxime portugue-

ses, é previdente e patriótico, sem ser por forma alguma hostil aos europeus;

8.a — Muito pelo contrário, é contar sempre e sempre com eles para a organização e engrandecimento de nossa pátria;

9.a — Não se devem, porém, desprezar os elementos nacionais, que podem ser aproveitados para a colonização geral.

É esta a suma das minhas idéias. Não há aí exagerado nativismo… Acendrado patriotismo é que nelas palpita. Negá-lo? Só o poderão fazer os rábulas da politiquice…

Da leitura do livro do Barão de Paranapiacaba bem se deduz não ser ele deste número, e o digo em honra sua.

 

Veja a entrada para o Barão de Paranapiacaba na Antologia Nacional de Escritores

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