CONSOLANDO
O ESPECIALISTA1
PAUL FEYERABEND
University
of California, Berkeley
Tradução de Octavio Mendes Cajado. Fonte: Atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência, Londres 1965
"Há anos venho enforcando gente,
mas nunca vi tamanho estardalhaço."
(Observação feita por Edward "Lofty" Milton, carrasco em meio-expediente, na Rodésia, por ocasião das
demonstrações contra a pena de morte.) "Ele era — diz a revista Time
(15 de março de 1968) — profissionalmente incapaz de compreender a
comoção."
1.
Introdução.
2. Ambigüidade
da apresentação.
3. Solução
de enigmas como critério de ciência.
4. Função
da ciência normal.
5.
Três
dificuldades do raciocínio funcional.
6.
Existe
a ciência normal?
7.
Em
defesa do hedonismo.
8. Uma alternativa: o
modelo de mudança científica de Lakatos.
9. O papel da razão na
ciência.
1. INTRODUÇÃO
Nos anos de 1960 e 1961, quando Kuhn
era membro do departamento
de filosofia da Universidade da Califórnia em Berkeley, tive a felicidade de
poder discutir com ele vários aspectos da ciência. Essas discussões me foram
enormemente valiosas e, a partir de então, passei a olhar para a ciência de um
novo modo.2 Entretanto, enquanto pensava, eu reconhecia os problemas
de Kuhn; e enquanto tentava explicar certos aspectos da ciência para
os quais ele me chamara a atenção (a onipresença das anomalias é um exemplo);
senti-me totalmente incapaz de concordar com a teoria da ciência que
ele mesmo propôs; e estava ainda menos preparado para aceitar a ideologia geral
que supus constituir a base do seu pensamento. Parecia-me que essa ideologia só
poderia proporcionar conforto ao mais tacanho e presunçoso tipo de
especialismo, pois tenderia a inibir o progresso do conhecimento e aumentaria
fatalmente as tendências anti-humanitárias que são uma característica tão
inquietante de grande parte da ciência pós-newtoniana.3 Sobre todos
esses pontos minhas discussões com Kuhn permaneceram inconclusivas. Mais de uma
vez ele interrompeu um dos meus longos sermões, assinalando que eu o interpretara
mal, ou que nossas concepções se achavam mais próximas do que eu as fizera
parecer. Agora, relembrando nossos debates,4 bem como os trabalhos
que Kuhn publicou desde que partiu de Berkeley, não tenho muita certeza de que
fosse esse o caso. E sinto-me fortalecido pelo fato de que quase todos os
leitores da Structure of Scientific Revolutions de Kuhn o interpretam
como eu o faço, e que certas tendências que se observam na sociologia e na
psicologia modernas são exatamente o resultado desse gênero de interpretação.
Por conseguinte, espero que Kuhn me perdoe, mais uma vez, por ventilar as
velhas questões e não me leve a mal a maior ou menor grosseria em meu esforço
por ser breve.
2. AMBIGÜIDADE DE
APRESENTAÇÃO
Todas as vezes que leio Kuhn, perturba-me a seguinte
pergunta: estamos aqui diante de prescrições metodológicas que dizem ao
cientista como há de proceder; ou diante de uma descrição, isenta de
qualquer elemento avaliativo das atividades geralmente rotuladas de
"científicas"? Parece-me que os escritos de Kuhn não conduzem a uma resposta direta.
São ambíguas no sentido de que são compatíveis com ambas as interpretações e a ambas dão apoio. Ora, essa ambigüidade (cuja expressão estilística e cujo
impacto mental têm muita coisa em
comum com ambigüidades semelhantes em Hegel e Wittgenstein) não é, de
modo algum uma questão secundária. Tem tido um efeito definido sobre os
leitores de Kuhn e fê-los olhar para o seu assunto e lidar com ele de maneira
não de todo vantajosa. Mais de um cientista
social me assinalou que agora, afinal, aprendeu a transformar seu campo em "ciência — querendo
dizer com isso, naturalmente, que aprendeu a aperfeiçoá-lo. De
acordo com essa gente, a receita consiste em restringir a crítica, reduzir a um
o número de teorias compreensivas e criar uma ciência normal que tenha por
paradigma essa teoria.5 Devem impedir-se os estudiosos de especular ao longo de linhas diferentes e
os colegas mais irrequietos precisam
ser induzidos a conformar-se e a "realizar trabalho sério". È isto
o que Kuhn deseja conseguir!6 É sua intenção fornecer uma justificação histórico-científica para a
necessidade cada vez maior de
identificar-se com algum grupo? Deseja ele que todo assunto imite o
caráter monolítico, digamos, da teoria quântica de 1930? Acredita ele que uma disciplina construída dessa maneira
se encontra em melhor situação? Que levará a resultados melhores, mais
numerosos e mais interessantes? Ou é o seu
grupo de seguidores, entre os sociólogos, um efeito secundário e
não-pretendido de um trabalho cujo único
propósito é referir "wie es wirklich gewesen" sem implicar que
as características referidas são
dignas de imitação? E se este é o único propósito do trabalho, por que
então o constante mal-entendido, e por que o estilo ambíguo e, de vez em
quando, altamente moralizante?
Aventuro-me a conjeturar que a ambigüidade é pretendida
e que Kuhn deseja explorar plenamente
suas potencialidades propagandísticas. Deseja, de um lado, dar um apoio sólido,
objetivo e histórico a julgamentos de valor que ele, como muitas outras
pessoas, parece considerar arbitrários e subjetivos. Por outro lado, deseja deixar para si mesmo uma segunda linha segura de
retirada: os que desgostam da derivação implícita de valores a partir
de fatos sempre poderão ouvir dizer que essa derivação não se faz e que a
apresentação é puramente descritiva. Minha primeira série de perguntas, portanto, é a seguinte: por que a ambigüidade?
Como deve ela ser interpretada? Qual
é a atitude Kuhn para com a espécie de seguidores que descrevi? Não terão eles sabido lê-lo? Ou são
os legítimos seguidores de uma nova visão da ciência?
3. SOLUÇÃO E ENIGMAS
COMO CRITÉRIO DE CIÊNCIA
Deixemos de lado o problema da apresentação e
suponhamos que o objetivo de Kuhn seja, com efeito, dar apenas uma descrição
de acontecimentos históricos e instituições influentes.
De acordo com essa interpretação, é a existência
de uma tradição de solução de enigmas que,
de fato, aparta as ciências de outras atividades. Aparta-as de
modo "muito mais seguro e mais direto", de maneira "ao mesmo tempo. .. menos equívoca e. .. mais fundamental",7 do que outras
propriedades mais recônditas que as ciências também possuem. Mas se a
existência de uma tradição de solução de enigmas é tão essencial, a
ocorrência dessa propriedade unifica e caracteriza
uma disciplina específica e bem reconhecível; nesse caso não vejo como poderemos excluir de nossas
considerações, digamos, a filosofia de Oxford ou, para tomar um exemplo ainda
mais extremo, o crime organizado.
Pois tudo indica que o crime
organizado é a solução de enigmas par excellence. Todo
enunciado feito por Kuhn a respeito da ciência normal permanece
verdadeiro quando substituímos "ciência normal" por "crime
organizado"; e todo enunciado que ele escreveu acerca do
"cientista" individual aplica-se com a mesma força, digamos, ao
arrombador de cofres individual.
O crime organizado mantém a pesquisa fundacional em um nível mínimo8 embora haja indivíduos
notáveis, como Dillinger, que introduzem
idéias novas e revolucionárias.9 Conhecendo mais ou menos, em suas
linhas gerais, os fenômenos que devem ser esperados, o arrombador de
cofres profissional "deixa de ser um explorador… ou, pelo menos, um
explorador do desconhecido [supõe-se, afinal de contas, que ele conheça todos
os tipos existentes de cofres]. Ao invés disso, luta para. . . concretizar o
conhecido [isto é, descobrir as idiossincracias do cofre com que está lidando],
destacando para essa tarefa muitos aparelhos especiais e muitas adaptações
especiais da teoria".10
Segundo Kuhn, o malogro da consecução reflete-se, por certo, "na
competência do [arrombador de cofres] aos olhos dos colegas de profissão"
n de modo que "é o indivíduo [o arrobador de cofres] e
não a teoria vigente [do eletromagnetismo, por exemplo] que está sendo posto à prova" 12; "só o
profissional é censurado, não os seus instrumentos" 13
— e assim podemos continuar passo a passo, até o derradeiro item da
lista de Kuhn. A situação não melhora pelo fato de assinalarmos a existência de
revoluções. Primeiro, porque estamos lidando com a tese de que é a
ciência normal que se caracteriza pela
atividade de solução de enigmas. E, segundo, porque não há razão para
acreditar que o crime organizado ficará para trás no domínio das principais dificuldades. De mais a mais, é a pressão derivada do número sempre crescente de anomalias
que leva, primeiro a uma crise, depois a uma revolução; e quanto maior
a pressão, tanto mais cedo ocorrerá a
crise. Ora, pode-se esperar que a pressão exercida sobre os membros de
uma gangue e seus "colegas profissionais"
excede as pressões exercidas sobre o cientista — este último dificilmente terá de haver-se com a polícia. Para
onde quer que olhasse — a distinção que desejamos traçar não existe.
É claro que isto não constitui surpresa. Pois Kuhn, tal como
o interpretamos agora e como ele mesmo muitas vezes deseja ser interpretado,
deixou de fazer uma coisa importante. Deixou de discutir a finalidade da
ciência. Todo criminoso sabe que, além de obter êxito em sua profissão e ser
popular entre.os criminosos seus semelhantes, ele deseja uma coisa: dinheiro.
Também sabe que sua atividade criminosa normal lhe dará exatamente isso. Sabe
que receberá mais dinheiro e subirá mais depressa na escada profissional
quanto melhor solucionador de enigmas se revelar e quanto melhor se ajustar à
comunidade criminosa. Sua finalidade é o dinheiro. Qual é a finalidade do
cientista? E, tendo em vista essa finalidade, a ciência normal poderá conduzir
a ela? Ou os cientistas (e os filósofos de Oxford) serão menos racionais do que
os gatunos por "fazerem o que fazem" independentemente de qualquer
finalidade?14 São essas as perguntas que se formulam quando
desejamos restringir-nos ao aspecto puramente descritivo do relato de Kuhn.
4. A FUNÇÃO DA
CIÊNCIA NORMAL
A fim de responder a essas perguntas precisamos
considerar não só a estrutura real da ciência normal kuhniana, mas
também sua função. A ciência normal, diz ele, é uma pressuposição
necessária das revoluções.
De acordo com essa parte do raciocínio a atividade vulgar
associada à ciência "madura" exerce efeitos de longo alcance — não
só sobre o conteúdo de nossas idéias, mas também sobre sua substancialidade.
Tal atividade, tal preocupação com "minúsculos enigmas" conduz a
um rigoroso ajustamento entre a teoria e a realidade, e precipita o progresso.
Isso acontece por várias razões. Em primeiro lugar, o paradigma aceito orienta
o cientista: "Como demonstrará um olhar dirigido a qualquer história
natural baconiana ou a um apanhado do desenvolvimento pré-paradigmático de
qualquer ciência, a natureza é tão complexa que não pode ser estudada nem
aproximadamente ao acaso".15 Esse ponto não é novo. A
tentativa de criar conhecimento necessita de orientação, não pode começar do
nada. Mais especificamente, necessita de uma teoria, um ponto de vista que permita ao pesquisador
separar o relevante do irrelevante, e que lhe mostre as áreas em que a pesquisa
será mais proveitosa.
A essa idéia comum adiciona Kuhn um
toque específico pessoal. Ele defende não só o uso de
suposições teóricas, mas também a esco lha exclusiva de
um conjunto particular de idéias, a preocupação monomaníaca com um ponto de vista
isolado. E defende tal modo de proceder
porque este último desempenha um papel na ciência real tal como ele a vê. Eis aí a ambigüidade entre a
descrição e a recomendação, de que
já tratamos. Mas defende-o também por uma segunda razão, um pouco mais
recôndita por não terem sido explicitadas as preferências que se escondem
atrás dela. Defende-o por acreditar que sua
adoção acabará conduzindo à derrubada do mesmíssimo paradigma a que os
cientistas se restringiram em primeiro lugar. Se falhar até o esforço mais
adequado para ajustar a natureza às suas
categorias; se se frustrarem repetidamente as expectativas muito definidas, criadas por essas categorias, então
seremos forçados a procurar algo novo. E só não somos forçados a fazê-lo
por uma discussão abstrata de
possibilidades que não toca a realidade, mas é antes guiada por nossas simpatias e antipatias 16;
somos forçados a fazê-lo por
processos que estabeleceram íntimo contato com a natureza e, portanto, em
última instância, pela própria natureza. Os debates da pré-ciência com
sua crítica universal e sua proliferação desinibida de idéias são "freqüentemente dirigidos assim aos membros de outras
escolas como. . . à natureza".17 A ciência matura, sobretudo
nos períodos tranqüilos que antecedem
imediatamente a tempestade, parece
dirigir-se tão-somente à natureza e pode, portanto, esperar uma resposta
definida e objetiva. A fim de obter essa resposta precisamos de mais do
que de uma coleção de fatos reunidos a esmo. Mas também precisamos de mais do que de uma discussão interminável de ideologias
diferentes. O que precisamos é a aceitação de uma teoria e a tentativa
inexorável de ajustar a natureza ao seu padrão. Creio ser esta a principal
razão por que a rejeição, por uma ciência madura, da batalha desinibida entre alternativas seria defendida por Kuhn não
só como fato histórico, mas também como movimento racional. É
aceitável essa defesa?
TRÊS DIFICULDADES DO
RACIOCÍNIO FUNCIONAL
A defesa de Kuhn é aceitável contanto que
as revoluções sejam desejáveis c contanto
que o modo particular com que a ciência normal conduz às revoluções
também seja desejável.
Ora, não vejo como a desejabilidade das
revoluções pode ser estabelecida por Kuhn. As revoluções ocasionam uma mudança
de paradigma. Seguindo, porém, o relato feito por Kuhn
dessa mudança, ou
"transferência de gestalt" como ele lhe chama é impossível
dizer que elas conduziram a algo melhor. É
impossível dizê-lo porque os paradigmas
pré-revolucionários e pós-revolucionários são freqüentemente incomensuráveis.18
Esta, para mim, seria a primeira dificuldade do raciocínio funcional
usado em conexão com o resto da filosofia de Kuhn.
Em segundo lugar, temos de
examinar o que Lakatos denominou "estrutura fina" da transição: ciência
normal/revolução, capaz de revelar
elementos que não desejamos tolerar. Tais elementos nos forçariam a considerar maneiras diferentes de
provocar uma revolução. Assim sendo é perfeitamente imaginável que
cientistas abandonem um paradigma por efeito da frustração e não por terem
argumentos contra ele. (Matar os representantes do status quo seria
outra maneira de acabar com um paradigma.19) Como procedem realmente
os cientistas? E como desejaríamos nós
que eles procedessem? Um exame dessas perguntas leva a uma segunda dificuldade
do raciocínio funcional.
No intuito de mostrá-la tão claramente
quanto possível, consideremos primeiro os seguintes problemas
metodológicos: E possível dar razões para proceder como procede,
segundo Kuhn, a ciência normal, isto é, tentando aferrar-se a uma teoria apesar da
existência de uma evidência prima facie,
refutadora de argumentos contrários lógicos e matemáticos? E presumindo~se que seja possível dar tais razões — será
possível abandonar a teoria sem violar as mencionadas razões?
Nas linhas que se seguem
chamarei ao conselho para escolher, dentre certo número de teorias, a que promete
conduzir aos resultados mais proveitosos, e
ao conselho para aferrar-se a essa teoria, ainda que as dificuldades reais que
ela encontre sejam consideráveis, o princípio da tenacidade.20 O
problema, pois, é como defender, esse princípio, e como mudar nossa fidelidade
aos paradigmas de modo que seja compatível com ele ou talvez até ditado por
ele. Não nos esqueçamos que estamos aqui
lidando com um problema metodológico e não com a
questão de saber como procede realmente a ciência. Lidamos com ele
porque esperamos que sua discussão nos aguce
a percepção histórica e nos conduza a interessantes descobertas históricas.
Agora a solução do problema é direta. O princípio da tenacidade
é racional porque as teorias são capazes de desenvolvimento, porque podem ser
melhoradas, e porque podem finalmente ser capazes
de acomodar as mesmíssimas dificuldades que, em sua forma original, se
mostravam totalmente incapazes de explicar. Ademais, não é muito prudente confiar demasiado em resultados experimentais.
Seria, com efeito, uma surpresa completa e até motivo de suspeita se toda
a evidência disponível viesse a sustentar uma única teoria, mesmo que
acontecesse ser essa teoria verdadeira. Experimentadores diferentes estão sujeitos a cometer erros
diferentes e é preciso geralmente que se passe muito tempo antes que
todas as experiências sejam reduzidas a um
denominador comum.21 A esses argumentos em favor da tenacidade, o Professor Kuhn ajuntaria
que uma teoria também fornece critérios de perfeição, de
malogro, de racionalidade, e que se deve sustentá-la o maior tempo possível, a
fim de manter o discurso racional o maior
tempo possível. O ponto mais importante, todavia, é este: quase nunca acontece
serem as teorias comparadas diretamente "aos fatos" ou "à
evidência". O que conta e o que não conta como evidência relevante geralmente
depende da teoria bem como de outros temas que podem ser convenientemente
denominados "ciências auxiliares" ("teorias que servem como
pedra de toque" é a acertada
expressão de Imre Lakatos22). Tais ciências auxi-liares podem funcionar como premissas adicionais
na derivação de enunciados testáveis. Mas também podem contaminar a
própria linguagem de observação,
fornecendo os conceitos em cujos termos se expressam os resultados
experimentais. Desse modo, um teste da concepção
copernicana envolve, de um lado, suposições relativas à atmosfera terrestre, o efeito do movimento sobre
o objeto movido (dinâmica); e, de outro, envolve suposições tocantes à
relação entre a experiência dos sentidos e
"o mundo" (incluindo as teorias da cognição e as da visão telescópica).
As primeiras suposições funcionam como premissas, ao passo que as últimas determinam quais são as impressões
verídicas e, assim, nos permitem não
só avaliar mas também constituir nossas observações. Ora,
não há garantias de que uma mudança fundamental em nossa cosmologia, como, por
exemplo, a mudança de um ponto de vista geostatico para um ponto de vista
heliostático, caminhará de mãos dadas com
um aprimoramento de todos os assuntos auxiliares pertinentes. Ao contrário:
esse desenvolvimento é sumamente improvável. Quem esperaria, por
exemplo, que a invenção do copercia-nismo e do telescópio fosse logo seguido
pela ótica fisiológica apropriada?
Teorias básicas e assuntos auxiliares estão muitas vezes "cm desacordo". Em
decorrência disso, obtemos instâncias refutadoras que não indicam que uma nova
teoria está fadada ao fracasso, mas apenas que não se ajusta por enquanto ao
resto da ciência. Sendo esse o caso, os
cientistas devem desenvolver métodos que lhes permitam reter suas
teorias em face de fatos refutadores evidentes e sem ambigüidades, ainda que não sejam eminentes explicações testa-veis
para o choque. O princípio da tenacidade (ao qual só dou o nome de
"princípio" por motivos mnemônicos) é um primeiro passo na Construção
de tais métodos.23
Tendo adotado a tenacidade, já não
podemos empregar fatos recalcitrantes
para remover uma teoria, T, ainda que os fatos sejam tão evidentes e
diretos quanto a própria luz do dia. Mas podemos usar outras teorias, T’
T", T", etc, que acentuam as dificuldades de T se
bem prometam, ao mesmo tempo, meios para a sua solução. Nesse caso, a eliminação de T é exigida pelo próprio princípio da
tenacidade.24 Daí que, se a nossa finalidade é a mudança de
paradigmas, devemos estar preparados para introduzir e expressar alternativas
de T ou, como o diremos (novamente por motivos mnemônicos), precisamos
estar preparados para aceitar um princípio de proliferação. Proceder de
acordo com esse princípio é um método de precipitar revoluções. É um
método racional. Mas é o método que a
ciência realmente usa? Ou os cientistas se mantêm fiéis aos seus
paradigmas até o fim e até que a repulsa, a frustração e o tédio lhes impossibilitem
de todo continuar? Que é o que acontece no fim de um período normal? Vemos que nosso pequeno conto de fadas metodológico
nos leva, com efeito, a encarar a história com a vista aguçada.
Lamento dizer que não me satisfaz o que Kuhn tem
para oferecer neste ponto. De um lado, ele enfatiza com firmeza os traços dógmáticos,25
autoritários26 e tacanhos27 da ciência normal, o fato de
que ela conduz a um temporário "fechamento da mente",28
que o cientista que dele participa
"deixa em grande parte de ser um explorador. . .ou, pelo menos, um explorador do desconhecido. Em lugar disso,
ele luta para articular e concretizar o conhecido…"29 de
sorte que "é [quase sempre] o cientista individual, muito mais do que [a
tradição de solução de enigmas, ou até alguma] teoria vigente que está sendo testada".30
"Só o profissional é censurado, seus instrumentos, não." 31 Ele
compreende, naturalmente, que uma ciência específica, como a física,
pode conter mais de uma tradição para a solução
de enigmas, mas ele lhe enfatiza a "quase independência", afirmando
que cada uma delas é "guiada por seus próprios paradigmas e enfrenta seus próprios problemas".32
Por conseguinte, uma só tradição será guiada por um só paradigma. Este é
um lado da história.
De outro lado, ele assinala que a solução de
enigmas é substituída por argumentos mais "filosóficos" assim que se
faz a escolha "entre teorias concorrentes".33
Ora, se a ciência normal é de jacto tão monolítica
quanto o quer Kuhn, de onde vêm as teorias
concorrentes? E se estas efetivamente surgem, por que haveria Kuhn de
levá-las a sério e permitir-lhes que
provoquem uma mudança do estilo argumentativo da "científico"
(solução de enigmas) para o "filosófico"? 34
Lembro-me muito bem de que
Kuhn criticou Bohm por haver perturbado a uniformidade da teoria quântica
contemporânea. Não se permitiu à teoria de Bohm que modificasse o estilo argumentativo. Einstein, que Kuhn menciona
na citação acima, tem permissão para fazê-lo, talvez porque sua teoria esteja agora mais bem
entrincheirada que a de Bohm. Significa
isso, porventura, que se permite a proliferação contanto que as
alternativas concorrentes estejam bem entrincheiradas? Mas a pré-ciência,
que possui exatamente essa característica, é considerada inferior à ciência. De mais
a mais, a física do século XX contém uma tradição que deseja isolar a teoria
geral da relatividade do resto da física, e restringi-la ao muito amplo. Por
que Kuhn não sustentou essa tradição, que está de acordo com sua concepção da
"quase independência" dos
paradigmas simultâneos? Inversamente, se a existência de teorias concorrentes envolve uma mudança
do estilo argumentativo, não devemos duvidar dessa pretensa quase
independência? Não fui capaz de encontrar nos escritos de Kuhn uma
resposta satisfatória a essas perguntas.
Levemos o ponto um pouco mais adiante. Kuhn não
se limitou a admitir que a multiplicidade
das teorias modifica o estilo de argumentação.
Também atribuiu uma junção definida à multiplicidade. Mostrou mais de uma vez,35 em perfeita
harmonia com nossas breves observações
metodológicas, que as refutações são impossíveis sem a ajuda das
alternativas. Ademais, descreveu com alguns pormenores o efeito de aumento que têm as alternativas sobre as anomalias e explicou
o modo com que esse aumento produz revoluções.36 Disse, portanto, que os cientistas criam revoluções de
acordo com o nosso modelozinho
metodológico e não seguindo inexoravelmente um paradigma e
abandonando-o de repente quando os problemas se agigantam.
Tudo isso conduz agora, sem
perda de tempo, à dificuldade número três, a saber, à suspeita de que a ciência
normal ou "madura", tal como foi descrita por Kuhn, não é sequer
um fato histórico.
6. EXISTE A CIÊNCIA
NORMAL?
Relembremos o que até aqui
descobrimos ter sido afirmado por Kuhn. Em primeiro lugar, ele asseverou que as
teorias não podem ser refutadas senão
com a ajuda de alternativas. Em segundo lugar, afiançou que a
proliferação também representa um papel histórico no derrubamento de
paradigmas. Paradigmas têm sido derrubados mercê do modo com que as alternativas têm ampliado as anomalias existentes. Finalmente, Kuhn mostrou que as
anomalias existem em qualquer ponto da história de um
paradigma.37 A idéia de que as teorias são inatacáveis durante
decênios e mesmo durante séculos, Até
surgir uma grande refutação que as derruba — essa idéia, afirma ele, não passa de um mito. Ora, se isso é verdade,
por que não damos início imediatamente
à proliferação e nunca permitimos que uma ciência normal
venha a existir? E será excesso de otimismo esperar que os cientistas pensam
dessa maneira e que os períodos normais, se alguma
vez existiram, não possam haver durado muito tempo e não possam haver-se
estendido tampouco por campos extensos? Um rápido
olhar dirigido a um exemplo, como o último século, mostra que este
parece ter sido efetivamente o caso.
No segundo terço desse
século existiam, pelo menos, três paradigmas diferentes e mutuamente incompatíveis.
Eram eles: (1) o ponto de vista mecânico,
que encontrou expressão na
astronomia, na teoria cinética, nos
vários modelos mecânicos da eletrodinâmica, assim como nas ciências biológicas, sobretudo na medicina (aqui a influência
de Helmholtz foi fator decisivo); (2) o ponto de vista ligado à invenção de uma
teoria do calor independente e fenomenológica, que finalmente se revelou
incompatível com a mecânica; (3) o ponto de
vista implícito na eletrodinâmica de Faraday e Maxwell, desenvolvido
e libertado dos seus concomitantes mecânicos por Hertz.
Ora, esses diferentes paradigmas
estavam longe de ser "quase independentes". Ao contrário, foi a ativa
interação deles que acarretou a queda da física clássica. As dificuldades
que conduziram à teoria especial da
relatividade não poderiam ter nascido sem a tensão que existia entre a teoria
de Maxwell, de um lado, e a mecânica de Newton, de outro (Einstein descreveu a situação em termos maravilhosamente simples em sua autobiografia; Weyl
apresentou um relato igualmente
breve, porém mais técnico, em Raum, Zeit, Materie; Poincaré já se refere a essa tensão em 1899, e
depois novamente em 1904, em sua
conferência de St. Louis). Nem era possível utilizar o fenômeno do movimento
browniano para uma refutação direta da segunda lei da teoria
fenomenológica.38 A teoria cinética tinha de ser apresentada
desde o princípio. Aqui, mais uma vez, seguindo Boltzmann,
Einstein mostrou o caminho. As investigações que prepararam o terreno para a
descoberta do quantum de ação, para mencionar outro exemplo, juntaram
disciplinas diferentes, incompatíveis e, às vezes, até incomensuráveis como a
mecânica (a teoria cinética tal como foi
usada na derivação de Wien da sua lei da radiação), a termodinâmica (o princípio de Boltzmann da igual
distribuição de energia por todos os graus de liberdade) e a ótica
ondulatória; e elas teriam sofrido um colapso houvesse sido a "quase
independência" desses assuntos
respeitada por todos os cientistas. Claro está que nem todo o mundo participou dos debates e a grande
maioria pode ter continuado a lidar
com os seus "minúsculos enigmas". Entretanto, se levarmos a sério o
que o próprio Kuhn nos ensina, não foi essa atividade que
originou o progresso, mas a atividade da minoria proliferadora (e dos
experimentadores que atenderam aos problemas da minoria e às suas estranhas
predições). E podemos perguntar se a maioria não continua solucionando os
velhos enigmas através das próprias revoluções. Mas se isto é verdade, o relato
de Kuhn que separa temporalmente períodos de proliferação e períodos de monismo
desmorona completamente.39
7. EM DEFESA DO HEDONISMO
Parece, portanto que a interação entre a tenacidade e a proliferação que descrevemos em nosso pequeno
conto de fadas metodológico é também um traço essencial do
desenvolvimento real da ciência. Parece que não é a atividade de solução de
problemas a responsável pelo crescimento do
nosso conhecimento, mas a ativa interação de várias concepções
sustentadas com tenacidade. Além disso, a
invenção de novas idéias e a tentativa de assegurar-lhes um lugar digno na competição conduzem ao
derrubamento de velhos e familiares paradigmas. Essa atividade inventiva
ocorre durante o tempo todo. Entretanto, a atenção só se volta para ela durante
as revoluções. Essa mudança da atenção não
reflete nenhuma mudança estrutural profunda (como, por exemplo, a
transição do soluciona-mento de problemas
para a especulação filosófica e o teste dos fundamentos). Não é nada
mais que uma mudança de interesse e publicidade.
Esta é a imagem da ciência que emerge da nossa
breve análise. Será uma imagem atraente? Tornará ela proveitosa a busca da ciência?
Ser-nos-á benéfica a presença de tal disciplina, o fato de termos de viver com
ela, estudá-la, compreendê-la, ou será ela talvez capaz de corromper-nos o
entendimento e diminuir-nos o prazer?
É muito difícil hoje em dia abordar essas
questões com o espírito certo. O proveitoso
e o não-proveitoso são determinados em tão grande extensão pelas instituições e formas de vida existentes que dificilmente chegamos a uma avaliação correta
dessas mesmas instituições.40
As ciências especialmente estão rodeadas de uma aura de perfeição que susta
qualquer indagação sobre o seu efeito benéfico. Usam-se com liberalidade
frases como "busca da verdade" ou "o mais alto objetivo da
humanidade". Elas enobrecem, sem dúvida, o seu objeto, mas também o
afastam do terreno da discussão crítica (Kuhn
deu mais um passo nessa direção, conferindo dignidade até à parte mais cacete e
corriqueira da atividade científica: a ciência normal). Entretanto, por
que se haveria de permitir a um produto do engenho
humano que ponha fim às mesmíssimas perguntas a que ele deve sua existência? Por que haveria a existência
desse produto de impedir-nos de formular a pergunta mais importante de
todas: até que ponto aumentou a felicidade
dos seres humanos e até que ponto aumentou
a sua liberdade? O programa sempre foi logrado pela sondagem de formas de vida bem entrincheiradas e bem
fundadas com valores impopulares e
infundados. Foi assim que o homem, pouco a pouco, se libertou do medo e da tirania dos sistemas não-examinados.
Nossa pergunta,
portanto, é a seguinte: que valores escolheremos para sondar as ciências de
hoje?
Afigura-se-me que a felicidade e o pleno
desenvolvimento de um ser humano é agora,
como sempre foi, o mais alto valor possível. Esse valor não exclui os valores que fluem de formas institucionalizadas
de vida (verdade, coragem, altruísmo, etc). Antes, os encoraja mas apenas até
o ponto em que podem contribuir para o avanço de
algum indivíduo. O que se exclui é o uso de valores institucionalizados
para a condenação, ou talvez até a eliminação, dos que preferem arranjar suas vidas de maneira diferente. O
que se exclui é a tentativa de
"educar" crianças de maneira que percam seus múltiplos talentos,
de modo que fiquem restritas a um domínio estreito de pensamento, ação e emoção. Adotando esse valor básico desejamos uma
metodologia e um conjunto de instituições que nos permitam perder o menos
possível do que somos capazes de fazer e nos obriguem o menos possível a desviar-nos de nossas implicações naturais.
Ora, o pequeno conto de fadas
metodológico que esboçamos na seção n.° 6 diz que a ciência que
tenta desenvolver nossas idéias e emprega meios racionais
para a eliminação até das conjecturas mais fundamentais precisa um princípio de
tenacidade juntamente com um princípio de proliferação. Urge que
lhe permitam reter idéias em face de dificuldades; e urge que lhe
permitam apresentar novas idéias ainda que as concepções populares pareçam
plenamente justificadas e sem defeitos. Descobrimos também que a ciência real
ou, pelo menos, a parte da ciência real responsável pela mudança e pelo progresso,
não é muito diferente do ideal esboçado no conto de fadas. Mas esta é deveras uma feliz coincidência!
Estamos agora de pleno acordo com nossos desejos expressos acima! A
proliferação significa que não há necessidade de suprimir nem o mais estranho
produto do cérebro humano. Todos podem
seguir suas inclinações e a ciência,
concebida como empreendimento crítico, aproveitará essa atividade.
Tenacidade: significa que se estimula a pessoa não só a seguir apenas suas inclinações, mas também a desenvolvê-las, a erguê-las,
com a ajuda da crítica (que envolve uma comparação com as alternativas
existentes) a um nível mais elevado de expressão e, por esse modo, a erguer-lhes a defesa a um nível mais alto de consciência. A interação entre a proliferação e a tenacidade também importa na
continuação, num novo nível, do desenvolvimento biológico da espécie e pode até aumentar a tendência para
mutações biológicas úteis. Pode ser o único meio possível de
impedir que nossa espécie se estagne. Para mim, este é o argumento final e mais
importante contra a "ciência madura" descrito por Kuhn. Tal
empreendimento não é só mal concebido e
inexistente; sua defesa é também incompatível com uma visão
humanitária.
8.
UMA ALTERNATIVA: O MODELO DA MUDANÇA CIENTIFICA DE LAKATOS
Permitam-me
agora apresentar em sua totalidade a imagem da . ciência que, no meu
entender, deve substituir o relato de Kuhn.
Essa imagem é a síntese das duas
descobertas seguintes. Primeiro, contém a descoberta de Popper de que a ciência progride
pela discussão crítica de visões alternativas. Segundo, contém a descoberta de
Kuhn da função da tenacidade que ele expressou, erroneamente a meu ver, mediante o postulado da existência de períodos de tenacidade.
A síntese consiste na afirmação de Lakatos (desenvolvida em seus próprios
comentários sobre Kuhn) de que a proliferação e a tenacidade não pertencem a
períodos sucessivos da história da ciência, mas estão sempre co-presentes.*1
Quando falo em "descoberta"
não quero dizer que as idéias mencionadas são inteiramente novas, ou que agora
aparecem numa forma
nova. Muito ao contrário. Algumas dessas idéias são tão velhas quanto
montanhas. A idéia de que o conhecimento progride através de uma luta de visões
alternativas e que ele depende da proliferação
foi primeiro aventada pelos pré-socráticos (isso foi enfatizado pelo
próprio Popper) e depois desenvolvida numa filosofia geral por Mill
(especialmente em On Liberty). A idéia de que uma luta de
alternativas é decisiva para a ciência também foi apresentada por Mach (Erkenntnis und Irrtum) e
Boltzmann (veja suas Populaer-wissensschajtliche Vorlesungen), principalmente sob o impacto do darwinismo. A necessidade de
tenacidade foi enfatizada pelos materialistas dialéticos que objetaram a vôos
"idealísticos" extremos da imaginação.
E a síntese, finalmente, é a própria essência do materialismo dialético na
forma em que este aparece nos escritos de Engels, Lenin e Trotsky. Pouca coisa a esse respeito
sabem os filósofos "analíticos" ou "empiristas" de
hoje, que ainda sofrem muito a influência do Círculo de Viena. Considerando esse contexto estreito, embora "moderno",
podemos falar, portanto, em "descobertas" genuínas, se bem que muito
atrasadas.