Chico Rei
Viriato Corrêa
In “Meu Torrão”
E o velho, apontando-me o Alto da Cruz, perguntou-me:
Não vê, lá em cima, uma pia de pedra?
Vejo.
Tem mais de duzentos anos.
Era em Ouro Preto, numa daquelas tardes silenciosas que envolvem a velha cidade num lençol de doçura. O velho falava-me de coisas antigas.
— Naquela pia de pedra é que as negras de Chico Rei, nos dias de festa, lavavam os cabelos empoados de ouro. Conhece a história de Chico Rei? interrogou-me.
— Não.
Sentou-se. Sentei-me.
— Chico Rei, disse ele, era o monarca de uma nação qualquer lá da África. E rei poderoso, com uma corte numerosa e um exército respeitado pelos reis vizinhos. O seu povo vivia feliz e farto, cultivando a terra.
Um dia chegou a notícia de que os reinos próximos estavam sendo atacados pelos brancos europeus que escravizavam os negros. Uma cidade vizinha tinha sido cercada de surpresa, quando a população dormia e quase toda ela escravizada.
O monarca reuniu o seu exército e preparou-se para resistir. Se os brancos invadissem qualquer pedaço do seu país, o seu povo lutaria até vencer ou até morrer.
Uma noite vieram-lhe trazer uma notícia assustadora: uma das suas aldeias tinha sido assaltada por um bando de negreiros(1) e os habitantes presos e reduzidos à escravidão.
Mas os inimigos estavam ainda em terras do seu reino e podiam ser combatidos. Mandou reunir imediatamente as tropas e imediatamente as enviou ao encontro dos assaltantes.
Foi no dia seguinte à partida do exército que se deu a grande desgraça.
Noite profunda. A cidade real dormia desprevenida, sem defesa. De repente ouvem-se tiros, gritos, alaridos. A população acorda trêmula, assustada. Eram os negreiros que chegavam. A guarda do palácio vem para a rua. Vêm para a rua o rei, a rainha, os príncipes.
O monarca tenta resistir com os poucos soldados de sua guarda. Mas é impossível repelir o ataque: os negreiros servem-se de armas de fogo que ninguém ali conhece.
(1) Negreiro — o que escraviza os negros para vendê-los.
Chega o momento desesperador: ou todo o mundo foge ou será escravizado. Começa a debandada. É o salve-se quem puder. Mas a cidade está cercada por todos os lados.
Dá-se então o desastre. Quase toda a gente é subjugada. Os brancos não respeitam nada, nem as mulheres, nem as crianças. São todos amarrados como se amarram bichos, metidos em algemas e tocados pelos caminhos como se faz com as boiadas.
Ele, a mulher, os filhos, toda a família, toda a corte, têm a mesma sorte dos outros negros.
A caminhada pela floresta dura dias.
Uma tarde chega-se à beira de uma praia. Há um navio no porto. Para dentro do porão do navio atira-se toda aquela multidão sem dó nem piedade. Lá dentro cabem apenas cem pessoas e, no entanto, são quinhentas que metem lá dentro.
Depois o navio começa a balançar e todas aquelas criaturas, ali no porão imprensadas, sem fôlego, uivam, gritam, rugem no desespero de quem sente que vai morrer por falta de ar.
E, na verdade, começa a morrer gente, a morrer. Todos os dias os negreiros atiram ao mar dois, três, cinco cadáveres.
Ele, o rei, resiste a todas as amarguras e a todos os sofrimentos. Morrem-lhe dois filhos e ele não diz palavra.
Afinal o navio chega ao Rio de Janeiro. O bando de negros é exposto numa praça onde os compradores os examinam como os ciganos examinam os cavalos que querem comprar.
Ele, a mulher, os filhos que lhe restam e quase toda a sua gente, são vendidos para as fazendas de Minas Gerais.
E Chico Rei vem aqui para Ouro Preto com a mulher.
Dizem que nunca houve no mundo escravos mais trabalhadores e mais cumpridores dos seus deveres do que eles dois. Os próprios senhores os respeitavam. Contam que, alguns anos depois, o ex-soberano, trabalhando sem descanso, conseguiu juntar dinheiro para comprar a carta de alforria(1) de sua mulher. Mais tarde era a sua própria liberdade que ele comprava.
Todo o mundo esperava que os dois, já quase velhos, fossem descansar dos sofrimentos que a sorte lhes dera. Mas, eles continuaram a trabalhar dia e noite e agora mais do que nunca.
Tempos depois, os dois libertavam um filho. Os três trabalhando, trabalhando, libertaram outro. Os quatro, agora, libertaram mais um. E reunidos, compraram a alforria de uma outra figura da corte. Mais outra figura arrancada da escravidão, mais outra, outra mais.
O reino africano ia-se, pouco a pouco, recompondo. O antigo monarca já recebia dos seus as mesmas homenagens que lhe eram prestadas lá na África.
E Chico Rei (assim era ele conhecido em Ouro Preto) voltou a governar a sua gente como lá nas suas terras africanas.
Verdadeira vida de soberano a sua. A mulher passou a ter honras de rainha. O filho mais velho as de príncipe herdeiro, as noras de princesas.
E o reino negro, que por algum tempo desapareceu, ressuscitou e teve na terra mineira vida risonha e feliz.
( 1) Carta de alforria — carta de liberdade que o senhor dá ao escravo.
Até a riqueza veio ao encontro daquela gente. Chico Rei, com o dinheiro de seu povo, comprou as magníficas minas da Encardideira. E com o ouro das minas os negros viveram vida de luxo.
As festas do dia 6 de janeiro de cada ano foram as mais bonitas a que esta cidade já assistiu. Chico Rei, a mulher, os filhos, toda a família real, toda a corte, toda a gente que compunha o reino, iam à igreja pela manhã.
Que riqueza! As mulheres levavam os cabelos empoados de ouro e, ali, naquela pia de pedra que dois séculos não derrubaram, lavavam elas os cabelos.
O pó de ouro ia-se depositando no fundo da pia. Ao terminar a festa havia centenas e centenas de oitavas de ouro em pó.
Vendia-se depois todo esse ouro em pó. E libertavam-se depois mais e mais escravos.
Chico Rei não queria apenas a liberdade dos seus súditos. Queria a de todos os negros.
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