Breve Reflexão Sobre a Trajetória Intelectual de Johannes Kepler E AS FUNDAÇÕES DA ASTRONOMIA MODERNA

 

 

Breve
Reflexão Sobre a TrajetÓria Intelectual de Johannes Kepler E AS FUNDAÇÕES DA
ASTRONOMIA MODERNA.

 

Alessandro Arlindo de Oliveira Assunção[1]

 

“Com sinceridade
confesso que quanto mais contemplo a devida ordem, visto que uma resulta da
outra e se reduz, é como se eu tivesse lido uma passagem celestial não escrita
em letras significativas, mas com as coisas essenciais neste mundo que me
dizem: Aplique seu raciocínio aqui para compreender essas coisas”.

Johannes Kepler

 

 

RESUMO

 

O astrônomo e matemático alemão Johannes
Kepler é notoriamente conhecido por elaborar as três leis dos movimentos
planetários que revolucionaram toda uma cosmologia que vigorou desde
aproximadamente o século II aos Seiscentos. Kepler, num período envolto em
conflitos religiosos entre católicos e protestantes, lançou as bases da
astronomia moderna interpretando os fenômenos celestes a partir de causas
físicas. Advogou ao longo de sua vida a favor do heliocentrismo de Nicolau
Copérnico em oposição ao geocentrismo aristotélico-ptolomaico. Partindo destes
pressupostos, este trabalho pretende fazer uma breve reflexão sobre a trajetória
intelectual de Johannes Kepler e as fundações da astronomia moderna.

 

Palavras-Chave: Cosmologia.
Geocentrismo. Heliocentrismo. Astronomia. Física. Conflitos Religiosos.
Católicos. Protestantes. Kepler.

 

 

 

Introdução

 

 

Algo
que sempre intrigou a humanidade, desde as civilizações mais antigas, foi o
movimento dos corpos celestes. A observação dos astros no firmamento levou à
formação de diversas tradições e crenças. A idéia da Terra como o centro imóvel
do cosmo perpassou durante muito tempo, da Antiguidade Clássica ocidental até o
Renascimento.

Na
História da Ciência poucos personagens foram tão intrigantes quanto Johannes
Kepler (1571-1630). Luterano convicto viveu a transição do século XVI para o
XVII em uma Europa imersa em conflitos religiosos e políticos. Sua vida pessoal
foi marcada por uma série de infortúnios como, por exemplo, a perseguição de
sua mãe pelos tribunais do Santo Ofício. Se hoje a Astronomia difunde a idéia
de que os planetas desenvolvem uma órbita elíptica e seguem leis físicas em sua
jornada cósmica devemos considerar imprescindíveis as Leis dos Movimentos
Planetários formuladas por Kepler.

Este
estudo pretende fazer uma breve reflexão sobre a trajetória intelectual de Johannes
Kepler e as fundações da astronomia moderna por meio das percepções de James A.
Connor. Escritor norte-americano, ex-padre jesuíta, doutor em Teologia,
Literatura e Ciência. É autor da obra “A Bruxa de Kepler”: a descoberta da
ordem cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas
e o julgamento por heresia de sua mãe. Amparamos-nos também em Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. Brasileiro, doutor em Astronomia, diretor aposentado do
Observatório Nacional, fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST).
Mourão é autor do livro “Kepler”: a descoberta das leis do
movimento planetário. O interesse na obra de Connor se deu por se tratar de uma
das poucas obras estrangeiras dedicadas à vida de Johannes que foram traduzidas
para o português. Quanto a Mourão o que nos levou a perscrutar sua obra é que
ela se trata da primeira biografia escrita por um pesquisador brasileiro sobre
a vida de Kepler. Investigando como Connor e Mourão perceberam Kepler, tentaremos
conduzir o leitor aos meandros da atmosfera intelectual do século XVII, no
concernente à inovação da cosmologia da época, e, trazer à tona proposições que
revolucionaram toda uma visão de mundo substanciando um conjunto de conhecimentos
válidos até os dias de hoje.

 

 

1 Situando Kepler no ambiente intelectual de
seu tempo

 

 

A
noção da Terra vagando numa ciranda espacial denominada sistema solar pode
parecer para nós do século XXI algo descomplicado. Mas, esta idéia que
apresenta nosso planeta, na imensidão do Universo, girando em torno do Sol
percorreu um longo caminho até se estabelecer. Conhecer as principais
concepções acerca do Universo, presentes no século XVII, é indispensável para
seguirmos na aventura de tentar compreender as percepções de James A. Connor e
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão sobre a trajetória intelectual de Kepler. No
item que se segue, com o auxilio dos referidos intelectuais e de físicos,
historiadores da ciência e filósofos, buscaremos revisitar tais concepções.

 

 

1.1 Universo
dominante

 

 

No
século de Kepler a idéia em relação ao cosmo que preponderava era do sistema
geocêntrico[2]
de Ptolomeu[3],
no qual a Terra ocupava o centro do mundo[4].
Esta idéia, que orientava muitos homens do ocidente europeu, desde o século II,
era sustentada por axiomas da física clássica apresentada pelo filósofo grego
Aristóteles.

Aristóteles também estava seguindo uma
longa tradição estabelecida pelos pré-socráticos: de que tudo que é pesado cai,
e o que é leve sobe, assim como o ar, a água e a terra misturados numa jarra de
vidro acabam se aquietando com a terra no fundo, o ar por cima de tudo e a água
no meio. Coisas pesadas se separam das leves, coisas molhadas se separam das
secas, coisas quentes, das frias, e coisas claras das escuras. Portanto, disse
Aristóteles, a terra tem de estar no centro do universo, pois, como qualquer um
pode ver, a terra é pesada e o ar, que se estende em direção ao céu é leve
(CONNOR, 2005, p. 76).

 

Paulo
Abrantes, físico e estudioso de história da ciência, aponta que na cosmologia
aristotélica o Universo dividia-se em duas regiões: a região celeste e a região
sublunar, localizada abaixo da órbita da Lua (1998, p. 38). “No mundo sublunar
estão representados os lugares naturais dos quatro elementos: terra, água, ar e
fogo. Após a esfera da lua estão as esferas dos planetas, incluindo o sol. O
mundo é limitado pela esfera das estrelas fixas” (Ibid., p. 33). Podemos
perceber que a finitude do cosmo é uma característica latente na concepção
aristotélica, destacando-se ainda o aspecto imutável da esfera das estrelas
fixas, ou seja, além do mundo ser limitado a esta região, esta não estava
sujeita a mudanças.

A
idéia aristotélica, interpretada e difundida por Ptolomeu, apresentava
características que podiam ser percebidas tanto por eruditos como por leigos.
Ainda hoje falamos em nascer e pôr-do-sol, e, esta idéia é estabelecida a
partir da nossa observação, na experiência cotidiana, em relação ao movimento
que o astro faz no firmamento. E é esta questão observacional um dos alicerces
que sustentavam o sistema geocêntrico, visto que o Universo
aristotélico-ptolomaico contemplava muitos fenômenos observados no céu. A
imobilidade da Terra e, como aponta James A. Connor, a idéia de que o Universo
todo girava em torno dela, parecia algo lógico e natural para os seguidores de
Ptolomeu. Atribuir movimento a terra não parecia uma idéia sensata para
aqueles que entendiam o seu peso e a leveza dos ares. Outro ponto que
fortalecia a idéia geocêntrica está relacionado à teologia, visto que tal
idéia, ao localizar a Terra no centro do Universo, reforçava o cânone da
Cristandade que colocava o homem, imagem e semelhança de Deus, vivendo em um
lugar privilegiado da criação divina. A cosmologia aristotélico-ptolomaica
contemplava em vários aspectos o cosmo bíblico do Gênese. Ademais, para os
cristãos o lugar onde o filho de Deus havia nascido, vivido, morrido e
ascendido ao Pai, era especial. No entanto, embora o cristianismo atribuísse
este sentido para a Terra, Connor aponta que este não era o pensamento
aristotélico em relação a ela.

Aristóteles jamais pensou na Terra
como um lugar especial ou a menina dos olhos de alguém. A Terra ocupava a
posição mais baixa no cosmo, onde tudo que era caótico e tudo que era
corruptível no fim se assentava. O mundo sob a esfera da Lua era a privada do
universo, onde os seres vivos nasciam e depois morriam, onde mais cedo ou mais
tarde toda a vida retornava para apodrecer (2005, p. 74).

 

Todavia,
ainda que a cosmologia aristotélica em sua essência se diferisse da idéia
cristã, a teoria geocêntrica era resguardada pela tradição e pelas autoridades
oficiais. O geocentrismo se apoiava na experiência cotidiana, contudo, o
sistema de Ptolomeu não era a única voz que buscava explicar o mundo na época
de Kepler, e as vozes discordantes do sistema geocêntrico queixavam-se a fim de
demonstrar suas falhas.

Na época de Kepler, havia pelo menos
quatro modelos distintos do universo pairando na atmosfera intelectual […]
Primeiro, havia o cosmo oficial, o universo finito, geocêntrico de Aristóteles
e Ptolomeu, reiterado por São Tomas de Aquino. Depois, havia o cosmo infinito
de Nicholas de Cusa, com Deus no eterno e onipresente centro. Terceiro, havia o
universo “heliostático” de Copérnico, no qual os planetas, inclusive a Terra,
giravam em torno do Sol, que estava fixo no lugar. E, finalmente, havia o
modelo ressuscitado por Tycho Brahe, primeiro discutido por Heracleides
Ponticus, aluno de Platão, no qual o Sol girava em torno da Terra e os planetas
giravam em torno do Sol (CONNOR, 2005, p. 73).

 

 

 

 

 

Figura 1 – Representação do
Geocentrismo.

Fonte: The Space Site.
Acesso em: 29 jun. 2009.

 

 

1.2 Nicolau de
Cusa e o Universo infinito

 

 

No
final do medievo a idéia geocêntrica fora confrontada pelo cardeal alemão Nicolau
de Cusa (1401-1464). Segundo, os filósofos Etienne Gilson e Philotheus Boehner
(2000), estudiosos da história do pensamento cristão, Nicolau de Cusa estudou
em Deventer, Heidelberg e Pádua, e, inicialmente se interessou pela ciência do
direito e pelas ciências naturais, dedicando-se posteriormente de forma
integral à teologia. Ele denotava uma personalidade contemplativa, e preferia o
recolhimento aos conflitos políticos, tendo por objetivos a conciliação e a paz
na Igreja. Dentre suas obras destaca-se De Docta Ignoratia, de 1440, que
trata, sobretudo da inexatidão do conhecimento humano. Esta obra de Nicolau de
Cusa divide-se em três livros, sendo que nossa atenção se volta ao segundo
livro que discorre sobre o Universo, e que, paradoxalmente à personalidade
conciliatória do autor, confrontava o sistema geocêntrico.

Conforme
aponta Boehner e Gilson, para Cusa o Universo, ou totalidade, é parte da
multiplicidade da unidade absoluta [Deus], onde o Universo não se caracteriza
numa unidade “à maneira de Deus”, mas, como parte derivada Dele, ademais, para
o cardeal não poderia existir um ponto fixo e imóvel no centro do mundo, nem
tampouco ser a Terra o centro dele (2000, p. 561). Além disso, segundo ele a
esfera das estrelas fixas não poderia ser o limite do Universo, e, suas idéias
davam características à Terra como um astro entre outros astros. É importante
salientar que Cusa deslocava o Sol para o centro do cosmo atribuindo
características “místicas” a ele, onde todo o Universo estava em movimento e o centro
do mundo possuía um centro “metafísico”, sendo este centro o poder infinito de
Deus.

 

 

1.3 Copérnico e
a idéia do Sol no Centro do Universo

 

O
polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), que tanto inspirou as teorias
posteriormente formuladas por Kepler, estudara matemática e astronomia com
Domenico Maria de Novara, um dos grandes críticos do sistema geocêntrico de
Ptolomeu. Novara se baseava no pensamento dos antigos pitagóricos para levantar
a hipótese do Sol no centro do Universo, e, a Terra na qualidade de um planeta
como os outros. As idéias de Novara exerceram grande influência no pensamento
de Copérnico que passou a estudar os aspectos problemáticos da teoria
geocêntrica de Ptolomeu e a dedicar-se à hipótese de um sistema heliocêntrico[5]. Não obstante,
Daniel J. Boorstin[6]
indica que Copérnico elaborou a sua teoria acerca do heliocentrismo como uma
atividade secundária, e, o que o levou a publicar sua obra fora o entusiasmo de
amigos e seguidores. Ele ainda aponta que Copérnico tinha consciência que seu
sistema parecia violar o senso comum, no entanto, seus amigos insistiam que
após a publicação de seus comentários sua teoria “revelar-se-ia admirável e
aceitável” (1989, p. 276). A princípio as idéias fundamentais da teoria de
Copérnico foram divulgadas apenas entre seus amigos por meio de um manuscrito
intitulado De Hypothesibus Motuum Coelestium a se Constitutis
Commentariolus,
Comentários sobre as Hipóteses Acerca dos Movimentos
Celestes. Posteriormente com a publicação da obra De
Revolutionibus Orbium
Coelestium,
Das Revoluções das Esferas
Celestes, as idéias de Copérnico apareciam sistematizadas descrevendo
todos os orbes, inclusive a Terra, girando em torno do Sol. A hipótese de
Copérnico demonstrava similitude com as propostas de Nicolau de Cusa sobre a
centralidade do Sol, mas diferia em alguns aspectos como, por exemplo, o fato
do Sol estar fixo no sistema copernicano. Porém, o aspecto de veneração em
relação ao “Astro-Rei” se conservara em sua obra como podemos perceber no
fragmento a seguir:

No meio de todos encontra-se o Sol.
Ora, quem haveria de colocar neste templo, belo entre os mais belos, um tal
luzeiro, em qualquer outro lugar melhor do que aquele de onde ele pode alumiar
todas as coisas ao mesmo tempo? Na verdade não sem razão, foi ele chamado o
farol do mundo, por uns, e, por outros, a sua mente, chegando alguns a
chamar-lhe o seu governador. Trimegisto apelidou-o de deus visível, e Sófocles,
em Electra, de vigia universal. Realmente o Sol está como que sentado
num trono real, governando a sua família de astros que giram à volta dele
(COPÉRNICO apud BRAGA et al., 2004, p. 73).

 

É
valido salientar que Copérnico, assim como tantos outros eruditos da virada do
século XV ao XVI, fora afetado com o advento das grandes navegações. A expansão
ultramarina redimensionou a visão de mundo na Europa. Os registros dos
navegadores sobre novos locais e a descoberta de novas rotas marítimas
revelaram a esfericidade da Terra, e, a idéia de que a terra e a água estavam
separadas em duas esferas distintas foi interpelada, abrindo margem a novos
questionamentos sobre o Universo (SOARES, 1999, p. 135).

O
modelo proposto por Nicolau Copérnico apresentou sentenças que se distanciavam
dos axiomas da física aristotélica e isso gerou dúvidas em relação ao sistema
heliocêntrico proposto pelo polonês. Em contraposição à idéia aristotélica de
que o centro do mundo coincidia com o centro da Terra, e este atraía os corpos
pesados, Copérnico sugeriu que a Terra era apenas o centro de sua própria
“gravidade”. Ocorre que este conceito de “gravidade” esperaria algum tempo até
se definir mais precisamente, e, à sua época Copérnico não conseguiu
estabelecer com clareza o motivo da queda dos corpos, era difícil aceitar uma
nova física sem se remeter a física aristotélica que justificava diversos
fenômenos. As primeiras reações adversas ao sistema heliocêntrico não tiveram
apenas conotações religiosas, como se pode imaginar, mas estavam relacionadas à
fragilidade dos aspectos físicos propostos neste novo modelo, que a princípio
não demonstrava atributos superiores ao geocentrismo. Segundo Boorstin,
Copérnico não tinha a intenção de criar um novo paradigma de física, seu modelo
consistia basicamente em uma Terra móvel que deixava de estar no centro do
mundo, muitas características do sistema ptolomaico foram conservadas no
sistema copernicano. Copérnico não debate sobre a questão de o universo ser
finito, e, conserva em seu modelo a idéia das esferas celestes presentes no
sistema ptolomaico, mas, sem defender se estas são reais ou imaginárias, se são
instrumentos geométricos, ou se são cápsulas espessas compostas de material
etéreo, como era proposto por Aristóteles. Contudo, o sistema copernicano
trazia, além da centralidade do Sol e da mobilidade da Terra, outros aspectos
de objeção ao sistema geocêntrico.

Copérnico finalizou o Commentariolus
com a afirmação de que os movimentos circulares que explicavam a estrutura do
universo não ultrapassavam 34 círculos, o que representava uma considerável
redução em relação aos 80 círculos do sistema desenvolvido por Ptolomeu no
século II (SOARES, 1999, p. 149-150).

 

É
impreterível comentar que Copérnico concordava com a idéia da esfericidade do
cosmo, onde a perfeição divina era associada à concepção do Universo como uma
esfera, onde os corpos celestes desenvolviam movimentos circulares perfeitos.
Ele explicita esta visão em sua obra como demonstra o fragmento a seguir:

Compete-nos notar desde o início que o
Universo é esférico ou por que seja esta forma mais perfeita de todas, um todo
inteiro sem qualquer junção das partes; ou porque ela própria seja a mais capaz
das figuras e maximamente conveniente para encerrar e conservar todas as
coisas; ou até porque as partes mais perfeitas do Universo, isto é, o Sol, a
Lua e as estrelas, se apresentam com essa forma e porque todo o Universo tende
a ser por ela delimitado. E isto mesmo se vê nas gotas
de água e nos outros corpos líquidos quando revestem a sua forma natural. Pelo
que ninguém deverá hesitar em atribuir tal forma aos corpos celestes (COPÉRNICO
apud SOARES, 1999, p. 152).

 

Dentre
as objeções de Copérnico, em detrimento ao sistema geocêntrico, havia a questão
relacionada ao calendário utilizado em sua época. Boorstin anota que tal
calendário era resultado da reforma romana, que fora recorrida do calendário
solar egípcio, desde o ano 45 a.C., que introduziu o sistema de três anos de
365 dias, seguido por um ano bissexto de 366 dias. Ocorre que tal medida dos
dias ocasionava um atraso de cerca de onze segundos em relação ao ciclo efetivo
percorrido pelo Sol, o que, com o passar do tempo, resultara numa
desarticulação do calendário e as estações do ano, prejudicando as atividades
de agricultores e mercadores, e, nesse sentido Copérnico atribuía às falhas do
calendário à sua ligação com a teoria geocêntrica.

A
princípio o modelo de Copérnico foi admitido pelas autoridades eclesiásticas da
época. Segundo o historiador Luiz Carlos Soares (1999), as idéias copernicanas
foram bem recebidas pelo papa Clemente VII e por outros membros importantes da
Igreja como, por exemplo, o arcebispo de Cápua, o Cardeal Nicolau Schönberg,
que chegou a se corresponder com ele, em novembro de 1536, para oferecer que
suas teorias fossem publicadas com o patrocínio da Igreja. Soares ainda aponta
que Schönberg demonstrou entusiasmo para que a teoria copernicana fosse
encaminhada ao representante da cúria de Roma, Dietrich Von Reder, para
preparar a publicação do livro que ensinaria uma nova cosmologia, onde a Terra
se movia e o Sol o ocupava “o ponto mais inferior e, por isso, central do
Universo” (1999, p. 138). Soares anota que havia “uma série de crenças dos
humanistas italianos que rejeitavam a estrutura hierárquica do universo
ptolomaico e aristotélico, que atribuía uma posição ‘baixa’ à Terra estática e
central” (Ibid., p. 134). Ainda que posteriormente o livro de Copérnico viesse
a ser proibido pela Igreja, não havia muitos religiosos durante o século XVI
que condenassem as proposições do sistema heliocêntrico, sendo que as primeiras
reações contrárias ao trabalho dele vieram dos protestantes, sobretudo do
teólogo e reformador alemão Martinho Lutero.

[…] o teólogo e reformador alemão
Martinho Lutero (1483-1546) foi quem se opôs às idéias de Copérnico. Afirmava
que elas contrariavam as Escrituras, em especial o Velho Testamento, no relato
segundo o qual Josué, empenhado em conquistar o território dos filisteus,
conseguiu deter o Sol no céu para que a batalha não fosse interrompida. Ora,
argumentava Lutero, se o Sol parou no céu, é porque girava ao redor da terra
(MOURÃO, 2003, p. 66).

 

Para
os protestantes o sistema heliocêntrico era contrário à Bíblia Sagrada, valendo
destacar que o prefácio constante na obra De Revolutionibus Orbium Coelestium¸ fora forjado pelo teólogo luterano Andreas
Osiander, para difundir a teoria de Copérnico apenas como uma hipótese para
facilitar os cálculos e que não se tratava de uma verdade sobre o cosmo (BRAGA et al., 2004, p. 76). Como aponta Boorstin, foi Kepler quem identificou que este
prefácio era apócrifo e como veremos no decorrer deste trabalho lançou-se a
defender as idéias de Nicolau Copérnico como um novo modelo astronômico.

 

Figura 2 – Desenho de Copérnico ao lado da representação do
Heliocentrismo proposto por ele.

Fonte: Copernicus Group IBR. Acesso em: 29 jun. 2009.

1.4 Tycho Brahe
e a mutabilidade da região celeste

 

 

O
dinamarquês Tycho Brahe (1456-1601) foi contemporâneo de Johannes Kepler, e,
contribuiu substancialmente para seu trabalho, como veremos ao perquirir as
obras de Connor e Mourão, entretanto, por ora nos ateremos a alguns aspectos
identificados por Brahe acerca do Universo em suas observações.

Dentre
as várias observações de Tycho Brahe ele testemunhou, e vale destacar que a
olho nu, um acontecimento no firmamento que alteraria profundamente os parâmetros
da cosmologia aristotélico-ptolomaica. A primeira observação de destaque do
dinamarquês foi o nascimento de uma nova estrela na constelação da Cassiopéia,
em 1572, que pode ser contemplado nos céus da Europa devido ao grande brilho
até o inicio do ano de 1574 (SOARES, 1999, p. 174). Como aponta Mourão, a
descoberta na constelação da Cassiopéia demonstrou o céu mutável, em oposição à
crença aristotélica que limitava a “corrupção cósmica” à esfera sublunar. Como
vimos anteriormente, a teoria geocêntrica defendia a idéia de que na esfera das
estrelas fixas não poderia ocorrer mudanças, e, as observações de Brahe
desmontavam esse pensamento. Não obstante, apesar de suas observações
contrariarem o sistema geocêntrico, em relação à imutabilidade da região celeste,
Tycho Brahe, que tinha formação protestante, e absorvera na Universidade
Luterana de Copenhaga doses da teoria aristotélica, iniciando-se no sistema
ptolomaico do firmamento, defendia a idéia de imobilidade da Terra. Como aponta
Boorstin, ele não abandonou a crença de uma Terra imóvel e pesada no centro do
Universo, conforme demonstrava as escrituras sagradas, no Livro de Josué onde
ele dizia que o Sol havia parado no céu. Em síntese o sistema proposto por
Tycho Brahe agregava elementos das teorias de Copérnico e de Ptolomeu, onde a
Terra permanecia estática, com o Sol girando em torno dela, e os outros
planetas seguiam girando à volta do Sol.

 

 

Figura 3 – Representação do sistema de Tycho Brahe.

Fonte:
Center of Astrophysics and Space Sciences. Acesso em: 29 jun. 2009.

 

 

2 Kepler
em busca da harmonia cósmica nas dissonantes concepções de mundo

 

 

Um
homem pertinaz, cuja vida fora marcada por uma série de intempéries, brindara o
mundo com teorias fascinantes e ao mesmo tempo perturbadoras para a sua época.
Em busca de uma ordem cósmica Johannes Kepler presenciou o caos de uma Europa
imersa em conflitos religiosos e intrigas políticas. Em meio a esta desafinada
sinfonia mundana, Kepler, determinado em desvendar a mente de Deus, perquiriu
os céus em busca de uma harmonia no cosmo, revelando as leis do movimento
planetário. Procuraremos neste momento de nossas reflexões investigarmos, por meio
das percepções de Connor e Mourão, a trajetória intelectual do homem que buscou
causas físicas para os fenômenos celestes.

2.1 O
horóscopo de Kepler e os vestígios de sua vida familiar

 

 

Quando
ouvimos falar em horóscopo no século XXI logo vem desdenhosamente ao nosso
pensamento as colunas de astrologia presentes nos diversos jornais que circulam
em nosso país, entretanto, algumas considerações precisam ser feitas em relação
à astrologia na época de Kepler. Em sua obra Connor acautela o leitor de que a
astrologia era reconhecida como ciência no século XVII, e, no decorrer deste
trabalho veremos que ela servia para elucidar acontecimentos do cotidiano
seiscentista. Porém, não é sobre isso que trataremos por ora. O que nos
interessa sobre astrologia, neste momento, é apenas comentar que uma das
grandes fontes biográficas sobre Johannes Kepler é o seu horóscopo, escrito por
ele próprio em 1597, aos vinte seis anos de idade, e que, como aponta Mourão,
trata-se de um considerável documento “rico e complexo” sobre a ancestralidade
de Johannes (2003, p. 23). Connor defende que, “o horóscopo de Kepler e suas
memórias são os únicos vestígios da sua juventude e vida familiar” (2005, p.
39).

Em
1520 o avô de Kepler, Sebaldus, emigrou de Nuremberg, para Weil, na Suábia,
onde fora peleteiro e dono de um campo de repolhos. Sebald Kepler, pai de
Sebaldus, era filho de Kaspar Von Kepler, membro da corte de Worms no século
XV, que aparece como filho de Friedrich, cavaleiro armado, em 1433, do Sacro
Imperador Romano-Germânico Sigismund. Como podemos perceber a família de Kepler
possuía uma ascendência nobre. Sobre seu avô Johannes escreveu o seguinte em
seu horóscopo:

Meu avô, Sebaldus, foi um burgo mestre da
imperial cidade de Weil, onde nasceu em 1521, por volta do dia de São Tiago.
Com cerca de 75 anos de idade, além de altivo, vestia-se orgulhosamente. Muito
irritável e obstinado, seu retrato era de um homem de passado boêmio, com rosto
vermelho e carnudo. Sua barba lhe dava um aspecto autoritário. Apesar da sua
ignorância, foi um notável orador. A partir do ano de 1578, começou a sua
decadência, social e econômica (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 25).

 

Kepler
descreveu sua avó, Katharine Müller, como sendo “inquieta, hábil e mentirosa,
no entanto, muito dedicada à religião” (apud MOURÃO, 2003, p. 25). O pai de
Kepler, Heinrich, que fora o quarto filho de Sebaldus, se casou, em 15 de maio
de 1571, com Katherine[7]
Guldenmann, ambos com vinte e quatro anos de idade (MOURÃO, 2003). A mãe de
Kepler era filha de um estalajadeiro, enquanto o seu pai era um mercenário de
guerra. Sobre Heinrich Kepler registrou o seguinte:

O quarto, Heinrich, meu pai, nasceu em 19 de
janeiro de 1547. Homem pecaminoso, inflexível, briguento, estava destinado a um
péssimo fim. Vênus e Marte aumentavam-lhe a maldade. O declínio da maior
aproximação de Júpiter fê-lo estudar a ciência da artilharia. Teve numerosos
inimigos, um casamento de conflitos. Tinha pouco amor às honras e uma vã
esperança nelas. Foi um errante… Em 1577, correu o risco de ser enforcado.
Vendeu a casa e começou a trabalhar com uma taverna. Em 1578, a explosão de um jarro de pólvora dilacerou o rosto de meu pai… Em 1589, tratou muito mal
minha mãe. Acabou exilando-se e logo morreu (apud MOURÃO, 2003, p. 25-26).

 

Os
detalhes presentes no horóscopo de Kepler sobre ele e sua família são
abundantes, e, como ressalta Mourão, é raro que um historiador tenha disponível
tal material. Segundo o horóscopo, Kepler fora concebido em 16 de maio de 1571,
às 4h37 e nasceu no dia 27 de novembro às 14h30, na cidade de Weil, e, fora
batizado em homenagem ao santo do dia, o apóstolo João [em alemão Johannes] Evangelista. Kepler nasceu prematuro e era uma criança doente e raquítica,
e, aos quatro anos de idade sua mãe o deixou aos cuidados de seus avós por um
ano, para acompanhar o marido nas guerras.

O
quadro que Kepler pintou em seu horóscopo é sombrio e carrega um tom
melancólico denotando a tristeza de um jovem a respeito de sua família. A
infância de Johannes não parece ter sido feliz, mas como ele mesmo escreveu em
seu horóscopo pode ser somente “uma questão de opinião”.

Mercúrio na sétima casa significa pressa e
aversão ao trabalho, porque ele é também rápido; o Sol na sexta casa de Saturno
significa conscientização e perseverança. Essas duas coisas entram em conflito:
lamentar continuamente o tempo perdido, ao mesmo tempo que ainda está disposto
a perdê-lo vezes seguidas. Visto que Mercúrio afeta a tendência às brincadeiras
e à alegria, esta pessoa aprecia o espírito das coisas mais leves. Quando
criança, ele se dedicava a brincar; mais velho se divertia com outras coisas e
por isso voltou-se para elas; descobrir o que faz uma pessoa feliz, por tanto,
continua sendo uma questão de opinião (KEPLER apud CONNOR, 2005, p. 46).

 

 

2.2 A educação
protestante de Kepler e o contato com as idéias de Nicolau Copérnico

 

 

Apesar
de Kepler ter sido batizado em uma igreja Católica, foi educado como um
protestante, visto que sua família era luterana, e fora a primeira a se
converter em Weil. Em 1576, a família de Kepler mudou-se para Leonberg, cidade
do ducado de Württemberg, que havia criado um avançado sistema educacional
objetivando capacitar pastores luteranos para fazer frente às querelas religiosas
que se apresentavam à época. As universidades luteranas deveriam se constituir
em lócus intelectuais em defesa do protestantismo. Kepler iniciou os estudos em
Leonberg no ano de 1578, onde os cursos eram ministrados em alemão, e, seu
professor, percebendo o potencial do aluno, o encaminhou a uma escola latina
(Mourão, 2003). Connor revela que os professores da escola alemã convenceram a
mãe de Johannes a mandá-lo para a escola de latim onde ele poderia se tornar um
pastor luterano. O curso de latim deveria durar três anos, mas, demorou cinco
anos para ser concluído, visto que Heinrich, com pouco dinheiro devido ao fracasso
de uma hospedaria que montara, obrigava Kepler a trabalhar em uma fazenda ao
invés de freqüentar as aulas.

O estudo do latim em parte significava
estudar os clássicos: Catão, Trechos das cartas de Cícero e as comédias de
Terêncio. Todos os dias havia horas dedicadas às orações e ao estudo do
catecismo luterano. Aos domingos Kepler ia à igreja com seus colegas de turma e
cantava no coro. No terceiro e no quarto ano, os alunos escolhidos pelos
professores como prováveis candidatos estudavam para o Landesexamen, uma
espécie de teste padronizado em Stuttgart. Iam não só com boas notas, mas também com cartas de recomendação tanto do seu pastor como do seu mestre-escola,
falando das suas boas qualidades na escrita e na erudição, do seu alto grau de
inteligência e seu brilhante caráter cristão (CONNOR, 2005, p. 52).

 

Kepler
foi aprovado no Landesexamen com boas notas, o que garantiu seu lugar no
sistema de bolsas do duque de Württemberg, sendo garantindo até o fim de seus
dias escolares subsídios para a manutenção de seus estudos, como alimentação e
roupas, desde que demonstrasse bom comportamento e não manifestasse crenças
“teologicamente suspeitas” (CONNOR, 2005). Na universidade
de Tübingen, Kepler tivera contato com diversos textos de Aristóteles. Gostava
das aulas de filosofia aristotélica e das lições de grego e hebreu, sendo que a
matéria que ele mais demonstrava interesse era a matemática. Além disso, havia
ainda a personalidade de seu professor, Mästlin, um dos astrônomos mais
célebres de sua época, que o fascinava (MOURÃO, 2003). Embora Mästlin, que
escrevera uma das obras de maior referência nas universidades à época, o livro Epitome
Astronomie
, descrevesse o sistema de mundo conforme Ptolomeu, em suas aulas
Mästlin ensinava a seus melhores alunos outra visão de mundo, a do astrônomo
polonês Nicolau Copérnico. Segundo Mourão, Kepler ao avaliar as vantagens
matemáticas do heliocentrismo fez publicar suas idéias a favor de Copérnico.

Em
Tübingen, enquanto ouvia atento as aulas do famoso Magister Michael Mästlin, vi
como havia se tornado inconveniente de muitos modos a noção costumeira da
estrutura do universo. Fiquei encantado, portanto, com Copérnico, a quem
Mästlin mencionava muitas vezes em suas conversas, e eu não só freqüentemente
promovia as suas idéias em debates dos estudantes, mas também escrevia uma
cuidadosa discussão concernente à tese de que o primeiro movimento [a revolução
da esfera de estrelas fixas] vem da rotação da Terra. Também me pus a trabalhar
atribuindo à Terra, com base na física, ou talvez na metafísica, o movimento do
Sol cruzando o céu, assim como Copérnico havia feito com base na matemática.
Com essa finalidade, reuni pedacinho por pedacinho – em parte das aulas de
Mästlin e em parte das minhas próprias idéias – todas as vantagens matemáticas
que Copérnico tem sobre Ptolomeu (KEPLER apud CONNOR, 2005, p. 72-73).

 

 

 

2.3 Kepler como
matemático provincial e professor em Graz

 

 

Quando
estava prestes a concluir o seminário e se tornar um pastor luterano, Kepler
recebeu uma proposta para assumir o posto de matemático provincial e professor em Graz. Segundo Connor, as defesas públicas de Kepler em relação ao copernicanismo eram
desconfortáveis para ortodoxia teológica da universidade de Tübingen. Ademais,
além de Kepler defender o sistema de mundo que era tão criticado por Lutero,
ele demonstrava concordância com as idéias do calvinismo[8] em relação à
doutrina da ubiqüidade[9],
e, a indicação dele para Graz tivera a intenção de afastá-lo de Tübingen.

Mourão
anota que Kepler chegou a Graz no dia 11 de abril de 1594, e, na condição de
matemático provincial, tinha a obrigação de preparar a publicação de calendários
com previsões astrológicas. Segundo Connor, a afeição de Kepler em relação à
astrologia seguia o apego de Philipp Melanchthon, principal colaborador de
Martinho Lutero na Reforma[10], e, um dos fundadores da educação luterana. Embora Lutero
defendesse que a astronomia[11]
deveria ficar separada da teologia, visto que somente as Escrituras Sagradas
revelavam os desígnios de Deus, Melanchthon advogava que os céus também
revelavam a vontade do Criador.

Para Melanchthon, ao contrário de
Lutero, a ordem dos céus revelava a mente de Deus, tanto como criador como Pai
da raça humana. Os movimentos do sol e da lua, das estrelas, dos planetas, eram
usados para regular as ações humanas, descrevendo as épocas para plantar e
colher, comprar e vender, e descansar. Ao ordenar as vidas humanas, Deus revela
a verdade – essa ordem é de Deus e esse Caos é do Maligno. Aqueles que ficam do
lado dos anjos sustentam a ordem de Deus na terra da forma como ela é revelada
nos céus. O movimento imponente das esferas celestiais, portanto, torna-se um
modelo para a moral humana (CONNOR, 2005, p. 55).

 

Segundo
Connor, muitos cristãos do século XVII, como Melanchthon, defendiam a concepção
de que Deus revelava o futuro nos céus e que as estrelas se tratavam de janelas
para a mente do Criador, não obstante, eram janelas incompletas e qualquer
tentativa de prever algum acontecimento detalhado do futuro tratava-se de
superstição. Mourão aponta que Kepler percebia a astrologia de forma paradoxal,
ora manifestando a credulidade presente em seu século, ora expressando
criticidade. Connor anota que a astrologia para Kepler poderia fazer previsões
futuras, mas, ele se preocupava em estar alimentando superstições. Predizer
confiantemente qualquer acontecimento específico não era algo certo para
Kepler.

De que modo o aspecto do céu determina
o caráter do homem ao nascer? Age no indivíduo durante a vida da mesma maneira
que os laços que o camponês coloca, ao acaso, ao redor das abóboras do campo:
não impedem que as abóboras cresçam, mas determina-lhes as formas. O mesmo se
pode dizer do céu: não dá ao homem hábitos, história, ventura, filhos, riqueza
nem esposa, mas modela a condição (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 188-189).

 

Conforme
aponta Connor, os reis e imperadores desejavam que a astrologia lançasse uma
luz sobre o futuro, e, em Graz Kepler fizera algumas predições astrológicas que
se confirmaram, dentre elas, um rigoroso inverno e um ataque de tropas turcas,
o que acabou lhe tornando célebre na cidade da Estíria. Contudo, a popularidade
de Kepler como astrólogo não era refletida em seu ofício de professor. Segundo
Mourão, apesar da popularidade como mathematicus provincial, Kepler
não atraía muitos estudantes para suas aulas. Não obstante, em meio ao marasmo
de uma aula, Johannes desenhou uma figura geométrica no quadro negro que lhe
deu a idéia de associar o sistema copernicano à geometria.

No quadro negro, uma figura mostrava
um triângulo com um circulo circunscrito. Notou que a proporção entre o raio do
círculo maior (circulo que envolvia o triângulo) e o do menor (círculo
envolvido pelo triângulo) parecia semelhante àquela existente entre as órbitas
de Saturno e de Júpiter. Logo tentou determinar uma segunda distância: entre
Marte e Júpiter, com o auxilio de um quadrado. Em seguida, uma terceira, com a
ajuda de um pentágono, e finalmente uma quarta com auxílio de um hexágono.
Essas tentativas não deram certo, e Kepler se perguntou: “por que usar figuras
planas (bidimensionais) entre os orbes sólidos (tridimensionais)?” (MOURÃO,
2003, p. 42).

 

Segundo
Mourão, Kepler buscou para solucionar os problemas gerados pelos polígonos
regulares, cinco poliedros, ou sólidos, tridimensionais regulares: o tetraedro,
ou pirâmide, constituído por quatro triângulos eqüiláteros; o cubo, ou
hexaedro, composto por seis quadrados; o octaedro, ou bipirâmide, composto por
oito triângulos eqüiláteros; o dodecaedro, formado por doze pentágonos; e o icosaedro,
constituído por vinte triângulos eqüiláteros. Mourão (2003, p. 43) anota que
“estes cinco sólidos regulares são em geral denominados sólidos pitagóricos ou
platônicos, com referência aos geômetras e filósofos gregos Pitágoras (séc. VI
a.C.) e Platão (428 – c.347 a.C.)”. Connor, que cita em sua obra os cinco
poliedros apenas como sólidos platônicos, anota que estas cinco figuras se
constituíam em um mistério para a matemática, denotando certo misticismo.

Platão associou esses sólidos aos átomos da
natureza, os blocos de construção para tudo. Nisso ele seguiu o filósofo
anterior a ele, Empédocles: fogo para o tetraedro, terra para o cubo, ar para o
octaedro e água para o icosaedro. O dodecaedro ele associou ao elemento cosmo,
a matéria de que são feitas as estrelas e os planetas. Seguindo Platão, Kepler
pensou ter encontrado outro lugar onde os sólidos apareciam e, visto que Deus
nada cria sem um plano, ele acreditou ter descoberto um meio de calcular as
distâncias entre os planetas de modo a priori, isto é, antes de ocorrer
qualquer observação. Os planetas não se encontravam a essas distâncias por
acaso; estavam ali por que Deus quis (CONNOR, 2005, p. 92-93).

 

De
acordo com Mourão, Kepler entendeu que a associação entre os cinco sólidos
regulares e os intervalos existentes entre os planetas não era um mero acaso,
e, passou a compreender a indicação à Graz como uma dádiva de Deus, onde ele
revelaria aos homens a harmonia do mundo, o “mistério cosmográfico”.

Após
as revelações que tivera, associando os sólidos platônicos e as órbitas dos
planetas, Kepler iniciou a redação de sua primeira obra, Mysterium
Cosmographicum
, ou Mistério Cosmográfico. Mourão anota que desde 1543,
quando foi publicado o livro de Copérnico, onde fora exposta a teoria
heliocêntrica, houve um período de cinqüenta anos até alguém voltar a advogar a
favor do copernicanismo, e, somente com a publicação da primeira obra de Kepler
isto ocorreu.

Nessa obra, Kepler propôs nada mais do que
estabelecer definitivamente a superioridade do Sistema copernicano sobre todos
os outros, mostrando que este era o único sistema capaz de se ajustar aos
arquétipos que Deus havia usado para colocar em ordem o Universo: os cinco
poliedros regulares da Geometria, que segundo Kepler estariam associados aos
seis planetas (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno) (MOURÃO, 2003,
p. 45).

 

Segundo
Connor, antes da publicação do Mysterium Cosmographicum Kepler se
comunicou com Mästlin para explicar como ocorria o movimento dos planetas. Ele advogava
a idéia de que havia no Sol uma anima movens[12], um
espírito de movimento, cuja força do movimento, rigor movens,
enfraquecia à medida que os planetas se distanciavam do astro. Mästlin demonstrou
certa cautela em relação à idéia de um espírito de movimento, ou uma força proveniente
do Sol. Seu receio era em relação a um possível estreitamento entre física e
astronomia. Vale destacar que o entrelaçamento entre astronomia e física preponderou
nos estudos de Kepler. Conforme anota Mourão a astronomia, desde Ptolomeu,
tratava-se de uma mera cosmografia descritiva do firmamento, com o intuito de
mapear as estrelas e promover a elaboração de tabelas com os horários e
posições dos corpos celestes. A idéia de uma força de movimento proveniente do
Sol preocupava Mästlin, pois, a física até então não era empregada além da região
sublunar. A resposta de Kepler ao receio de Mästlin denotou um aspecto
metafísico em relação ao Sol, e, em certa medida, nos remete à veneração
presente nas obras de Nicolau de Cusa e Copérnico. Em uma carta a Mästlin Kepler
escreveu:

De todos os corpos do universo o mais
excelente é o sol […] cuja essência no seu todo nada mais é do que a luz mais
pura. Não há estrela maior do que ele; sozinho é o produtor, conservador e
aquecedor de todas as coisas. É a fonte de luz, rica em calor fértil, muito
claro, límpido e puro à visão. É a origem da visão retratista de todas as
cores, embora em si mesmo privado de cor (apud CONNOR, 2005, p. 105).

 

Embora
Mästlin tivesse algumas preocupações em relação às proposições presentes no Mysterium
Cosmographicum
, ele foi um dos grandes colaboradores para a sua
publicação. Segundo Mourão, Mästlin decidiu incluir no livro de Kepler uma
reedição da Narratio Prima, ou Primeira Narrativa, que se tratava de uma
síntese elucidativa sobre o sistema heliocêntrico copernicano publicada em
1540, pelo astrônomo Georg Joachin Rheticus (1514-1576), antes da publicação do
De Revolutionibus
Orbium Coelestium
. Vale ressaltar que Rheticus, assim como Kepler,
era luterano, e, um dos poucos a defender o heliocentrismo entre os seguidores
de Lutero. Mourão aponta que a religiosidade de Kepler era intensa e não
bastava para ele verificar a organização do mundo empiricamente, era preciso justificá-la
teoricamente e teologicamente. Kepler defendia a idéia de que Deus havia criado
o Universo segundo uma ordem geométrica e ele estava seguro de que havia
realmente desvendado o mistério cósmico em seu modelo poliédrico do mundo.

É assombroso, embora não tivesse ainda
uma idéia clara da ordem em que deviam ser dispostos os sólidos perfeitos,
logrei êxito… em dispô-los tão felizmente que, mais tarde, ao verificar tudo,
nada tive que alterar. Não lamentei mais o tempo perdido; não me senti cansado;
não fugi a nenhum cálculo, por mais difícil que fosse. Dia e noite passeios em
cálculo para verificar se a minha afirmação condizia com as órbitas
copernicanas, ou se o meu júbilo seria levado pelos ventos… Ao cabo de alguns
dias tudo caiu no devido lugar. Vi um sólido simétrico depois de outro se
adaptar tão precisamente entre órbitas adequadas, que se um camponês me perguntar
a que espécies de gancho estão presos os céus, para não caírem, ser-me-á fácil
responder-lhes: a Deus! (KEPLER apud MOURÃO, 2003, p. 48).

 

Connor
aponta que muitos homens, como o professor de teologia da Universidade de
Tübingen, Matthias Hafenreffer, aconselharam Kepler a defender suas idéias apenas
como hipótese e não como realidade, mas, para Kepler era a vontade de Deus que
fosse desvendado o plano da criação, e, o Mysterium Cosmographicum tratava-se
de um “mapa” para isto. Mourão destaca que, apesar dos conselhos dos superiores
da Universidade de Tübingen, Kepler expôs na introdução de seu livro “a
primeira e mais lúcida profissão de fé publicada por um astrônomo sobre as
idéias de Copérnico” (2003, p. 50). Contudo, Connor ressalta que a teoria geometral
de Kepler era bastante especulativa, e, embora ele acreditasse ter descoberto a
forma geométrica do Universo, ele não conseguia demonstrá-la efetivamente. Segundo
Mourão, na tentativa de criar um objeto capaz de demonstrar seu modelo de mundo,
Kepler, quando esteve em Württemberg, antes de publicar seu livro, se envolveu
no projeto de construção de uma espécie de “taça” onde fosse representado o seu
sistema cosmológico. O projeto, que era financiado pelo Duque Frederico I,
patrono dos estudos de Kepler desde sua aprovação no Landesexamen, se
transformou num globo, mas após dois anos o modelo se revelou muito dispendioso
e foi abandonado.

Mourão
revela que em meio ao agitado período de divulgação do Mysterium
Cosmographicum
, Kepler se casaria com Bárbara Müller, uma jovem de apenas 20
anos[13]
que já acumulava duas viuvezes. Segundo Connor, o pai de Bárbara, o rico
moleiro Jobst Müller de Gössendorf, não concordava com o casamento a princípio,
pois, apesar da origem nobre e da notoriedade de Kepler o salário como
professor não era o bastante para satisfazer as expectativas de Jobst. Depois
de muita negociação foi acertado o casamento entre Kepler e Bárbara. Mourão
anota que o casamento ocorreu em 27 de abril de 1597, e, segundo o horóscopo
elaborado por Kepler sob um “coelo calmitoso”, céu de calamidades.
Kepler escreveu: “As estrelas anunciaram um casamento mais agradável do que
feliz, no qual existiria mais ou menos amor e dignidade” (apud MOURÃO, 2003, p.
59). Um dos receios de Kepler, que ainda almejava retornar à Suábia para se
tornar pastor luterano, era de ficar preso à Graz devido aos negócios da
família de sua esposa. Contudo, reviravoltas ocasionadas por conflitos entre
protestantes e católicos, levariam Kepler e sua família a deixar Graz. Mourão
anota que os últimos dois anos do século XVI foram muito difíceis para Kepler,
pois, além de ter perdido dois filhos, presenciara o arquiduque Fernando de
Habsburgo, posteriormente Imperador Fernando II, perseguir os protestantes
estabelecendo a Contra-reforma[14]
na cidade da Estíria.

Conforme
anota Mourão, a repercussão da primeira obra de Kepler foi frágil, visto que além
de Pádua, onde vivia Galileu[15],
não ultrapassou as fronteiras germânicas. As opiniões acerca do Mysterium
Cosmographicum
eram divididas, onde havia os que aceitavam as suas
conclusões e os que absorveram somente a idéia geometral poliédrica, como era o
caso do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. Tanto Brahe como Galileu se
corresponderam com Kepler. Connor aponta que Galileu escrevera a Kepler
elogiando seu copernicanismo, e, manifestando em sigilo que era admirador da
idéia heliocêntrica. Já Tycho Brahe escreveu convidando-o para ir visitá-lo em Praga. Segundo Mourão, Brahe aconselhava Kepler a se dedicar às observações e depois
estudá-las, abandonando a sua idéia de calcular a órbita dos planetas a
priori
. Apesar de manter fixa a sua opinião em relação ao cálculo à priori,
Kepler, em virtude da experiência observacional de Tycho, voltou suas
esperanças ao dinamarquês para aprimorar o sistema exposto em sua obra. A
partir do contato com Brahe, Kepler formularia as teorias que lhe deram
notoriedade na história da ciência moderna: as três leis do movimento
planetário. Kepler escreveu a Mästlin:

Calemo-nos e escutemos Tycho Brahe,
que dedicou às observações trinta e cinco anos… Somente por Tycho Brahe é
quem espero; ele me explicará a ordem e a disposição das órbitas… Espero,
então, um dia, se Deus me der vida, erguer um admirável edifício (apud MOURÃO,
2003, p. 72).

 

Figura 4 – Taça de
Kepler

Fonte: Connexions. Acesso em: 29 jun.
2009.

Figura 5 – Ilustração de Kepler ao lado do globo que representava o sistema
de mundo proposto na obra Mysterium Cosmographicum

Fonte: ETSU. Acesso em: 29 jun. 2009.

 

 

2.4 Kepler enuncia
as duas primeiras leis do movimento planetário

 

 

Quando deixou Graz a intenção de Kepler não era se estabelecer em Praga. Primeiramente, tentou manter sua cátedra na cidade governada pelo arquiduque
Fernando de Habsburgo, mas não obteve sucesso, visto
que não renegaria seu luteranismo para permanecer na cidade da Estíria. Recorreu
então a Maestlin, que nada pôde fazer em relação seu desejo de obter um posto em Württemberg. Kepler estava sem esperanças, e, a ida à Praga era a sua última opção. No último
ano do século XVI ele se encontrou em Praga com Tycho Brahe, recentemente
nomeado matemático imperial desta cidade da Boêmia. A relação entre os dois astrônomos,
apesar de ter sido fundamental para a formulação de novas teorias sobre o Universo,
foi bastante rixosa. Ocorre que na época da divulgação do Mysterium
Cosmograficum
, a fim de partilhar suas idéias com todos que se dedicavam à
astronomia, Kepler se correspondeu com Nicolau R. Baer Ursus, então matemático
imperial de Praga, exaltando-o como o maior matemático de seu tempo. Ursus, que
não respondera à carta de Kepler, reproduziu a referida correspondência na obra
Nicolai Raimari Ursi Dithmarsi de astronomices hypothesis, Hipótese
astronômica de Nicolau Reymars Ursus de Ditmar, de 1597, onde, além de reclamar
a propriedade do sistema proposto por Tycho Brahe, ofendia-o violentamente. Contudo,
Tycho resolveu perdoar o incidente do elogio a Ursus, pois, desejava obter a
colaboração de Kepler. Não obstante, a discórdia ente os dois se manifestou outras
vezes como, por exemplo, no episódio em que Tycho Brahe ficou ressentido quando tomou conhecimento de um texto redigido por Kepler, em
que ele reclamava das condições em seu castelo. Segundo Mourão, Kepler desejava
maior privacidade para ele e sua família “longe do barulho e da desordem
reinante” na propriedade de Tycho, referindo-se as festas promovidas pelo
matemático imperial de Praga. Neste texto Kepler ainda reclamava do salário e
da falta de tempo para realizar suas pesquisas. Apesar das várias desavenças,
os interesses recíprocos levaram a conciliação destes dois astrônomos de
temperamentos ásperos. Mourão anota que para Brahe, Kepler era o único astrônomo
capaz de dar consistência às suas observações, e por outro lado, como já vimos,
Kepler necessitava das observações de Tycho para edificar suas teorias.

Segundo Connor, Tycho Brahe se esforçou para garantir um posto
para Kepler na corte imperial de Praga. O imperador Rudolf II[16]
conhecia a fama de Kepler como astrólogo e estava disposto a aceitar qualquer
pedido de Tycho Brahe em relação à permanência de Johannes em Praga. Kepler foi apresentado ao imperador que o designou como colaborador de Tycho na
elaboração de um livro com novas tabelas astronômicas, que, a pedido de Brahe,
se intitularia Tabulae Rudolphinae, Tabelas
Rudolfinas, em homenagem ao seu protetor Rudolf II. A vida de Kepler parecia
melhor, se antes era um mero assistente ou empregado de Brahe, agora havia se
tornado um colaborador com consentimento imperial. Ademais, Tycho que, conforme
anota Connor, guardava os dados de suas observações “como uma loba guarda seus
filhotes”, fez algo que nunca havia feito para ninguém, confiou seus estudos
observacionais a Kepler. Connor aponta que Tycho Brahe acreditava que somente
Kepler seria capaz de provar as “teorias tychônicas” sobre o universo, e ele
desejava ver isto ainda em vida. Contudo, no dia 24 de outubro de 1601 Tycho
faleceu devido a complicações no aparelho urinário. Connor anota que no leito
de morte Brahe repetia incessantemente a frase: “Que eu não tenha vivido em
vão” (2005, p.160). Antes de falecer Tycho pediu a Kepler que não abandonasse
por completo seu sistema de mundo em favorecimento do de Copérnico, e, caso ele
tivesse que se voltar para o heliocentrismo, que desse seguimento ao sistema
tychônico também. Dois dias após a morte de Tycho o imperador Rudolf II nomeou
Johannes Kepler matemático imperial de Praga. Porém, se por um lado a vida
profissional de Kepler parecia estar ficando melhor, em contrapartida sua vida
familiar se tornava cada dia mais desagradável. Sua esposa, Bárbara, não
compreendia seu trabalho e se queixava constantemente de sentir-se só.

O período em que Kepler viveu como matemático imperial em Praga
foi muito produtivo, e, conforme aponta Connor, ele escreveu duas de suas obras
mais amadurecidas: Astronomia Pars Optica[17], A Parte ótica da
Astronomia, e, a célebre obra Astronomia Nova[18].
Segundo Connor, na primeira obra Kepler lançou as bases para a ciência ótica
moderna, definindo as leis de refração, e, esclarecendo que a Lua e o Sol aparentam
serem maiores no horizonte por uma razão ótica, e não astronômica. Connor anota
que foi na obra Astronomia Nova que Kepler definiu as notórias duas
primeiras leis do movimento planetário: A Lei das Elipses – que consiste na
afirmação de que cada planeta segue uma órbita elíptica, na qual o Sol se
coloca em um dos focos da elipse; e a Lei das Áreas iguais – onde o raio vetor
unindo um planeta ao Sol percorre uma área igual num mesmo período igual de
tempo. Mas, para elaborar tais teorias Kepler percorreu uma laboriosa jornada.

Como havia prometido a
Tycho Brahe, que lhe confiou as observações de Marte, Kepler tratou o movimento
desse planeta de acordo com as hipóteses de Ptolomeu, de Tycho, de Copérnico e
da sua própria. É o único exemplo de análise de dados de observações que
contempla, simultaneamente, os três sistemas que disputavam o privilégio de uma
representação do mundo conhecido na época. Nessa obra [Astronomia Nova]
Kepler tentou criar uma Mecânica Celeste, quando nem o cálculo infinitesimal nem
mesmo os fundamentos da Mecânica Clássica haviam sido estabelecidos. Para
atingir sua meta, teve de proceder a longas e penosas aproximações (MOURÃO,
2003, p. 114-115).

 

Em relação ao sistema de mundo proposto por Tycho Brahe, que
exigia que todos os planetas orbitassem a Terra, Kepler se opôs alegando que a
Terra não era grande o bastante para exercer tal força de atração, mas, que o
Sol era (CONNOR, 2005). Segundo Mourão, Kepler advogava que a força que regia o
movimento dos planetas era originária do centro do Sol, e, neste sentido trazia
inovações ao heliocentrismo de Copérnico, visto que no modelo copernicano o
centro do mundo não era ocupado pelo Sol, mas pelo centro da órbita da Terra. Kepler
ainda defendia que os planetas estavam sob a influência de duas ações, sendo
uma proveniente da força do Sol e a outra oriunda do próprio planeta, onde o
movimento planetário era estabelecido por uma natureza física.

Kepler apresentou vários
axiomas para defender uma nova teoria de gravitação: todo corpo, à medida que é
feito de matéria, está naturalmente apto a se manter imóvel onde estiver quando
não sofre a influência de um corpo semelhante. Esse axioma, portanto, mostrou
que ele não tinha nenhuma idéia moderna de inércia, formulada pela primeira vez
por Galileu, que disse que um corpo em movimento tende a ficar em movimento. A gravidade para Kepler, portanto, era uma qualidade corpórea mutua existente
entre os vários corpos, unindo-os, com os corpos de maior volume exercendo a
força maior. A Terra, por conseguinte, atrai uma pedra mais do que a pedra
atrai a Terra. Essa força, Kepler argumentou, é também a causa das marés.
Galileu acreditava que as marés ocorriam porque, como a Terra gira sobre o seu
eixo, a água dos oceanos espirrava para todo o lado como a água dentro de uma
banheira. Kepler argumentou que isso era devido à força de atração da Lua, que
faz a água deixar certos lugares e se acumular em outros, criando a maré alta e
a maré baixa (CONNOR, 2005, p. 190).

 

Segundo Connor, Kepler enunciava na corte
imperial de Praga que a sua obra Astronomia Nova era resultado de uma
longa batalha com o planeta Marte. A órbita marciana observada da Terra apresentava
a trajetória celeste mais irregular. Connor anota que diariamente Marte
avançava nos céus de oeste para leste e demorava 780 dias para completar uma
revolução. Até aí tudo bem. Ocorre que à medida que
Marte se aproximava da posição mais oposta ao Sol, onde era visto no seu ponto
mais alto no firmamento, à meia-noite, ele parecia parar e depois, curiosamente,
retroceder, parando novamente e depois de um tempo seguindo adiante. Júpiter e Saturno também apresentavam essa órbita disforme, que os
astrônomos como Ptolomeu chamavam de excentricidade dos planetas, mas, a
irregularidade da órbita marciana sempre foi a mais evidente. Mourão aponta que
Kepler buscou definir a órbita de Marte escolhendo quatro posições das dez
observadas por Tycho Brahe, onde ele encontrava-se em oposição ao Sol. Segundo
Mourão, após um ano de cálculos buscando estabelecer um modelo para a órbita do
planeta vermelho Kepler verificou uma conformidade quase perfeita entre os
valores obtidos, porém, havia uma discordância de oito minutos de grau para os
pontos intermediários.

Isso seria aceitável no
caso das observações realizadas por Ptolomeu e Copérnico, cuja margem de erro
era da ordem de dez minutos. No caso das observações de Tycho Brahe, era mesmo
inadmissível. Era necessário descobrir o seu significado. Kepler explicou que a
hipótese dos poliedros regulares (e indiretamente das órbitas circulares) era
falsa e devia ser abandonada […] Kepler concluiu que “esses oito minutos
sugerem um novo caminho para uma completa reforma da astronomia” (MOURÃO, 2003,
p. 120-121).

 

Mourão aponta que se no Mysterium
Cosmographicum
Kepler defendia que as observações deveriam
se adequar à teoria, na elaboração da obra Astronomia Nova, a
discordância de oito minutos fez com que ele descartasse [por um momento] sua
teoria geometral desenvolvida durante anos de intensa dedicação. A aceitação de
regras puramente geométricas para descrever a órbita dos planetas cedeu lugar à
busca de causalidades de natureza física. Kepler chegou à conclusão de que os
planetas não se deslocavam numa velocidade uniforme, pois, à medida que se
distanciavam do Sol seguiam mais lentamente, e, ao se aproximarem moviam-se
rapidamente. Ressaltamos que esta idéia já havia sido levantada no Mysterium
Cosmographicum
, contudo, na Astronomia Nova, esta concepção fora exposta
sem as características metafísicas de um “espírito de movimento” no Sol. Segundo
Mourão, Kepler não estava decidido a abandonar o modelo circular uniforme dos
movimentos celestes, o que dificultava seus estudos. Resolveu então deixar de
lado o estudo do movimento marciano e passou a se dedicar à órbita terrestre.
Após comprovar que a Terra não se deslocava com velocidade uniforme, e, levando
em consideração que esta velocidade dependia da distância do Sol, Kepler chegou
à lei do movimento planetário onde definia que o tempo necessário para um
planeta percorrer uma mesma área da órbita é proporcional à mesma distância.
Mourão destaca que Kepler descobriu primeiro esta lei que pedagogicamente
aprendemos como a “Segunda Lei dos Movimentos Planetários” (2003, p. 124).

Segundo Mourão, quando Kepler retomou os estudos da órbita
de Marte já estava com muitas dúvidas em relação à concepção cosmológica do
principio da circularidade dos movimentos planetários. Mourão anota que dois
anos após Kepler retomar o estudo da órbita marciana tentou, pela última vez,
adotar um movimento circular perfeito, mas, não tendo logrado êxito, anunciou
que a órbita do planeta vermelho não era um círculo e sim “uma figura oval”. Kepler
se perdeu em cálculos e mais cálculos tentando encontrar a área oval da orbita
de Marte, mas não obteve sucesso, e, buscou outras formas geométricas.

Após calcular diversos pontos da
órbita de Marte ao redor do Sol, encontrou uma curva, semelhante à forma de um
círculo achatado nos dois pontos intermediários opostos, que tinham por eixo os
pontos mais e menos afastados do centro da órbita: as lúnulas, áreas em
meia-lua, que se formavam entre o círculo e a órbita de Marte […] Todavia,
ainda não sabia tratar-se de uma elipse (MOURÃO, 2003, p. 127).

Kepler chegou à conclusão de que a trajetória traçada
geometricamente por Marte tratava-se de uma elipse, onde o Sol ocupava um dos
focos. Desta forma elaborava a lei das órbitas elípticas, conhecida por nós
como “A Primeira Lei de Kepler”. Porém, Connor destaca que para chegar a estas
conclusões Kepler teve que romper com a cosmologia aceita até então, e, para
ele era difícil aceitar o fato de que o movimento dos planetas não seguia uma
trajetória circular perfeita. Como vimos no primeiro item deste trabalho a
órbita circular representava a Perfeição Divina e ao definir as órbitas em elipses Kepler abalou muitos conceitos presentes em sua época, conceitos dos quais ele
partilhava.

Segundo
Mourão, apesar do êxito na elaboração de novas teorias sobre o , Johannes se
deparou com o “terrível ano de 1611”. Mourão anota que os três filhos de Kepler contraíram varíola e um deles morreu. Bárbara
ficou gravemente adoecida apresentando sinais de distúrbio mental, terminando
por falecer no dia 3 de julho deste fatídico ano. No ano seguinte o Imperador Rudolf II morreu,
e, as tensões entre católicos e protestantes, chegaram à Praga. Kepler então
seguiria para a capital da Áustria Superior, a cidade de Linz.

 

Figura 6 – Representação da Primeira lei de Kepler

Fonte: Patrick Lamounier. Acesso em: 29 jun.
2009.

 

 

Figura 7 – Ilustração da Segunda lei de
Kepler

Fonte: Só Física. Acesso em: 29 jun. 2009.

 

2.5 A
Harmonia do Mundo e os últimos momentos de Johannes Kepler

 

 

Segundo Mourão, a chegada de Kepler foi um evento importante em
Linz, pois, o célebre matemático do império iria fixar residência nesta cidade.
O cargo imperial de Johannes foi mantido pelo imperador Mattias[19],
que mesmo não apresentando muito interesse em relação às questões astronômicas,
preferia ter Kepler próximo à Corte para solicitar seus serviços astrológicos. Logo
que chegara a Linz Kepler enfrentou problemas por conta de suas convicções
religiosas. Connor aponta que em uma conversa com o principal pastor local,
Daniel Hitzler, Kepler declarou suas discordâncias em relação ao luteranismo,
sobretudo no que diz respeito à doutrina da ubiqüidade. Hitzler negou-se a
conceder a comunhão a Kepler, caso ele não assinasse a Fórmula da Concórdia,
documento que se tratava da diretriz religiosa do luteranismo. Connor destaca
que para Kepler a assinatura de todos os termos da doutrina luterana
significava abandonar a sua própria consciência e a sua fé, pois, ele entendia
que isto entrava em desacordo com os ensinamentos de Lutero, que havia ensinado
que a fé era o caminho para a salvação. Em carta ao seu antigo professor
Mästlin, Johannes escreveu:

Eu poderia calar toda a
disputa assinando a Fórmula da Concórdia sem reservas. Mas não posso ser
hipócrita em questões de consciência. Eu assinaria se eles aceitassem as
reservas que já apresentei. Não quero parte com a fúria dos teólogos. Não
julgarei irmãos; pois mesmo que se ergam ou caiam, continuam sendo meus irmãos
e irmãos do Senhor (KEPLER apud CONNOR, 2005, p.246).

 

Em
meio ao embate com sua igreja Kepler se casaria pela segunda vez. Connor anota
que o segundo casamento ocorreu no dia 30 de outubro de 1613 com Susanna
Reuttinger, que daria à luz a sete crianças. Segundo Connor, o casamento com
Susana foi mais feliz do que o primeiro, pois, ela compreendia Kepler mais que
Bárbara. “Pela primeira vez, talvez em toda a sua vida, rodeado da esposa e dos
filhos, Johannes Kepler encontrou a paz” (CONNOR, 2005, p.249). Contudo, a
felicidade de Kepler seria abalada, pois, ele foi surpreendido, em 29 de
dezembro de 1615, com notícias de sua família que anunciavam acusações de
bruxaria contra sua mãe. Em resposta às acusações registradas contra Katharina
Kepler, Johannes escreveu ao senado de Leonberg argumentando que sua mãe estava
sendo vítima de calúnia e que a acusação de bruxaria fora uma cilada armada
pelos seus acusadores. Kepler escreveu:

No dia 29 de dezembro, com
indivisível pesar, li uma carta que minha irmã, Margaretha Binder, enviou-me
datada de 22 de outubro. Pelo que entendi existe um processo a ser julgado por
vós relativo a várias pessoas acusadas pelo tribunal, com base unicamente na
retórica imaginativa de vossa querida amada dona-de-casa e esposa, Ursula
Reinbold. Todos sabem que, até hoje essa mulher tem vivido de modo frívolo, e
agora, segundo vós, ela está mentalmente doente. Presa em meio a essa teia
deprimente de suspeitas, minha própria querida mãe, que tem vivido honradamente
até os seus setenta anos, foi acusada por vós de dar a essa mesma pessoa louca
uma tola poção mágica, que vós dizeis lhe causou a sua insanidade […] homens
usaram de palavras gentis e promessas falsas para persuadir uma pobre e velha
senhora, fazendo-a pensar que nada lhe aconteceria. Eles usaram todos os
truques diabólicos que podeis imaginar, exigindo que ela executasse esse ritual
proibido, supostamente para ajudar à louca, Ursula Reinbold, a quem ela não fez
nenhum mal em primeiro lugar e a quem não pôde ajudar. Pelo que soube, depois
que ela finalmente executou o ritual que lhe pediram e curou a mulher, vós
afirmais que isso foi feito com ajuda da magia do demônio. Portanto agora,
dizem, minha mãe merece a pena de morte, quando de fato as pessoas que forçaram
essas ações a merecem muito mais (apud CONNOR, 2005, p.21-22).

 

Connor
aponta que os acusadores de Katharina buscavam desacreditar Johannes, principal
defensor de sua mãe, alegando que ele estava envolvido em um escândalo em sua
própria igreja sob a acusação de “calvinismo dissimulado”. Alegavam ainda que
Kepler praticava magia negra e havia escrito, quando estudava em Tübingen, um
texto descrevendo o heliocentrismo de Copérnico do ponto de vista de habitantes
lunares. Para os acusadores de Katharina, ela invocara os espíritos do ar para
levar seu filho até a Lua. Vale destacar que este texto, ou conto,
posteriormente se tornou o livro Somnium, Sonho, e que segundo Connor
talvez tenha sido o primeiro texto de ficção científica de que se tenha
notícia. Mourão anota que em 1620 Katharina foi presa e, em 1621 foi submetida
à tortura.

Em 28 de setembro de 1621,
ela foi conduzida à câmara do carrasco, os instrumentos de tortura lhe foram
apresentados, mas ela se manteve calma, dizendo: “Faça de mim o que quiser. Se
você me tirar uma a uma as veias do meu corpo, eu não teria nada a
confessar…” Comovido com a sua resistência, o duque decidiu perdoá-la. Após
14 meses de prisão, Katharine Kepler estava livre da fogueira, mas,
lamentavelmente, não podia retornar à sua residência em Leonberg, pois a
população ameaçava linchá-la. Seis meses mais tarde morreu (MOURÃO, 2003,
p.166-167).

 

Em
meio ao sofrido período do julgamento de sua mãe, Kepler fora excomungado da
igreja luterana por não assinar todos os termos da Fórmula da Concórdia.
Conforme aponta Connor as defesas públicas de Kepler em favor do copernicanismo
também foram determinantes para sua exclusão da igreja de Martinho Lutero. Apesar
de todas estas intempéries Kepler encontrou energia para continuar seus
estudos, elaborando a terceira lei dos movimentos planetários, na obra que
carregou um nome paradoxal às suas desafinadas experiências pessoais: o livro Harmonice
Mundi
, Harmonia do Mundo. Segundo Mourão na obra Harmonia do Mundo,
concluída em 1618, Kepler anotou a sua última lei dos movimentos planetários:
os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer são
proporcionais entre si e ao cubo das suas distâncias médias ao Sol. Nessa obra
Kepler propôs nada mais do que uma harmoniosa mecânica celeste onde o Universo era
concebido em proporções geométricas, e, das quais se originavam as harmonias da
música.

Os movimentos celestes
nada mais são do que um canto contínuo de várias vozes (imperceptíveis pelo
ouvido, mas perceptíveis pela inteligência); uma música que através de tons
discordantes, através de síncopes e cadências por assim dizer (como os homens
as empregam na imitação de tais discordâncias naturais), progride para certas clausuras
planejadas de antemão, quase de seis vozes, e com isso estabelece marcos no
imensurável curso do tempo. Logo, já não surpreende que o homem, imitando o
Criador, tenha finalmente descoberto a arte do canto figurado, desconhecida dos
antigos. O homem precisava reproduzir a continuidade do tempo cósmico na
duração de uma breve hora por uma artística sinfonia para várias vozes a fim de
obter uma amostra do deleite do Divino Criador nas suas obras, e participar do
júbilo fazendo a música à imitação de Deus (KEPLER apud MOURÃO, 2003,
p.174-175).

 

 

Figura 8 – Imagem do livro Harmonice Mundi onde Kepler
associou os movimentos planetários às escalas musicais.

Fonte: Massimo Mogi Vicentini. Acesso em: 29
jun. 2009.

 

Dentre as várias obras que Kepler escreveu encontra-se Epitome
Astronomiae Copernicanae
, Epítome de Astronomia Copernicana, que se tratava
de um manual sobre o heliocentrismo. Em 1619 esta obra foi colocada no Index,
Livros Proibidos pela Santa Inquisição, visto que apresentava a obra de Copérnico
que havia sido condenada pela igreja (MOURÃO, 2003). A última obra publicada em
vida foram as Tabelas Rudolfinas que iniciadas ainda em convívio com Tycho
Brahe não haviam sido terminadas até 1626. Mourão aponta que devido à Guerra
dos Trinta Anos[20] a impressão das Tabelas Rudolfinas
ficou retardada por alguns anos. Em meio aos conflitos religiosos e políticos
que chegaram à Linz, Kepler foi obrigado a fugir de sua morada mais uma vez. Segundo
Mourão Kepler seguiu para a cidade de Ulm com o objetivo de concluir a impressão
das Tabelas Rudolfinas, o que ocorreu em 1627. Contudo, as Tabelas que tiveram
uma tiragem de mil exemplares, e que consumiram as economias de Kepler, não
tiveram o sucesso esperado na Feira de Frankfurt onde foram expostas.

Connor anota que em 2 de novembro de 1630 Kepler ficou fortemente
resfriado e vários pastores luteranos vieram visitá-lo em Ulm, e, na ocasião, Kepler
comentou com eles que tudo que mais desejava era a paz entre os cristãos.
Devido ao agravamento de sua enfermidade Kepler faleceu, e, no dia 17 de
novembro de 1630, o homem que buscou causas físicas para os movimentos celestes,
e, que tivera uma vida cheia de infortúnios, mas, que mesmo assim, substanciou
uma série de conhecimentos válidos até hoje, foi sepultado. Mourão destaca que dentre
as importantes contribuições da obra de Kepler está o rompimento com o dualismo
entre o mundo celeste e o mundo sublunar, e, também na idéia de que a Terra, o
Sol e todos os planetas fazem parte de uma mesma natureza. Para Connor os estudos
desenvolvidos por Kepler foram uma grande profissão de sua fé em Deus.

Meses antes de falecer Kepler escreveu um intrigante poema que posteriormente
foi convertido em seu epitáfio: “Eu costumava medir os céus, mas agora meço as
sombras da terra. Embora minha alma fosse dos céus, a sombra do meu corpo aqui
jaz” (apud CONNOR, 2005, p.351).

 

 

CONSIDERAÇÕES
FINAIS

 

 

A
compreensão de mundo é algo movente e as demandas de um tempo influenciam
profundamente os vários domínios da existência humana. Vimos brevemente no
decorrer deste trabalho que o advento das grandes navegações, com a descoberta
de novas rotas marítimas e de novos locais, estimulou uma nova compreensão do
homem em relação a si e ao Universo. Podemos inferir que o heliocentrismo, que
teve suas bases notoriamente lançadas por Nicolau Copérnico no século XVI, compunha
os lampejos de uma nova consciência que pairou na atmosfera intelectual do
continente europeu. Kepler, assim como qualquer um de nós, foi um homem de seu
tempo e sofreu a influência das elucubrações presentes em seu século para formular
suas teorias.

Muitas
vezes a imagem que temos dos intelectuais do chamado Renascimento é a de indivíduos
desprendidos de religiosidade ou de misticismo, entretanto, o desenvolvimento
deste trabalho nos possibilitou perceber que Johannes Kepler, e tantos outros
intelectuais como Copérnico e Tycho Brahe, não apresentavam o cientificismo
racionalista, característico de nossa época, que nega a presença da chamada
tradição mágica, ou imagem mágica de mundo, no desenvolvimento da investigação
científica. Kepler, assim como Copérnico, atribuiu ao Sol características
metafísicas para chegar posteriormente à teoria de que havia uma força física
solar que interferia nos movimentos planetários. Verificamos ainda neste
trabalho que os argumentos de ordem teológica também estavam presentes na obra
de Kepler, mostrando que a chamada tradição mecânica não esta dissociada de
outras tradições imbricantes nos Seiscentos.

Hoje
em dia não há muita dificuldade em encontrar nos manuais de Física ou
Astronomia as chamadas “Leis de Kepler” que possibilitam calcular o movimento
dos planetas em qualquer sistema solar do Cosmo. Entretanto, estes manuais
reportam-se muitas vezes somente aos resultados de longos anos de dedicação e
pesquisas do astrônomo e matemático alemão. Perquirir as obras de Connor e
Mourão nos possibilitou conhecer muitos desafios enfrentados por Kepler em sua
trajetória intelectual.

A pertinácia
de Kepler diante dos reveses com os quais ele se deparou enquanto elaborava as
suas leis dos movimentos planetários é admirável. Não queremos aqui fazer uma
apologia embevecida à pessoa do Kepler, mas reconhecer a importância de sua determinação
para formular teorias que possibilitaram à Humanidade uma nova compreensão
sobre o Universo. Johannes foi uma das personalidades centrais da chamada revolução
científica do século XVII, e, as percepções de Connor e Mourão nos
possibilitaram conhecer, além do intelectual, um pouco mais da história do homem
Kepler. Johannes não pôde vivenciar a importância de seus estudos, contudo, seu
legado interferiu substancialmente na atmosfera do conhecimento humano.

 

 

Brief Reflection About Johannes Kepler’s Intellectual
Trajectory AND THE FOUNDATIONS OF MODERN ASTROMY.

 

 

ABSTRACT

 

The German astronomer
and mathematician Johannes Kepler is known for elaborating the three laws of
planetary movements that have changed all acting cosmology since the Second
Century to the Seventeenth Century. Kepler, in a period full of religious
conflicts between Catholics and Protestants, created the base of modern
astronomy. He interpreted the celestial phenomenon through the physics causes
and, defended all through his life the heliocentric belief of Nicola Copernicus
over the geocentric belief that ruled at the time. Taking these beliefs as the
beginning point, this paper will do a brief reflection on Johannes Kepler’s
intellectual trajectory and the foundations of modern astronomy.

 

Key-words: Cosmology.
Geocentric belief. Heliocentric belief. Astronomy. Physics. Religious
conflicts. Catholics.
Protestants. Kepler.

 

 

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

 

 

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CONNOR, James A. A Bruxa de Kepler: a
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29 jun. 2009.

 


[1] Graduado em História pela Faculdade
Projeção de Taguatinga-DF.

[2] Existem bibliografias que entendem o
termo “geostático” mais adequado para caracterizar o sistema
aristotélico-ptolomaico, salientando a idéia de que a Terra estava não
exatamente no centro do Universo, mas, em repouso. Contudo, ao longo deste trabalho será utilizado o termo “geocêntrico” que eventualmente
é mais utilizado pela bibliografia especializada.

[3] Cláudio Ptolomeu (s. II d.C.), matemático, astrônomo e geógrafo
grego.

[4] A fim de acautelar o leitor contra
uma interpretação errônea vale destacar a sinonímia entre os termos mundo e
universo que têm
significação muito próxima, permitindo que um seja escolhido pelo outro em
alguns contextos, sem alterar o sentido literal da sentença como um todo.

[5] Da mesma forma que anteriormente nos
referimos à acepção do termo “geocêntrico” neste trabalho, ressalvamos que a
expressão “sistema-heliostático,” é encontrada em muitas bibliografias para
demonstrar não exatamente a centralidade do Sol, mas, que ele encontrava-se
fixo no sistema copernicano. No entanto, utilizaremos a expressão “sistema
heliocêntrico” que é mais comumente utilizada na bibliografia sobre o tema.

[6] Historiador norte-americano,
licenciado por Harvard e Yale, doutor em História e Direito. Lecionou nas mais
conceituadas universidades dos Estados Unidos e em Roma, Kyoto, Sorbonne e
Cambridge.

[7] Ao longo deste trabalho o antropônimo
da mãe de Kepler poderá aparecer como Katherine ou Katharina, visto que Mourão
apresenta em sua obra o primeiro e Connor o segundo.

[8] Conjunto das idéias e doutrinas de João Calvino (1509-1564),
teólogo e reformador cristão.

[9] Connor anota que a doutrina da
ubiqüidade foi a resposta de Lutero à eucaristia, onde o pão e o vinho durante
a missa eram transformados no Corpo e no Sangue de Cristo. Lutero apresentou a
idéia de que o comungante recebe o Corpo e o Sangue porque a verdadeira
presença de Cristo é onipresente. Os calvinistas negavam a idéia luterana,
alegando que o pão e o vinho não se transubstanciavam, e, que no ato da
comunhão havia o recebimento da assistência de Cristo que está no céu. Kepler
tendia ao pensamento calvinista por não conseguir encontrar nenhuma menção da
doutrina da ubiqüidade nas Escrituras (2005, p. 57)

[10] “Movimento cismático que surgiu, dentro da Igreja Católica,
questionando a supremacia eclesiástica do papa; e propiciou a instauração das
Igrejas protestantes” (MOURÃO, 2000, p.215).

[11] Mourão anota que: “até o fim do
século XVII, não havia uma distinção semântica entre Astrologia e Astronomia,
empregavam-se os dois termos indiferentemente” (2003, p. 15).

[12] Mourão cita em sua obra anima matrix,
“espírito movente” (2003, p. 55).

[13] Connor (2005, p. 101) anota 23 anos
para a idade de Bárbara Müller.

[14] “Movimento que surgiu na Igreja Católica Apostólica Romana nos
séculos XVI e XVII, com o objetivo de revitalizar a Igreja, opondo-se ao protestantismo”
(MOURÃO, 2003, p. 208).

[15] Galileu Galilei (1564-1642),
filósofo, astrônomo e matemático italiano.

[16] Rudolf ou Rodolfo II de Habsburgo
(1552-1612), imperador do Sacro Império Romano, rei da Boêmia e da Hungria.

[17] O título original desta obra é bem
extenso: Ad Vitellionam Paralipomena, Quibus Astronomiae – Par Optica
Traditur Potissimum d Artificiosa Observatione et aestimatione diametrorum
deliquiorumque Solis A Lunae. Cum exemplis insignium eclipsium. Habes hoc
libro, Lector, inter alia multa nova, Tractatum luculentam demodo visionis, e
humorum oculi usu, contra Opticos e Anatomicos
– Complemento a Vitélio onde
é ensinada a Parte Ótica da Astronomia. Trata-se principalmente de uma
observação Hábil e de estimativa de diâmetros do Sol e da Lua acompanhados de
exemplos de eclipses notáveis. Você, Leitor, encontrará neste livro, entre
outras novidades, um luminoso Tratado sobre a visão e sobre as propriedades dos
humores oculares, dirigidos aos Ópticos e aos Anatomistas (MOURÃO, 2003, p.
131).

[18] Seu título completo é Astronomia
Nova seu Physica Coelestis tradita commentariis de motibus stellae Marti –
Astronomia
Nova, fundada sobre as causas, ou Física Celeste, Exposta em comentários sobre
os movimentos da estrela Marte (MOURÃO, 2003, p. 113-114).

[19] Mattias ou Mateus de Habsburgo (1557-1619) Imperador do Sacro Império
Romano em sucessão a Rudolf II.

[20] “Conflito que teve como cenário
principal a Alemanha no período de 1618 a 1648; caracteriza-se por uma série de conflitos cuja origem religiosa se transformou em política. Nela intervieram sucessivamente todos os países europeus, com exceção da Turquia,
da Rússia e da Inglaterra” (MOURÃO, 2003, p.211-212).

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