Carlos
Castaneda
Voltar ao Índice
Esta entrevista saiu logo depois da publicação do terceiro livro do autor, Viagem a Ixtlan. Ele estava procurando desvencilhar-se da alcunha de guru das drogas psicodélicas que havia recebido com a publicação dos primeiros livros. Este entrevistador, Sam Keen, talvez tenha sido o mais competente na formulação de perguntas. Sua formação em filosofia e teologia em Harvard e Princeton o fazem buscar paralelos entre os ensinamentos e as tradições ocidentais e orientais já conhecidas. Aparece aqui até uma curiosa afirmação de Don Juan a respeito do filósofo austríaco Wittgenstein. Leia a seguir.
Sam Keen:
Como eu acompanhei Don Juan através de seus três livros,
suspeitei, às vezes, que ele era uma criação de Carlos Castaneda. Ele é quase
bom demais para ser verdade . Um índio velho e sábio cujo conhecimento da
natureza humana é superior ao de quase todo mundo.
Carlos Castaneda:
A idéia de que eu forjei uma pessoa como Don Juan não é convincente.
Ele dificilmente seria o tipo de figura que minha tradição intelectual européia
levaria a conceber. A verdade é sempre algo muito estranho. Eu não estava
sequer preparado para fazer as mudanças na minha vida que a minha associação
com Don Juan requisitou.
Sam Keen:
Como e quando você encontrou Don Juan e tornou-se seu
aprendiz?
Carlos Castaneda:
Eu estava terminando meu trabalho de conclusão de curso na
UCLA e planejando ir para a graduação
Fiquei completamente tímido e paralizado. Eu normalmente era muito vigoroso e falante, então foi um negócio sério ser silenciado com um olhar. Depois disso, comecei a visitá-lo e cerca de um ano depois ele disse-me que gostaria de me repassar o conhecimento da feitiçaria que havia obtido com seu mestre.
Sam Keen:
Então Don Juan não é um fenômeno isolado, mas faz parte de
um grupo de feiticeiros que compartilham um conhecimento secreto?
Carlos Castaneda:
Certamente. Conheço três feiticeiros e sete aprendizes e
existem muitos mais. Se você pesquisar a história da conquista espanhola no
México, encontrará que os inquisidores católicos tentaram acabar com a
feitiçaria porque a consideraram como uma coisa do demônio. Ela tem estado por
aí há muitos milhares de anos. A maioria das técnicas que Don Juan me ensinou é
muito antiga.
Sam Keen:
Algumas das técnicas que os feiticeiros
usam é amplamente usada também por outros grupos secretos. As pessoas às
vezes usam os sonhos para encontrar objetos perdidos, e vão para jornadas fora-do-corpo durante seu sono. Mas quando você diz como
Don Juan e seu amigo Don Genaro fizeram o carro
desaparecer durante a plena luz do dia, eu poderia apenas coçar a cabeça. Eu
sei que um hipnotista pode criar a ilusão de presença
ou ausência de um objeto. Você acredita que foi hipnotizado?
Carlos Castaneda:
Talvez, alguma coisa deste tipo. Mas temos que começar por
perceber, como diz Don Juan, que existe muito mais no universo do que
normalmente confessamos conhecer. Nossas expectativas usuais acerca da
realidade são criadas por um consenso social. Nos ensinam como ver e perceber o mundo. A truque da socialização
consiste em nos convencer que as descrições que estamos de acordo definem os
limites do mundo real. O que chamamos de realidade é apenas um modo de ver o
mundo, um modo que é sustentando pelo consenso social.
Sam Keen:
Então um feiticeiro, como um hipnólogo,
cria um mundo alternativo construindo diferentes expectativas e fornecendo
pistas premeditadas para produzir um consenso social.
Carlos Castaneda:
Exatamente. Eu comecei a entender feitiçaria nos termos da
idéia de .interpretação. [glosses] de Talcott Parsons. Uma interpretação
[gloss] é um sistema completo de percepção e
linguagem. Por exemplo, esta sala e é uma interpretação. Nós reunimos juntos uma série de percepções isoladas . chão, teto, janela, luzes, tapete, etc . para compor uma
totalidade. Mas nós temos que ser ensinados a dispor o mundo junto desta forma.
Uma criança experimenta o mundo com poucos pré-conceitos até que é ensinada a vê-lo
de uma forma que corresponde à descrição que todos compartilham. O sistema de interpretações
parece um pouco com caminhar. Nós temos que aprender a caminhar, mas uma vez
que aprendemos ficamos sujeitos à sintaxe da linguagem e ao modo de percepção
que ela contém.
Sam Keen:
Então a feitiçaria, assim como a arte, ensina um novo
sistema de anotações. Quando, por exemplo, Van Gogh rompe com a tradição artística e pinta .O Céu
Estrelado. [The Starry Night], ele estava efetivamente dizendo: aqui está uma nova
maneira de ver as coisas. As estrelas estão vivas e rodam em volta de seus
campos energéticos.
Carlos Castaneda:
De uma certa forma. Mas existe uma
diferença. Um artista normalmente apenas rearranja as velhas anotações que são
apropriadas para seu grupo.
Sam Keen:
Don Juan estava lhe dessocializando ou ressocializando? Ele estava lhe ensinando um novo
sistema de significados ou apenas um método para esvaziar o antigo sistema para
que assim você pudesse ver o mundo como uma criança fascinada?
Carlos Castaneda:
Don Juan e eu discordamos quanto a isto. Eu digo que ele está me .reinterpretando. [reglossing].
Ensinando-me feitiçaria me deu um novo conjunto de interpretações, uma nova
linguagem e uma nova maneira de ver o mundo. Uma vez eu li um pouco da
filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein e ele riu e disse .Seu amigo
Wittgenstein amarrou o nó com muita força em torno de próprio pescoço, assim
ele não pode ir muito longe..
Sam Keen:
Wittgenstein é um dos poucos filósofos que poderia ter
entendido Don Juan. Sua noção de que existem muitos tipos diferentes de jogos
de linguagem . ciência, política, poesia, religião, metafísica, cada um com sua
própria sintaxe e regras . poderia ter permitido a ele
entender a feitiçaria como um sistema alternativo de percepção e entendimento.
Carlos Castaneda:
Mas Don Juan pensa que o que ele chama de .ver. é apreender
o mundo sem nenhuma interpretação. Este é o fim almejado pela feitiçaria. Para
quebrar a certeza do mundo que sempre lhe foi ensinado, você deve aprender uma
nova descrição do mundo . feitiçaria . e então manter a velha e a nova juntas.
Então você percebe que nenhuma das duas é final. No momento que você desliza
entre as descrições; você para o mundo e vê. Você é deixado com o assombro, o
verdadeiro assombro de ver o mundo sem nenhuma interpretação.
Sam Keen:
Você pensa que é possível ultrapassar as interpretações
usando drogas psicodélicas?
Carlos Castaneda:
Eu penso que não. Está é minha briga com gente como Timothy Leary. Eu penso que ele
estava improvisando dentro da sociedade européia e rearrumando meramente velhos sistemas de interpretação. Eu nunca tomei LSD, mas o que
entendi dos ensinamentos de Don Juan é que os psicotrópicos são usados para
interromper o fluxo das interpretações ordinárias, para aumentar as
contradições dentro das interpretações e para romper as certezas. Mas somente
as drogas não possibilitam você parar o mundo. Por isso que Don Juan teve de me
ensinar feitiçaria.
Sam Keen:
Existe uma realidade normal que nós, ocidentais, pensamos
que é .o. único mundo, e existe também a realidade a parte do feiticeiro. Quais
as diferenças essenciais entre elas?
Carlos Castaneda:
Na sociedade européia o mundo é construído em grande parte
pelo que os olhos informam à mente. Na feitiçaria o corpo todo é usado como percipiente. Como europeus vemos o mundo ao redor de nós e
falamos sobre ele. Nós estamos aqui e o mundo está lá. Os nossos olhos
alimentam a razão e não temos conhecimento direto das coisas. De acordo com a
feitiçaria esta sobrecarga dos olhos é desnecessária.
Nós percebemos com o corpo total.
Sam Keen:
Ocidentais partem do pressuposto que sujeito e objeto são separados. Nós existimos a parte do mundo e temos
de cruzar o vácuo para chegar até ele. Para Don Juan e a tradição dos
feiticeiros, o corpo já está no mundo. Nós estamos unidos ao mundo, e não
alienados dele.
Carlos Castaneda:
Isso mesmo. A feitiçaria tem uma teoria diferente de
personificação. O problema da feitiçaria é o de harmonizar e arrumar seu corpo
para ser um bom receptor. Os europeus lidam com seus corpos como se eles fossem um objeto. Nós os enchemos de álcool, comida ruim e
inquietações. Se alguma coisa está errada nós pensamos que germes de fora invadiram
o corpo e então importamos algum medicamento para curá-lo. A doença não é parte
de nós. Don Juan não acreditava nisso. Para ele a doença é a desarmonia entre
um homem e seu mundo. O corpo é consciente e deve ser tratado impecavelmente.
Sam Keen:
Isto parece similar à idéia de Norman O. Brown's
onde as crianças, esquizofrênicos e aqueles com loucura divina da consciência dionisíaca estão cientes das coisas e das
outras pessoas como extensões de seu corpo. Don Juan sugere algo do tipo quando
diz que os homens de conhecimento têm fibras de luz que conectam seu plexo
solar ao mundo.
Carlos Castaneda:
Minha conversa com o coiote é um bom exemplo das diferentes
teorias de personificação. Quando ele chegou para mim eu disse: .Olá, pequeno
coiote. Como você está?. E ele respondeu de volta: .Estou bem. E você?.. Aqui
eu não escutei as palavras da forma normal.
Mas meu corpo sabia que o coiote estava dizendo alguma coisa e eu traduzi isto em um diálogo. Como um intelectual, minha relação com o diálogo é tão profunda que meu corpo automaticamente transpôs para palavras o sentimento que o animal estava comunicando a mim. Nós sempre vemos o desconhecido nos termos do conhecido.
Sam Keen:
Quando você estava no modo mágico de consciência onde os
coiotes falam e tudo é adequado e entendido parece que o mundo todo está vivo e
o ser humano está em comunicações que incluem animais e plantas. Se
abandonarmos nossas concepções arrogantes de que somos a única forma de vida
que conhece e comunica talvez conseguíssemos perceber toda a sorte de coisas se
comunicando conosco. John Lilly falava com os
golfinhos. Talvez nos sentíssemos menos alienados se pudéssemos acreditar que não somos a única forma inteligente de vida.
Carlos Castaneda:
Nós podemos nos tornar capazes de falar com qualquer animal.
Para Don Juan e os outros feiticeiros não havia nada de estranho na minha
conversa com o coiote. Na verdade eles disseram que eu deveria ter pegado um
animal mais confiável para amigo.Coiotes são
trapaceiros e não pode se confiar neles.
Sam Keen:
Quais animais são os melhores para serem amigos?
Carlos Castaneda:
Cobras são amigos estupendos.
Sam Keen:
Uma vez conversei com uma cobra. Uma noite sonhei que havia
uma cobra no sótão da casa onde eu vivia quando era criança. Peguei um pau e
tentei matá-la. De manhã falei sobre o sonho a um amigo e ela me disse que não
era uma coisa boa matar cobras, mesmo se elas estivessem no sótão em um sonho.
Ela me sugeriu que na próxima vez que aparecesse uma cobra em sonho eu deveria
alimentá-la ou fazer alguma coisa para atrair sua amizade. Cerca de uma hora
depois eu estava dirigindo meu patinete motorizado
numa estrada pouco usada e lá, esperando por mim, estava uma cobra de quatro
pés, estirada no seu banho de sol. Eu a contornei e ela não se mexeu Depois de
nos olharmos um nos outros por um tempo eu pensei que deveria fazer algum gesto
para mostrar que estava arrependido de ter matado seu irmão em meu sonho. Eu
cheguei perto e toquei sua cauda. Ela se enrolou mostrando que eu havia invadido
sua intimidade. Então eu voltei e fiquei apenas olhando. Cinco minutos depois
lá se foi ela atrás dos arbustos.
Carlos Castaneda:
Você não a espetou?
Sam Keen:
Não.
Carlos Castaneda:
Era uma amiga muito boa. Um homem pode aprender a chamar as
serpentes. Mas você precisa estar em excelente forma, calmo, controlado, com um
humor amigável, sem nenhuma dúvida ou assuntos pendentes.
Sam Keen:
A cobra me ensinou que eu sempre tinha pensamentos
paranóicos em relação à natureza. Eu considerava animais e cobras perigosos.
Após meu encontro jamais mataria outra cobra e começou a ser mais plausível
para mim que nós possamos ter uma espécie de conexão viva. Nosso ecossistema
pode muito bem incluir comunicações com outras formas de vida.
Carlos Castaneda:
Don Juan tinha uma teoria muito interessante acerca disso.
As plantas, assim como os animais, sempre afetam você. Ele dizia que se você
não pedisse desculpas para as plantas por colhê-las você provavelmente ficaria
doente ou sofreria um acidente.
Sam Keen:
Os índios americanos tem crenças
similares sobre os animais que eles matam. Se você não agradece o animal por
dar a vida para que você possa viver, seu espírito pode lhe causar problemas.
Carlos Castaneda:
Nós temos uma associação com toda forma de vida. Alguma
coisa se altera toda vez que machucamos a vida vegetal ou animal. Nós tiramos a
vida para sobreviver mas devemos querer abrir mão de
nossa própria vida sem ressentimentos quando chegar nossa vez. Nós somos tão
importantes e nos levamos tão a sério que esquecemos que o mundo é um grande
mistério que pode nos ensinar se escutarmos.
Sam Keen:
Talvez as drogas psicodélicas momentaneamente limpem o ego
isolado e permitam uma fusão mítica com a natureza. A maior parte das culturas
que conservam um senso de união entre o homem e a natureza também fez uso
cerimonial das drogas psicodélicas. Você estava usando peiote quando falou com
o coiote?
Carlos Castaneda:
Não, de maneira alguma.
Sam Keen:
Esta experiência foi mais intensa das que teve quando Don Juan
lhe ministrou plantas psicotrópicas?
Carlos Castaneda:
Muito mais intensa. Todas as vezes que eu tomei plantas
psicotrópicas eu sabia que havia ingerido algo e sempre podia questionar-me
acerca da validade das minhas experiências. Mas quando o coiote falou comigo eu
não tinha desculpas. Não podia explicar isso. Eu realmente parei o mundo e, saí
completamente do meu sistema de interpretações europeu.
Sam Keen:
Você acredita que Don Juan vive neste estado de atenção a
maior parte do tempo?
Carlos Castaneda:
Sim, ele vive num tempo mágico e ocasionalmente volta para o
tempo normal. Eu vivo no tempo normal e ocasionalmente entro no tempo mágico.
Sam Keen:
Qualquer um que tenha viajado tão longe além do desgastado
consenso deve ser alguém muito solitário.
Carlos Castaneda:
Penso que sim. Don Juan vive num mundo impressionante e
deixou as pessoas rotineiras bem longe. Uma vez eu estava junto com Don Juan e
seu amigo Don Genaro e vi a solidão que eles dividiam
e sua tristeza em deixar para trás os enfeites e pontos de referência da
sociedade normal. Penso que Don Juan transformou sua solidão
Sam Keen:
Por exemplo, quando Don Juan levou-o às montanhas para caçar
animais estava conscientemente encenando uma alegoria?
Carlos Castaneda:
Sim. Ele não estava interessado em caçar por esporte ou por
comida. Há 10 anos que
o conheço, e o vi matar apenas quatro animais, e apenas nas vezes em que ele
viu que suas mortes eram um presente para ele, assim como sua própria morte um
dia será um presente para alguma coisa. Uma vez apanhamos um coelho numa
armadilha, ficamos imóveis e Don Juan achou que eu devia matá-lo, pois seu
tempo havia acabado. Fiquei desesperado porque eu tinha a sensação de que eu
mesmo era o coelho. Eu tentei libertá-lo mas não
conseguia abrir a armadilha. Então eu pisei na armadilha e quebrei
acidentalmente o pescoço do coelho. Don Juan estava tentando me ensinar a
assumir a responsabilidade por estar neste mundo maravilhoso. Ele inclinou-se e
sussurrou no meu ouvido: .Eu lhe disse que este coelho não tinha mais tempo
para vagar por este lindo deserto.. Ele conscientemente construiu a metáfora
para me ensinar sobre os caminhos de um guerreiro. Um guerreiro é alguém que
caça e acumula poder pessoal. Para fazer isto ele deve desenvolver a paciência
e se mover deliberadamente sobre o mundo. Don Juan usou a situação dramática da
caçada para me ensinar porque estava se dirigindo diretamente ao meu corpo.
Sam Keen:
Em seu livro mais recente, Viagem a Ixtlan,
você revê a impressão dada nos primeiros livros de que o uso de plantas
psicotrópicas era o método principal usado por Don Juan no intuito de ensiná-lo
sobre a feitiçaria. Como você vê agora o lugar dos psicotrópicos em seus
ensinamentos?
Carlos Castaneda:
Don Juan usou plantas psicotrópicas no período intermediário
do meu aprendizado porque eu era muito estúpido, sofisticado e arrogante. Eu me
agarrava à minha descrição do mundo como se ela fosse a única verdade. Os psicotrópicos criaram um vácuo no meu sistema de interpretações.
Eles destruíram minha certeza dogmática. Mas eu paguei um enorme preço. Quando
a cola que segurava meu mundo unido foi dissolvida, meu corpo estava fraco e eu
demorei meses para me recuperar. Eu fiquei ansioso e funcionava a um nível
muito baixo.
Sam Keen:
Don Juan usa drogas psicotrópicas regularmente para parar o
mundo?
Carlos Castaneda:
Não. Ele pode agora mesmo pará-lo com a sua vontade. Ele me
disse que para mim a tentativa de ver sem a ajuda das plantas seria inútil. Mas
se eu me comportasse como um guerreiro e assumisse a responsabilidade não
precisaria delas; elas apenas enfraqueceriam meu corpo.
Sam Keen:
Isso pode soar um pouco chocante para vários admiradores
seus. Você é uma espécie de santo patrono da revolução psicodélica.
Carlos Castaneda:
Eu tenho seguidores e eles têm idéias estranhas a respeito
de mim. Eu estava andando para dar uma palestra no Califórnia State,
Sam Keen:
Façanha mística?
Carlos Castaneda:
Sim, que eu andava de pés descalços como Jesus e não tinha
calos. As pessoas acham que devo estar doidão a maior parte do tempo. Eu também
cometi suicídio e morri em vários lugares diferentes. Um colega de departamento
quase fez um escândalo quando eu comecei a falar sobre fenomenologia e
sociedade e explorar o conceito de percepção e socialização. Eles queriam que
eu falasse pausadamente, os deixasse altos e fizesse suas cabeças. Mas para mim
o entendimento é importante.
Sam Keen:
Os rumores voam no vácuo de informações. Sabemos alguma
coisa de Don Juan e muito pouco de Castaneda.
Carlos Castaneda:
Isto é uma parte proposital da vida do guerreiro. Para
escapulir dentro e fora de diferentes mundos você deve permanecer discreto.
Quanto mais você ser conhecido e identificado, mais sua liberdade vai ser
reduzida. Quando as pessoas tiverem idéias definitivas sobre quem é você e como
você vai agir, você não poderá mais se mexer. Uma das primeiras coisas que Don
Juan me ensinou foi que eu tinha que apagar minha história pessoal. Se aos
poucos você criar uma névoa em torno de si então você não vai ser tomado como
garantia e você tem mais espaço para se mexer. É por causa disso que eu impeço
gravações de áudio e fotografias quando dou palestras.
Sam Keen:
Talvez possamos ser pessoais sem sermos históricos. Você
agora minimizou a importância da experiência psicodélica em relação ao seu
aprendizado. E você não parece sair por aí fazendo o tipo de truques
disponíveis no estoque dos feiticeiros. Que elementos dos ensinamentos de Don
Juan são importantes para você? Você foi mudado por eles?
Carlos Castaneda:
Para mim as idéias de ser um guerreiro e um homem de
conhecimento, com a esperança de eventualmente parar o mundo e ver, têm sido as mais adequadas. Elas tem
me dado paz e confiança na minha capacidade de controlar minha vida. Na época
que encontrei Don Juan eu tinha muito pouco poder pessoal. Minha vida havia
sido muito errática. Eu percorri um longo caminho desde o local do meu
nascimento no Brasil. Exteriormente eu era agressivo e arrogante, mas
interiormente era indeciso e incerto acerca de mim. Estava sempre forjando
desculpas para mim mesmo. Don Juan uma vez me acusou de ser uma criança
profissional porque eu estava cheio de auto-piedade.
Eu me sentia como uma folha ao vento. Como com a maioria dos intelectuais,
minhas costas estavam contra o muro. Eu não tinha lugar para ir. Eu não podia
perceber nenhuma forma de vida que realmente me excitasse. Eu pensei que tudo o
que poderia fazer era uma acomodação amadurecida para uma vida de tédio ou
encontrar formas mais complexas de entretenimento como usar drogas
psicodélicas, maconha e ter aventuras sexuais. Tudo isso era aumentado pelo meu
hábito de ser introspectivo. Eu estava sempre olhando para dentro de mim e
falando comigo mesmo. O diálogo interno raramente parava.
Don Juan abriu meus olhos para o exterior e ensinou-me a acumular poder pessoal.
Não creio que haja outro pode de vida para alguém que queira estar cheio de energia.
Sam Keen:
Parece que ele fisgou você com o velho truque dos filósofos
de segurar a morte diante dos seus olhos. Eu estava impressionado em perceber
quão clássica a abordagem de Don Juan é. Eu ouvia ecos da idéia de Platão de
que um filósofo deve estudar a morte antes que possa ganhar acesso ao mundo
real e da definição de Martin Heidegger de um homem como um ser-para-a-morte.
Carlos Castaneda:
Sim, mas a abordagem de Don Juan tem um aspecto diferente,
que vem da tradição da feitiçaria, que é o de considerar a morte como uma presença
física que pode ser sentida e vista. Uma das interpretações da feitiçaria é: a
morte está à sua esquerda. A morte é um juiz imparcial que lhe dirá a verdade e
lhe dará conselhos precisos. Afinal, a
morte não está com pressa. Ela lhe pegará em um dia, uma semana, ou 50 anos.
Não faz diferença para ela. No momento que você pensa que eventualmente deve
morrer está reduzindo o lado direito.
Eu acho que ainda não tornei esta idéia vívida o bastante. A interpretação .A morte está a sua esquerda. não é uma questão intelectual na feitiçaria, é percepção. Quando seu corpo está adequadamente sintonizado com o mundo e você vira os olhos para a esquerda, você pode testemunhar um evento extraordinário, a presença sombria da morte.
Sam Keen:
Na tradição existencial, as discussões sobre
responsabilidade geralmente se seguem às discussões sobre a morte.
Carlos Castaneda:
Então Don Juan é um bom existencialista. Se não há como
saber se eu tenho apenas mais minuto de vida, devo agir como se cada instante
fosse o último. Cada ato é a última batalha do guerreiro. Então tudo deve ser
feito impecavelmente. Nada pode ser deixado pendente. Esta idéia foi muito
libertadora para mim. Eu estou aqui falando com você e talvez nunca volte para
Los Angeles. Mas não importa porque eu cuidei de tudo antes de vir para cá.
Sam Keen:
Este caminho de morte e determinação é distante da utopia
psicodélica na qual a percepção do final do tempo destrói a qualidade trágica
da escolha.
Carlos Castaneda:
Quando a morte permanece à sua esquerda você deve criar o
mundo a partir de uma série de decisões.
Não existem decisões grandes ou pequenas, apenas decisões que devem ser tomadas agora. E não há tempo para dúvidas ou remorsos. Se eu passar o meu tempo lamentando o que fiz ontem eu evito as decisões que tenho de tomar hoje.
Sam Keen:
Como Don Juan lhe ensinou a ser determinado?
Carlos Castaneda:
Ele falou com meu corpo através de atos. Meu modo antigo de
ser deixava tudo pendente e nunca decidia nada. Para mim, tomar decisões era
algo feio. Parecia injusto para um homem sensível ter de decidir. Um dia Don
Juan me perguntou: .Você acha que você e eu somos iguais?. Eu era um estudante
universitário e um intelectual e ele era um velho índio, mas eu fui
condescendente e disse: .Claro que somos iguais.. Ele disse: .Eu não acho que
somos. Eu sou um caçador e um guerreiro e você é um frouxo. Eu estou pronto a
abreviar minha vida a qualquer instante. Seu mundo débil de indecisão e
tristeza não é igual ao meu.. Eu fiquei
muito insultado e teria voltado, mas nós estávamos no meio do nada. Então eu
sentei e fiquei absorvido nas armadilhas do meu ego. Eu ia esperar até ele
decidir voltar. Após várias horas percebi que Don Juan ficaria ali para sempre
se precisasse. Por que não? Para um homem sem assuntos pendentes este é o seu
poder. Eu finalmente percebi que este homem não era como meu pai, que podia
tomar 20 resoluções de ano-novo e não cumprir nenhuma. As decisões de Don Juan
eram irrevogáveis enquanto durasse seu interesse. Elas podiam ser canceladas
apenas por outras decisões. Então cheguei perto e o toquei, ele desistiu e
voltamos para casa. O impacto deste ato foi tremendo. Ele me convenceu de que o
caminho do guerreiro é um modo de vida poderoso e vigoroso.
Sam Keen:
O conteúdo da decisão não é tão importante quanto o ato de
ser determinado.
Carlos Castaneda:
Isto é o que Don Juan entende por fazer um gesto. Um gesto é
um ato deliberado que é responsável pelo poder que advém de tomar uma decisão.
Por exemplo, se um guerreiro encontra uma cobra que está dormente e fria, ele
pode esforçar-se por levar a cobra para um lugar quente sem ser mordida. O
guerreiro pode decidir fazer um gesto sem nenhum motivo. Mas ele vai fazê-lo
perfeitamente.
Sam Keen:
Parecem existir muitos paralelos entre a filosofia
existencialista e os ensinamentos de Don Juan.
O que você disse sobre decisões e gestos sugere que Don Juan, como Nietzsche e Sartre, acredita que a vontade, ao invés da razão, é a faculdade mais fundamental do homem.
Carlos Castaneda:
Acho que sim. Deixe-me falar por mim mesmo. O que eu quero
fazer, e talvez consiga executar, é superar o controle da minha razão. Minha
mente tem estado no controle a minha vida toda e ela preferiria me matar a
abandonar este controle. Em um dado ponto de meu aprendizado, eu fiquei
profundamente deprimido. Eu estava cheio de medo, obscuridade e pensamento
sobre suicídio. Então Don Juan me alertou que este é um dos truques da razão
para manter o controle. Ele disse que minha razão estava fazendo meu corpo
sentir que não havia sentido na vida. Uma vez que minha mente travou esta
última batalha e perdeu, a razão começou a assumir o local apropriado de ser
apenas uma ferramenta do corpo.
Sam Keen:
.O coração tem razões que a própria razão desconhece., e
também o resto do corpo.
Carlos Castaneda:
Este é o ponto. O corpo tem vontade própria. Ou melhor, a
vontade é a voz do corpo. Este é o motivo de Don Juan consistentemente colocar
suas lições em uma forma dramática. Meu intelecto poderia facilmente descartar
o mundo da feitiçaria como sem sentido. Mas meu corpo foi atraído por este
mundo e este modo de vida.
E quando o corpo toma o controle, um reino novo e mais saudável se estabelece.
Sam Keen:
As técnicas de Don Juan para lidar com os sonhos me
interessam porque ele sugeste a possibilidade de
voluntariamente controlar as imagens do sonho. Dessa forma ele propõe
estabelecer um observatório estável e permanente dentro do espaço interior.
Fale-me sobre o treinamento de sonhos de Don Juan.
Carlos Castaneda:
O truque nos sonhos é sustentar as imagens tempo o bastante
para que possamos examiná-las cuidadosamente. Para adquirir este controle você
deve escolher uma coisa antes e aprender a encontrá-la nos seus sonhos. Don
Juan sugeriu que eu usasse minhas mãos como ponto fixo e alternasse entre elas
e as imagens. Após alguns meses eu aprendi a usar minhas mãos e parar o sonho.
Fiquei tão fascinado por esta técnica que espero ansioso pela hora de dormir.
Sam Keen:
Parar as imagens nos sonhos é parecido com parar o mundo?
Carlos Castaneda:
É similar. Mas existem diferenças. Uma vez que você se torna
capaz de achar suas mãos quando quiser, você percebe que isto é apenas uma
técnica. O que você quer na verdade é o controle. Um homem de conhecimento deve
acumular poder pessoal. Mas isto não é suficiente para parar o mundo. É
necessário algum abandono. Você precisa parar a conversa que está ocorrendo internamente
e render-se ao mundo exterior.
Sam Keen:
Das várias técnicas que Don Juan lhe ensinou para parar o
mundo, qual você ainda pratica?
Carlos Castaneda:
Minha maior técnica no momento está em romper as rotinas. Eu
sempre fui uma pessoa muito rotineira. Eu comia e dormia sempre nos mesmos
horários. Em 1965 comecei a mudar meus hábitos. Eu escrevia nas horas quietas
da noite e dormia quando sentia necessidade. Agora eu desmantelei tanto meus
hábitos usuais que posso me tornar imprevisível e surpreendente até mesmo para
mim.
Sam Keen:
Sua disciplina me
lembrou de uma história Zen de dois discípulos vangloriando-se de feitos milagrosos.
Um dos discípulos alegava que o fundador da seita a que pertencia podia ficar
em uma das margens do rio e escrever Buda num pedaço de papel segurado por seu
assistente do outro lado do rio. Um outro discípulo alegava que esse milagre não
era muito impressionante. .Meu milagre., disse ele, .é que quando tenho fome,
eu como, e quando tenho sede, eu bebo..
Carlos Castaneda:
É este elemento de compromisso com o mundo que me mantém
seguindo o caminho que Don Juan me mostrou. Não há necessidade de transcender o
mundo. Tudo o que você precisa saber está aqui defronte nós, se prestarmos
atenção. Se você entrar num estado de realidade extraordinária, como faz quando
usa plantas psicotrópicas, está apenas usando a força que precisa para ver o
caráter milagroso da realidade ordinária. Para mim o modo se viver . o caminho
com coração . não é introspectivo ou de transcendência mística, mas a presença
no mundo. Este mundo é o campo de caçada do guerreiro.
Sam Keen:
O mundo que você e Don Juan pintaram é cheio de coiotes
mágicos, corvos encantados, e magníficos guerreiros. É fácil de ver como ele
pode lhe atrair. Mas, e em relação ao mundo de uma pessoa urbana moderna? Onde
está a mágica nele? Se todos nós pudéssemos viver em montanhas talvez
conseguíssemos manter o mistério vivo. Mas como poderemos fazer isso se estamos
perto de uma estrada?
Carlos Castaneda:
Uma vez formulei a mesma questão para Don Juan. Nós
estávamos sentados em um café em Yuma e eu insinuei
que eu poderia me tornar apto a parar o mundo e ver se pudesse viver no ermo
junto com ele. Ele olhou para a janela, viu os carros passando e disse: .Ali,
lá fora, é o seu mundo.. Eu vivo
Sam Keen:
O nível do barulho e a pressão constante de massas de
pessoas parecem destruir o silêncio e a solidão que poderiam ser essenciais
para parar o
mundo.
Carlos Castaneda:
Não de todo. Na verdade, o barulho pode ser usado. Você pode
usar o barulho da buzina para treinar a si mesmo ouvir o mundo exterior. Quando
paramos o mundo, o mundo que paramos geralmente é o que é mantido pelo diálogo
interno. Uma vez que você para o blá-blá-blá interno
você para de manter este mundo. A descrição entra em colapso. É quando começa
nossa mudança de personalidade.
Quando você se concentra nos sons, percebe que é difícil para o cérebro categorizar todos os sons, e em pouco tempo você para de tentar. Não é como a percepção visual que nos mantém formando categorias e pensando. É tão revigorante quando você consegue parar de falar, categorizar e julgar.
Sam Keen:
O mundo interno muda, mas e em relação ao externo? Nós
podemos revolucionar a consciência individual, mas ainda assim não conseguir
tocar as estruturas sociais que criam nossa alienação. Existe um lugar para a
reforma social e política no seu pensamento?
Carlos Castaneda:
Eu vim da América Latina onde os intelectuais estão sempre
falando sobre revolução política e social e onde um muitas bombas são lançadas. Mas a revolução não mudou muita coisa. Requer pouca
coragem bombardear um prédio, mas para desistir de cigarros, parar de ser
ansioso ou parar a tagarelice interna, você tem que reconstruir-se. É aí que começa a verdadeira
reforma. Don Juan e eu estávamos em Tucson não muito
tempo atrás quando estava tendo a Semana da Terra. Alguns homens estavam
palestrando sobre ecologia e os males da guerra do Vietnã. Enquanto isto, eles
fumavam. Don Juan disse: .Não posso imaginar como eles podem se preocupar com
os outros se eles não se gostam de si.. Nossa primeira preocupação deve ser com
nós mesmos. Eu posso gostar dos meus semelhantes apenas quando estiver no auge
do meu vigor e sem depressão. Para estar nesta condição devo manter meu corpo
preparado. Toda revolução deve começar aqui, neste corpo. Eu posso mudar minha
cultura mas apenas através de um corpo impecavelmente
sintonizado com este mundo estranho. Para mim, a verdadeira realização é a arte
de ser um guerreiro, a qual, como diz Don Juan, é o único meio de balancear o
terror de ser um homem com a maravilha de ser um homem.