Entrevista com Carlos Castaneda publicada em 1975
Fonte: Revista Veja nº356 -1975
Nota: Um pouco depois da maliciosa publicação da matéria da revista Time - que desmentia Castaneda num momento em que este tornava-se notório e atingia o centro dos debates afirmando, baseada em obscuros documentos levantados, ser o autor peruano de Cajamarca, e não brasileiro, Castaneda concedeu esta entrevista à Revista Veja. A condição sine qua non para isso foi de que a entrevista deveria sair primeiro no Brasil. O rapaz que fez o free-lancer para a Veja, uma espécie de TIME brasileira, pôde então atestar que Castaneda falava perfeitamente português, com sotaque regional. Castaneda forneceu à revista negativos (fotos) que fez durante suas viagens ao México - provas documentais de seu trabalho antropológico e pesquisa de campo. Infelizmente a Veja optou por não polemizar, e colocou no sub-título não que Castaneda era brasileiro, mas sim que era um "homem só e sem pátria". Após esta entrevista, Castaneda ficou cerca de 10 anos sem falar com a imprensa.
o bruxo, homem só e sem pátria |
Desde que começou a relatar em livros seus encontros com Don Juan,
que remontam a 1960, Carlos César Arana Castaneda transformou-se
na mais invisível e impalpável personalidade literária
da atualidade. Fragmentos incompletos de sua biografia apareceram nas duas
únicas publicações a que concedeu entrevista, as revistas
Time e Psychology Today, não se deixou fotografar
nos últimos dez anos e não se preocupou em esclarecer algumas
dúvidas cruciais. Assim, ele teria nascido no interior de São
Paulo, no dia de natal de 1935, segundo disse ao Time. Mas, de acordo
com a revista, o nascimento de deu dez anos antes numa cidade do Peru.
Comunicado desta descoberta, Castaneda reagiu de maneira impecável
para um aprendiz de feiticeiro que aspira apagar sua identidade pessoal:
"Estas estatísticas não significam nada. Importante o que
nós somos, não o que éramos". Assim, com essa nacionalidade
incerta e com uma idade que caminharia para os 40 ou 50 anos, embora certamente
aparentasse menos, os únicos sinais da existência terrestre
de Castaneda eram um Volkswagen e duas casas de sua propriedade, na Califórnia.
No começo do ano passado, o estudante brasileiro Luiz André
Kossobudzki, então bolsista de educação na Universidade
da Califórnia (UCLA), encontrou-o num jantar beneficiente ao lado
de personalidades literárias "normais", como Irving Stone e Irving
Wallace. Quinze meses depois, no fim de março último, recebeu
de Castaneda os negativos das fotos que o autor tirara no México,
e que VEJA publica junto com esta entrevista exclusiva, à qual o
entrevistado impôs a condição de que deveria ser publicada
no Brasil antes de qualquer outro país. Kossobudzki recorda os seus
encontros:
"Eu, minha mulher e mais quatro casais de bolsistas estrangeiros éramos
talvez os únicos convidados ao jantar que não tínhamos
os nomes gravados em alguma placa de honra. Tentamos, sem conseguir, um
lugar na mesa de Castaneda, mas depois do jantar ele mesmo veio até
nós. Disse-lhe logo que não acreditava ser ele brasileiro.
Começamos a falar em inglês, mas logo depois ele se dirigiu
até nós com lusitana fluência (inclusive sotaque) e
afirmou ter nascido no interior do estado de São Paulo, numa cidade
do vale do Paraíba, e que passara parte de sua infância em
Juqueri* .Combinamos então nos encontrar novamente
para uma feijoada, mas Castaneda desapareceu por vários meses. Um
telefonema do seu agente literário informou que ele ainda
estava interessado em me ver. Finalmente, conversamos três vezes,
uma na minha casa e outras duas no campus da UCLA, onde ele trabalha de
catorze a dezoito horas diariamente, em suas pesquisas sobre étnico-hermenêutica
(estudos da interpretação perceptiva de diferentes grupos
étnicos). Castaneda aparenta ter 35 anos, 1,70 metros de altura
e uns 70 quilos. Fisicamente, passaria por caboclo mato-grossense ou mesmo
nordestino".
*Não
existe nenhum município paulista com esse nome. Juqueri, no entanto,
é o nome de um estabelecimento para doentes mentais no município
de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, que costuma ser confundido
com o nome do hospital. Juquiri é o nome antigo do município
de Mairiporã, também na Grande São Paulo.
Aprendendo a viver com a bruxaria
VEJA - Quando
se lê sobre Don Juan, tem-se a impressão que ele é
um homem pobre e com um vasto conhecimento da vida. O senhor poderia falar
de sua surpresa ao encontrá-lo de terno em "Porta para o Infinito"?
CASTANEDA -
Tremi de medo, pois estava acostumado a vê-lo somente em roupas
de campo. Isto ocorreu na fase final dos ensinamentos e tinha uma razão
de ser. Don Juan revelou-me que era proprietário de diversas ações
na Bolsa de Valores, e tenho quase certeza que se ele fosse um homem tipicamente
ocidental estaria vivendo em um apartamento de cobertura no centro
de Nova York. Finalmente aprendi que as duas realidades poderiam ser dividas
no que Don Juan denominava tonal (consciente) e nagual (que não
se fala). Na realidade do consenso social, o bruxo, o homem de conhecimento,
é um perfeito "tonal" - um homem do seu tempo, atual, que usa o
mundo da melhor forma possível. Nós usamos história
como uma forma de recapturar o mundo passado e planejar para o futuro.
Para o bruxo, passado é passado e não existe história
pessoal nem coletiva.
VEJA - O principal
de seu encontro com Don Juan está escrito no livro "The teachings
of Don Juan"(na versão brasileira, a Erva do Diabo"), mas em lugar
nenhum existe menção de exatamente onde estiveram. Seria
possível uma descrição mais detalhada do local?
CASTANEDA -
Na fronteira entre os Estados da Califórnia (Estados Unidos)
e Sonora (México) existe uma cidade chamada Nogales. Partindo de
Nogales, a rodovia principal passa pela cidade de Hermosillo, capital de
Sonora, pela cidade de Guayamas e finalmente cruza a Estácion de
Vicam. A oeste da Estação de Vicam, em direção
ao Pacífico, encontra-se a cidade de Vicam, habitada em sua maioria
por índios yaquis. Vicam é o local onde pela primeira vez
encontrei Don Juan. Perto de lá obtive os ensinamentos.
VEJA - Para
não tirar a liberdade de Don Juan, até hoje o senhor não
havia revelado este local. Como agora se sente livre en descrevê-lo
com exatidão?
CASTANEDA -
Porque agora ninguém conseguiria achar Don Juan; ele não
está mais por lá, e Don Genaro também sumiu das montanhas
do México Central (Sierra Madre Ocidental). Não existe
jeito nenhum de encontrá-los. Don Juan me mostrou e ensinou tudo
o que ele podia e por isso não há necessidade de que
ele permaneça à minha disposição. Da
mesma forma, você sabe que se quiser me encontrar é só
ir até a UCLA, deixar um recado ou me procurar na biblioteca de
pesquisas. Mas, se eu deixar de vir à UCLA, você não
terá a miníma idéia de onde me encontrar. Como Don
Juan, procuro viver como feiticeiro.
VEJA - Muitas
pessoas, eu inclusive, encontram dificuldades em aceitar factualmente as
descrições dos ensinamentos de Don Juan. O senhor se preocupa
com o fato de as pessoas reagirem dessa forma?
CASTANEDA -
Não, porque não dou ênfase na importância
de minha pessoa. este é um ponto crucial dos ensinamentos que recebi
de Don Juan. Raramente converso com alguém, e quando converso é
face a face. Nada de gravadores ou fotografias, que trariam peso sobre
a minha pessoa. Além de ferir uma das premissas básicas de
feitiçaria e bruxaria, eu estaria tolhendo minha própria
liberdade. Quando enfatizo a minha pessoa, estou me tachando a mim mesmo,
estou colocando nas minhas costas um peso que vai além das minhas
possibilidades de carregá-lo. Colocar tal peso nas costas é
dar uma enorme importância à minha própria pessoa.
Durante os ensinamentos, Don Juan fazia esboços na areia do deserto
com o dedão do pé e preenchia os círculos com verbosidade.
Ele dizia que "cargase a uno mismo" conduz a pessoa a um senso "importância
personal" que combinados não permitem "acciones" por parte da pessoa.
Quanto mais peso as pessoas acumulam, mais importantes elas se sentem,
e menos ações elas executam.
VEJA - Por que
então publicou seus livros?
CASTANEDA -
Porque esta era a minha tarefa. O bruxo cumpre tarefas que são
colocadas em lugar do peso sobre si mesmo e da importância
pessoal. Meu trabalho não é feito de erudição,
mas uma recoleção da vida que Don Juan colocou em seus ensinamentos.
O bruxo cumpre as tarefas que lhe dão satisfação.
Ele as cumpre sem esperar por reconhecimento da sociedade ou coisa que
o valha, o que seria o "carregar-se a si mesmo" exercitado pelo erudito,
com o objetivo de obter importância pessoal, o que não é
meu caso. Por exemplo, se esta entrevista for tomada como um ato de bruxaria,
ela se torna uma tarefa a ser cumprida.
VEJA
- Esta entrevista, seu trabalho, sua obra, e mesmo o fato de trocarmos
idéias por várias horas, tem um efeito que me parece ir além
do simples cumprimento de tarefas. Elas lhe trazem satisfação,
caso contrário não as faria. Além do mais, o senhor
espera que sua mensagem, os ensinamentos de Don Juan, tenham um impacto
sobre público. Não seria este o caso de cumprir tarefas e
esperar pelo reconhecimento da sociedade?
CASTANEDA -
Eu cumpro minhas tarefas tão fluidamente que elas não
me afetam em termos de auto-importância, mas sim em termos de como
vivo minha vida. Conheço dúzias de "professores" que se colocam
numa torre de marfim de conhecimento: eles sabem tudo, e comandam o espetáculo
para as galerias; quanto mais aclamados, ou quanto mais reconhecimento
eles recebem, mais auto-importantes se sentem, mas esta mesma auto-importância
se torna peso, a cruz a ser carregada, e eles como pessoas não
são nada. O trabalho as afeta em termos de auto-importãncia,
mas não em termos de vida pessoal. A mim o trabalho afeta em termos
de vida pessoal, mas não de auto-importância. Don Juan me
alertou e aconselhou que nunca me tornasse um pavão, "pavo real",
que é o resultado à ênfase da importância pessoal.
Quanto menos a pessoa pensa e "pseudo-age" em termos de auto-importância
ela se torna mais completa. E quanto mais auto-importante se sente, mais
incompleta se torna. O ser incompleto nasce da incessante procura por reconhecimento
social.
VEJA
- Mas se a pessoa age, não estaria automaticamente à procura
de auto-reconhecimento?
CASTANEDA -
Não, se estiver agindo como um bruxo. O bruxo vive a vida por
si e para si e não para as galerias. Ele não se deixa influenciar
pelas reações de consenso social, pois não age em
termos de auto-importância. Ele sabe "parar o mundo", ou melhor,
ele tem a capacidade de "não fazer".
O "mundo parado", por um passe de mágica .
VEJA -
E que significa "fazer, "não fazer" e "parar o mundo"?
CASTANEDA -
O objetivo final do bruxo é se tornar um "homem de conhecimento,
mas antes ele tem que aprender a viver como um guerreiro-pirata. Ele tem
que ser um impecável caçador à procura de coragem
e disciplina. O guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade
por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata
eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina.
Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente
olhar. Ele ensinou-me a interpretar o mundo não pelo que se apresenta
na superfície, mas pela essência. Porém, antes poder
enxergar e interpretar o mundo como um guerreiro-pirata, como um bruxo,
tive que aprender como "não fazer", como "parar o mundo". Como você
pode notar, é quase que uma taxinomia de tarefas. Para se ter o
entendimento de "não fazer" é necessário explicar
o significado de "fazer". "Fazer" é o consenso que torna o mundo
existente. O mundo da nossa realidade é realidade porque estamos
envolvidos no "fazer" dessa realidade. As pessoas nascem com uma auréola
de força, poder, que se desenvolve e se entrelaça com o consenso
dominante. As pessoas olham o mundo da forma como lhe foi ditada, com os
olhos do consenso dominante. Por outro lado, "não fazer" é
possível quando uma auréola extra de poder se desenvolve
para formar a existência da realidade de um outro mundo. O guerreiro-pirata
não escapa do "fazer" do mundo, mas luta dentro desta realidade,
a realidade do consenso dominante. o que o auxilia na criação
da auréola extra de poder. O ato de "não fazer" conduz ao
"parar o mundo", que é o primeiro passo para "enxergar". O mundo
da realidade ordinária, do dia-a-dia, nos parece do jeito que é
por causa do consenso social. "Parar o mundo" significa interromper a corrente
comum de interpretação do mundo, do consenso dominante, ou
em outras palavras, parar o consenso é enxergar o mundo como bruxo,
numa realidade não-ordinária. "Parar o mundo" é viver
num espaço temporal mágico, enquanto que viver na realidade
do consenso é viver num espaço temporal ordinário.
VEJA -
Um bruxo é um pragmático, e o senhor mesmo se rotula assim.
Qual seria a aplicação prática de "fazer", "não
fazer" e "parar o mundo"?
CASTANEDA -
Você fuma desbragadamente, como um desesperado. Eu fumava como
você, e cheguei a fumar quatro maços de cigarros por dia,
até que Don Juan sugeriu que eu usasse a minha compulsão
para parar de fumar. Eu deveria ficar envolvido no "não fazer" de
fumar. Para isso eu teria que observar o fazer de fumar. Comecei então
a observar o "fazer" de levantar pela manhã e procurar imediatamente
meus cigarros, o "fazer" de colocá-los no bolso, o "fazer" de apalpar
o bolso da minha camisa com minha mão esquerda para ter certeza
de que os cigarros lá estavam. O lugar do cigarro, o fumar de dois
deles no caminho da universidade, e assim por diante, constituíam
o meu "fazer" de fumar. Como eu, você pode observar o que constitui
o seu "fazer" de fumar. Uma medida sistemática de fazer
leva a pessoa a não executar os detalhes do ato de fumar. Para "parar
o mundo" de fumar a pessoa tem que aprender a compulsivamente dizer não
para o "fazer" de fumar.
1
Este exemplo é grosseiramente uma aplicação
dos ensinamentos, pois eu parei de fumar logo nos primeiros contatos com
Don Juan, mas somente consegui "parar o mundo" da realidade ordinária
depois de dez anos. A partir deste ponto Don Juan deixou de usar plantas
alucinógenas como parte dos ensinamentos.
Guias para se acabar com o bom senso
VEJA
- O senhor não fuma, não bebe e evita até café.
Como então vê o uso de drogas como parte dos ensinamentos
de Don Juan?
CASTANEDA -
Don Juan usou psicotrópicos e plantas alucinógenas como
um auxílio aos ensinamentos. Uma vez atingido o objetivo, estes
veículos se tornaram desnecessários. As drogas são
maléficas para o corpo, e não tem nenhum defeito além
de uma certa qualidade que o bruxo necessita.
VEJA
- De que modo as drogas serviam de instrumento auxiliar aos ensinamentos
de Don Juan?
CASTANEDA -
O mundo como nós o vemos é apenas uma descrição,
e cada item da descrição é uma unidade, o que eu chamo
de "gloss" (aparência externa") Uma árvore é um gloss,
um quarto ou uma sala são glosses. Nós colocamos significado
ao gloss-quarto como sento a reunião de pequenos glosses -
cama, cadeira, camiseira, armário. A realidade do consenso
é formada por uma corrente infinita de glosses, os quais, por sua
vez são formados e interligados por pequenos glosses. Esta corrente
forma, na nossa realidade, um sentido comum, isto é, esta corrente
de glosses tem que fluir em uma direção pré-concebida
que nós chamamos com senso ou sentido comum. Para quebrar ou interromper
a corrente, o bruxo usa drogas que criam um espaço vazio na
corrente, implantando uma nova direção, a direção
do sentido comum ou do bom senso da realidade não ordinária
(realidade da bruxaria). Sentido comum e bom senso estão diretamente
ligados ao nosso corpo. Com o uso de drogas, há uma interrupção
no bom senso e abertura de uma nova direção, e essa nova
direção só pode ser encontrada com um guia (bruxo),
pois de outra forma o uso de tais drogas é sem valor. O homem
geralmente tem a idéia de gozar a vida através dos vícios.
Um viciado é uma criança profissional. Interromper a corrente
de glosses, parar o mundo, com o uso de drogas só pelo prazer
de interromper, só pode causar dano, além de ser uma brincadeira
cujo preço é caro. Uma vez que o corpo aprendeu a interromper
a corrente, não há mais necessidade de auxílio para
tal interrupção. A pessoa interrompe pela própria
vontade.
U ma estranha psicoterapia: sentir-se morto
VEJA - Acha que
o processo de interrupção voluntária da corrente do
"bom senso" seria eficaz se aplicado à psicoterapia?
CASTANEDA -
O sucesso de Don Juan como psicoterapeuta é impressionante. Ele
me fez cônscio de que era uma criança profissional, que eu
estava colocando muito peso sobre mim mesmo, enfatizando minha importância
de pessoal, e não transformando em ações minhas fantasias.
Ele me ensinou a viver para o agora, a encarar a minha morte como um fato
inevitável e existente em minha vida. O conceito de morte deve ser
encarado como uma realidade. Don Juan me ensinou que, se eu me considerasse
como morto, nenhuma das minhas ações teria importância
pessoal, e com isso eu poderia mudar, ou mudanças poderiam ser feitas
e tarefas serem cumpridas. O fato inevitável de morte é muito
mórbido para o homem ocidental, e em conseqüência o Ocidente
procura interação social com o objetivo de ajustamento ao
"bom senso".
VEJA - Seria
correto dizer que a pessoa, em nossa realidade rotulada de psicótica,
para Don Juan seria apenas a pessoa que acidentalmente interrompeu a corrente
do "bom senso" e não conseguiu fazer esta corrente?
CASTANEDA -
Correto. O bruxo quebra a corrente do bom senso por vontade própria.
não é uma coisa acidental. Nas primeiras experiências
tenho quase certeza que sem um guia teria perdido o contato com a realidade
do consenso; em outras palavras, eu não seria capaz de encontrar
o caminho de volta a essa realidade. O guia orienta o aprendiz a sair da
realidade do consenso e a entrar na estranha realidade da bruxaria, bem
como sair daquela estranha realidade e voltar a realidade do consenso.
Este exercício é repetido até que o aprendiz adquira
o domínio da sua própria vontade. Para o psicótico,
o exercício sobre a direção de um psicólogo
clínico ou de um psiquiatra resume-se a retornar à
realidade do consenso, e a permanecer conformado. O bruxo, além
de guia, é o modelo de "homem do conhecimento". Para Don Juan, qualquer
mudança somente é possível se a pessoa praticar seus
próprio ensinamentos. Novamente a filosofia "eu faço o que
eu digo" prevalece.
VEJA - "Porta para o Infinito" menciona o uso de sonhos como um exercício
no domínio e controle da própria vontade. Seria este controle
da mesma natureza do domínio da própria vontade ao que o
senhor acaba de se referir?
CASTANEDA
- Eu menciono neste livro os diversos exercícios para controle
dos sonhos, ou seja, para que a pessoa possa colocar os sonhos a
seu serviço e sonhar produtivamente. Este sonhos requerem o mesmo
domínio da vontade que é necessário para sair e voltar
à realidade ordinária. Sonhos para um bruxo não são
simbólicos, mas frutos do controle que adquire através dos
ensinamentos. Ele dorme sonhando sonhos produtivos, como que uma continuação
do dia a dia, ao invés de sonhar sonhos ordinários comuns,
e sem controle. Aos poucos, uma pessoa consegue se disciplinar, a ponto
de, sonhando, ser capaz de ver a sua própria imagem dormindo a sonhar.
O caso extremo deste controle pode ser exemplificado pelo que Don Genaro
afirma ser capaz - materialização de uma duplicada da sua
própria pessoa. Com o controle dos sonhos a pessoa pode aumentar
a sua capacidade de ação. Todas essas realidades não
exploráveis da realidade do consenso formam um todo - o "homem de
conhecimento".
VEJA
- O senhor acha que nós exploramos e usamos apenas parcialmente
o nosso potencial por razões inerentes à nossa educação
formal?
CASTANEDA -
A educação formal e informal do homem ocidental não
dá margem a nada estranho ou diferente do consenso social. O que
é fora da norma do nosso bom senso é considerado anormalidade.
Também falta ênfase na noção de responsabilidade
para consigo mesmo: não falamos suficientemente da responsabilidade
para as nossas crianças,e por esta razão poucos deixam de
ser crianças, e vivem a vida como crianças-profissionais.
Explicando melhor: a criança profissional é a pessoa que
precisa de carinho e é recompensada por meio de atenção
dispensada a sua pessoa. Ela é auto.importante, um eterno
infant terible. Queria deixar de uma vez por todas de ser criança,
mas eu era muito querido por mim mesmo, e sempre tinha uma desculpa para
que continuasse alimentando minha auto-importância. Não fazia
nada, não produzia nada, ações eram abafadas pelos
meus planos e decisões, e pelo meu senso de importância pessoal.
Até que aprendi com Don Juan a deixar de ser criança profissional
e me tornei guerreiro-pirata.. Ficar sentado, esperando que me dessem tudo
ou sonhando acordado com a glória da minha auto-importância,
não me trouxe nada. Eu tive que ir procurar coragem e disciplina.
De criança
profissional a guerreiro-pirata
VEJA - O senhor
vive como um bruxo, isto é, uma vida de anonimato, enquanto o seu
trabalho é público e de muito sucesso. Qual é a satisfação
pessoal que resulta deste aparente antagonismo entre autor e pessoa?
CASTANEDA - Minha satisfação vem de escrever impecavelmente e de apresentar minha pessoa à luz da verdade. Eu realmente não vejo antagonismo, pois minha vida pessoal é um reflexo da minha obra. Novamente afirmo que faço aquilo que digo, pratico aquilo que prego. E uma vez que sou honesto comigo mesmo, não me importa o que e como a galeria pensa ou reage. Desta forma, sou livre dos altos e baixos. Veja o exemplo de Tinothy Leary, o guru do ácido lisérgico. Ele é um exemplo típico de excesso de auto-importância. Lá pelas tantas o peso se tornou demasiado e ele teve que pagar o preço extremo. Muitos são os escritores que pregam mas não seguem a própria pregação, muitas são as pessoas que promovem um corpo forte e uma mente sadia, mas acabam destruindo gradativamente o próprio corpo e mente. Don Juan era o modelo que fazia e praticava tudo aquilo que era colocado como tarefa para mim, durante todos os anos da aprendizagem.
VEJA -
O senhor mencionou o modelo de Don Juan, mas foi também exposto
a um outro modelo: o consenso social. Como alia esses modelos em sua vida?
CASTANEDA -
O modelo de Don Juan me deu os parâmetros de uma realidade diferente
da do consenso social. Outro modelo me conduzia ao eterno enfant terrible.
Ao longo dos ensinamentos, abandonei este último. Um modelo me conduzia
à criança profissional, e outro ao verdadeiro guerreiro-pirata.
Quando a pessoa tira o senso de auto-importância o senso de auto-importância
do seu caminho e toma a consciência de que o homem que puxa a corda
e trama os pauzinhos é tão humano quanto eu ou você,
ela pode atingir aquilo que quiser. A pessoa pode ser ultra-inteligente
e cheia de recursos, mas se somente espera que as coias lhe venham às
mãos, quando não é atendida pelo mundo cai num estado
de ódio, remorso e medo. O guerreiro-pirata não tem medo,
ele não espera que as coisas venham até ele. Ele age, cumpre
suas tarefas, e ao mesmo tempo não se preocupa com as conseqüências.
Notas
1
Em uma
entrevista mais recente, concedida a Carmina Fort, Castaneda relata que
Don Juan, para fazê-lo parar de fumar, certa vez levou ao deserto,
avisando que iam passar lá vários dias. Castaneda fez um
estoque de cigarros, com várias caixas embrulhadas. Enquanto dormiam,
os cigarros sumiram. Castaneda, desesperado, procurava uma explicação.
Don Juan disse que talvez tivesse sido os coiotes. Rondaram as habitações
próximas mas não acharam nada para Castaneda fumar. Esse
acontecimento foi decisivo para ele largar o mau-hábito (nota do
redator)