Carlos
Castaneda
Artigo sobre Don Juan e Castaneda publicado
em livro de 1978. Autor: Luiz Carlos Maciel. Livro: A morte Organizada. Global
Editora e Distribuidora Ltda.
O presente artigo, embora limitado pela data em que foi publicado, é um
interessante relato da repercussão da obra de Castaneda por um dos maiores
estudiosos brasileiros da contra-cultura. Resolvi colocá-lo aqui nessa página
com o intuito de fornecer um material não recente sobre nosso autor. O objetivo
é comparar a terceira parte da obra, a da recapitulação (Presente da Águia
em diante) com os primeiros quatro livros
DON JUAN
Em 1968, um jovem antropólogo,
formado pela Universidade da Califórnia, chamado Carlos Castaneda,
publicou um livro, Os Ensinamentos de Don Juan, Um Caminho Iaqui para
o Conhecimento, em que narrava o seu aprendizado com um feiticeiro,
índio de Sonora, México, na fronteira com os Estados Unidos.
Castaneda encontrara Don Juan - era este o nome do bruxo, da tribo dos
Iaquis - quando fazia uma pesquisa de campo para uma tese de doutoramento
sobre o uso de ervas em culturas primitivas. Don Juan era um yerbero,
índio dedicado ao conhecimento das propriedades das plantas,
e depois de um ano de amizade com o antropólogo, revelou que também
era um brujo que utilizava o peiote, o cogumelo mágico
mexicano e a figueira -do -inferno (Datura stramonium), todas elas
plantas alucinógenas, como vias de acesso para o conhecimento e
poderes mágicos.
Os Ensinamentos fizeram grande
sucesso entre os jovens da contracultura americana, embora fossem olhados
com desconfiança nos círculos acadêmicos. Além
de Castaneda, não se tem notícia que qualquer
outra pessoa da cultura branca tivesse entrado em contato com Don Juan.
Castaneda, porém, publicou mais dois livros: Uma Realidade Separada,
em 1971 e Viagem a Ixtlan, em 1972 que revelavam, de maneira mais
ampla e profunda, a sabedoria do velho índio.
O sucesso aumentou e os livros se
tornaram best-sellers: só os Ensinamentos estão vendendo
uma média de 16 mil exemplares por semana e a revista Time
fez do autor e discípulo Castaneda e de seu mestre índio
o assunto de um artigo de capa.
Tudo aconteceu porque, conforme Castaneda
conta no primeiro livro, ele foi escolhido para o aprendizado por Mescalito,
uma entidade que habita o peiote e revela quando a planta é
ingerida, e que Don Juan considera um "grande instrutor" dos homens capaz
de ensiná-los a "maneira adequada de viver".
Os Ensinamentos mostram a fase
inicial de preparação de um feiticeiro. Com calma, habilidade
e humor, Don Juan dedica-se à tarefa de destruir no discípulo
os condicionamentos que engendram e sustentam sua crença - segundo
o bruxo, sua ilusão - numa realidade objetiva e indiscutível,
como todos nós estamos acostumados a aceitar. Para desmanchar
essa ilusão, Don Juan leva Castaneda ao encontro de forças
mágicas que um feiticeiro aprende a dominar e utilizar. Depois de
vários meses de aprendizado, Castaneda percebe que sua "realidade
objetiva indiscutível" começa a se desfazer. Sente medo -
"O primeiro inimigo do homem de conhecimento", segundo Don Juan- abandona
o aprendizado e volta aos Estados Unidos.
Anos mais tarde, quando os Ensinamentos
são publicados, Castaneda volta ao México para presentear
Don Juan com um exemplar que o índio recusa, explicando que "você
sabe muito bem o que fazemos com papel, aqui no México"- e um segundo
ciclo é iniciado. Uma Realidade Separada e Viagem a Ixtlan narram
esse estágio mais avançado do aprendizado. A doutrina subjacente
aos procedimentos mágicos de Don Juan, é então , formulada
de uma maneira mais explícita e os pontos de contato com os caminhos
de libertação do Oriente, especialmente o Budismo, ficam
cada vez mais evidente. Don Juan. em suma, mostra a Castaneda que a realidade
em si é vazia e que, portanto a pretensa realidade física,
objetiva, indiscutível - que todos nós aceitamos em função
de condicionamentos mentais - é mentalmente engendrada por nós.
Um feiticeiro pode manipular à vontade essa realidade, desde
que empregue os procedimentos corretos. Como nos Ensinamentos, Don
Juan continua a explicar esses procedimentos mas seu principal objetivo,
conforme ele mesmo declara, é ensinar os discípulos
a VER - isto é, perceber as coisas como elas são, livres
do condicionamentos - e assim, tornar-se um "homem de conhecimento".
Tornar-se um homem de conhecimento,
entretanto, não é uma tarefa fácil, pois implica em
vencer um grande obstáculo: a própria personalidade individual
do discípulo que é, no fundo, o próprio cerne da realidade
que deve ser desmanchada. Com paciência mas firmeza, Don Juan recrimina
a auto-indulgência de Castaneda, sua tendência a refugiar-se
no abandono emocional e na racionalização constante, e o
incita a viver como um "guerreiro". Para viver como um guerreiro, é
preciso libertar-se da própria vida passada que, através
da memória e imaginação -isto é, do pensamento-
sustenta a identidade; é preciso deixar que sua morte se sente "ao
lado dele, em sua esteira" e o aconselhe; é preciso ver que
"nada tem importância" e que, na verdade, não se possui nada
a não ser a "vida a ser vivida". Com palavras incrivelmente simples
e diretas, Don Juan volta a ensinar a velha verdade que são os pensamentos
que sustentam o chamado mundo objetivo e que, se interrompemos o processo
do pensamento, o mundo imediatamente deixará de ser o que é
ou parece ser.
"Você pensa demais"; você
se julga muito importante e por isso acha que todos os seus atos devem
ser importantes"; "você só sabe fazer perguntas" - com advertências
como essas, Don Juan procura indicar de maneira clara e imediata, para
Castaneda, a natureza do grande obstáculo. Seu esforço é
para romper com as teias de maya. como dizem os hindús, isto
é, desfazer a rede de conceitos, articulações mentais
e interpretações que, sobrepostas à experiência
imediata, aqui e agora, obscurecem e distorcem a visão humana.
VER, portanto, exige uma ascese especial de desprendimento radical de todas
as coisas, a que o feiticeiro procura induzir o discípulo, através
de uma disciplina voluntária que levou a revista Time a classificar
a doutrina de Don Juan como um "estoicismo existencial". As experiências
que Castaneda atravessa para perceber, através de uma vivência
concreta, que o mundo é inteiramente mágico, são bastante
duras.
No curso dos livros, Castaneda se
vê as voltas com feiticeiras que querem roubar sua alma, bruxos que
executam as mais diversas magias diante de seus olhos, insetos gigantescos
que são "os guardiões do outro mundo", além de experimentar
os mais diversos estados de consciência através do uso
das já citadas plantas alucinógenas.
Don Juan, entretanto, não mostra
apenas o duro caminho que deve ser trilhado pelo guerreiro e como superar
os obstáculos que surgem a cada momento, criados pela sede de permanência
egoísta. Ele também procura sugerir o estado do homem que
é capaz de VER, o homem do aqui e agora, agindo por agir, sem objetivos
para a sua ação e sem remorsos ou vaidade pelo que fez. um
homem de conhecimento, diz Don Juan, não tem nome, nem família,
nem país, nem dignidade - isto é, não tem nada que
possa sustentar um centro falso, o ego, que cristalize as suas experiências.
Como pode, então, um homem de conhecimento viver entre outros que,
ao contrário dele, são incapazes de VER? Isso é possível,
diz ele, graças à sua "loucura controlada".
Essa categoria do "caminho iaqui para
o conhecimento" é uma das formulações de Don Juan
mais claras, agudas e úteis para aqueles que estiverem dispostos
a seguir um caminho de libertação. A imensa maioria das pessoas,
explica o feiticeiro, estão loucas porque consideram o que fazem,
os seus engendramentos mentais, suas teias ilusórias, mais importante
e mesmo mais reais do que a própria realidade pura e simples, imediata
e sensível, evanescente e em constante renovação.
Essas construções mentais - "o que as pessoas fazem" diz
Don Juan - São defesas contra forças desconhecidas que nos
cercam - "escudos". diz o bruxo -e tem a função de nos dar
a sensação de segurança num mundo em constante mutação.
Acreditar que elas são reais, entretanto, é insanidade. O
homem de conhecimento sabe disso, e em conseqüência, controla
sua loucura. Graças a essa loucura controlada, ele se comporta como
os outros homens - e aqueles incapazes de VER são também
incapazes de perceber qualquer coisa diferente nele.
Conforme os seus ensinamentos, a própria
existência física, objetiva, de Don juan é um mistério.
Perdido entre os índios iaqui de Sonora, é apenas um velho
obscuro que só revela seus poderes e sua sabedoria a discípulos
escolhidos, dos quais apenas Castaneda é conhecido em nossa civilização.
Castaneda o descreve como um homem musculoso, ágil, esperto e bem
humorado, apesar de sua idade avançada. E o próprio Castaneda
segue, agora, as pegadas do mestre. Parou de dar conferências, nega-se
a posar para os fotógrafos que o procuram e começa a encarar
seu próprio passado com a mesma liberdade e elasticidade com que
a imaginação comum costuma encarar o futuro.
Afirma-se que é peruano, enquanto
ele conta que nasceu no Brasil - em São Paulo para ser mais exato;
afirma-se, com base em documentos, que tem 48 anos de idade, enquanto ele
declara ter só 38. Seguindo um conselho do mestre, Castaneda parece
ainda estar "desfazendo seu mundo, pouco" enquanto termina o quarto último
volume da séria sobre Don Juan, Histórias de Poder.
Como pesquisa antropológica,
seu trabalho revela, mais uma vez, com clareza, que culturas que consideramos
"primitivas" ou "atrasadas possuem, na verdade, uma sabedoria bem superior
à de nossa própria cultura e uma relação com
a realidade muito mais natural e eficiente do que a nossa barata "feitiçaria"
científica e tecnológica. Mas é provável que,
quando Mescalito escolheu Castaneda para o aprendizado, ele visasse efeitos
mais amplos do que o acúmulo de novos conhecimentos acadêmicos,
eruditos e estéreis. A popularidade que os livros estão alcançando
é sintomática. E talvez justifique o entusiasmo dos que já
vêem nas palavras de Don Juan, "um novo Evangelho" capaz de finalmente
trazer uma "boa nova" à nossa agonizante cultura.
Don Juan, no traço de Gilbert Shelton
POR LUIZ CARLOS MACIEL
copyright de Luiz Carlos Maciel, 1978.
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