Continued from: CONSOLANDO O ESPECIALISTA - PAUL FEYERABEND

No entender de Kuhn, a
ciência madura é uma sucessão de períodos normais e
revoluções. Os períodos normais são monísticos; os cientistas tentam
resolver enigmas resultantes da tentativa de ver o mundo em função de um único paradigma. As revoluções são pluralísticas
até que emerge um novo paradigma que ganha apoio suficiente para servir de
base a um novo período normal.

Esse relato deixa sem resposta num problema: como
se processa a transição de um período normal para uma revolução? Na seção n.° 6 indicamos que a transição pode ser
conseguida de um modo razoável:
compara-se o paradigma central com as teorias alternativas. O Professor Kuhn parece ser da mesma opinião. De
mais a mais, ele mostra que é isso o que realmente acontece. A
proliferação já se manifesta antes da
revolução e serve de instrumento à sua produção. Mas isso significa que
o relato original é falso. A proliferação não começa com a revolução; precede-a.
Alguma imaginação e um pouco mais de pesquisa histórica mostram que
a proliferação não só precede imediatamente as revoluções, mas também
se acha presente durante o tempo todo. A ciência que conhecemos não é uma sucessão temporal de períodos normais e períodos de
proliferação; é a sua justaposição.

Vista desse modo, a transição da
pré-ciência para a ciência não substitui a
proliferação desinibida nem a crítica universal da primeira pela tradição de solução
de enigmas de uma ciência normal. Completa-a
com essa atividade ou, para
expressá-lo ainda melhor, a ciência madura une duas tradições muito
diferentes que estão com freqüência
separadas, a tradição da crítica filosófica pluralística e uma tradição
mais prática (e menos humanitária — veja a seção 8) que explora as
possibilidades de um material dado (de uma teoria; de um pedaço de matéria) sem
ser impedida pelas dificuldades que podem surgir e sem dar atenção a maneiras
alternativas de pensar (e de agir). Aprendemos com o Professor Popper que a primeira
tradição está intimamente ligada à cosmologia dos pré-socráticos. A segunda é
melhor exemplificada pela atitude dos membros de uma sociedade fechada em
relação ao seu mito básico. Kuhn conjeturou que
a ciência madura consiste na sucessão desses dois modelos diferentes
de pensamento e ação. Ele está certo na medida em que notou o elemento normal,
conservador ou anti-humanitário.  Esta é uma descoberta
genuína. Mas está errado na medida em que representou erroneamente a relação
entre esse elemento e os processos mais filosóficos (isto é, críticos).
Sugiro, de acordo com o modelo de Lakatos, que a relação correta é uma relação
de simultaneidade e interação. Falarei, portanto, do componente normal e
do componente filosófico da ciência e do período normal e
do período da revolução.

Parece-me que um relato dessa natureza
supera muitas dificuldades,
tanto lógicas quanto fatuais, que tornam o ponto de vista de Kuhn tão fascinante mas, ao mesmo tempo, tão
insatisfatório.42 Ao considerá-lo
não deveria desencaminhar-nos o fato de o componente normal quase sempre
pesar mais do que a sua parte filosófica. Pois o que estamos investigando não é
o tamanho de certo elemento da ciência, mas
sua função (um homem só pode revolucionar uma época). Nem devemos ficar
excessivamente impressionados pelo fato de que a maioria dos cientistas consideraria o componente
"filosófico" situado fora da ciência propriamente dita e
poderia apoiar essa atitude mostrando a própria falta de agudeza
filosófica. Pois não são eles que realizam o aprimoramento fundamental mas os
que promovem a interação ativa
do componente normal e do componente filosófico (essa interação
consiste quase sempre na crítica do que está bem
entrincheirado e é não-filosófico pelo que é periférico e filosófico).
Ora, admitindo-se tudo isso, por que parece existir uma flutuação definida no
estado da ciência? Se a ciência consiste na constante interação entre uma
parte filosófica; se é essa interação que a faz progredir, por que os elementos
revolucionários só se tornam visíveis em
raras ocasiões como essas? Não é este simples fato histórico suficiente
para apoiar o relato de Kuhn sobre o meu? Não é típico sofisma filosófico negar
um fato histórico tão óbvio?

Creio que a resposta a essa pergunta é
evidente. O componente normal, grande, está bem entrincheirado. Daí que uma
mudança do componente
normal seja muito notável. Assim também é a sua resistência
à mudança. Ela se torna especialmente forte e notável nos períodos
em que a mudança parece iminente. Ê dirigida contra o componente
filosófico e o traz à consciência pública. A geração mais jovem,
sempre ansiosa por coisas novas, apodera-se do novo material e estuda-o com avidez.
Os jornalistas, sempre à espreita de manchetes
— quanto mais absurdas, melhor — fazem publicidade das novas descobertas (que
são os elementos do componente filosófico que discordam mais radicalmente das concepções vigentes
enquanto ainda possuem alguma plausibilidade e talvez até algum apoio
fatual). Estas são algumas razões das diferenças que percebemos. Não creio que
devamos procurar algo mais profundo.

Ora, no que tange à mudança do próprio componente normal não há razão para esperar que ele siga um modelo
claramente reconhecível e lógico.
Kuhn, como outros filósofos antes dele (estou aqui pensando principalmente em Hegel) presume que uma
mudança histórica tremenda precisa exibir uma lógica própria e que a
mudança de uma idéia deve ser razoável no
sentido de que existe um elo entre o fato da mudança e o conteúdo da
idéia que está mudando. Eis aí uma suposição plausível enquanto lidamos com
pessoas razoadas: as mudanças do componente filosófico, muito
provavelmente, podem ser explicadas
como o resultado de argumentos claros e sem ambigüidade. Mas presumir
que pessoas que habitualmente resistem à mudança; que carregam o cenho a qualquer crítica feita a coisas
que lhes são caras; e cujo propósito
mais elevado é solucionar enigmas numa base não-conhecida nem compreendida; presumir que pessoas assim
modificarão sua fidelidade de um
modo razoável é levar o otimismo e a busca da racionalidade longe demais. Os elementos normais, isto é, os que têm o
apoio da maioria, podem mudar porque a geração mais jovem não pode dar-se ao
incômodo de seguir seus maiores; ou porque alguma figura pública mudou
de idéia; ou porque algum membro influente do estabelecimento morreu e não
deixou atrás de si (talvez em razão de sua natureza suspicaz) uma escola forte
e influente, ou porque uma instituição
poderosa e não-científica impele o pensamento numa direção   definida.43 As revoluções, 
portanto,   são  as manifestações exteriores
de uma mudança do componente normal que não pode ser responsabilizado de
nenhum modo razoável. São a substância de anedotas,
embora aumentem e tornem visíveis os elementos mais racionais da ciência, ensinando-nos desse modo o que
a ciência poderia ser se houvesse por perto pessoas mais
razoadas.

9.    O PAPEL DA RAZÃO
NA CIÊNCIA

(1) Até agora critiquei Kuhn de um ponto de vista quase idêntico ao de Lakatos. (Existem algumas ligeiras
diferenças, tais como minha relutância em separar teorias e programas de
pesquisa,44 mas não se fará caso delas. Quando falo em
"teorias" sempre me refiro a teorias e/ou programas de pesquisa.)
Quero agora defender Kuhn contra Lakatos. Mais especialmente, quero
sustentar que a ciência é, e deveria ser,
mais irracional do que Lakatos e Feyerabendi (o autor popperiano3
das seções precedentes deste ensaio e dos "Problemas do Empirismo") 
estão preparados para admitir.45

A transição da crítica para a defesa não quer dizer que
mudei de idéia. Nem pode ela ser
completamente explicada pelo meu cinismo vis-à-vis da questão da
filosofia da ciência. Liga-se antes à natureza da própria ciência, à sua
complexidade, ao fato de que ela tem aspectos distintos, de que não pode ser
prontamente separada do resto da história, de que sempre utilizou e continua a
utilizar todos os talentos e todas as sandices do homem. Argumentos contrários
trazem a luz características diferentes que ela contém, desafiam-nos a tomar
uma decisão, desafiam-nos a aceitar esse monstro de muitas caras e ser
devorados por ele, ou a mudá-lo de acordo com nossos desejos. Vejamos
agora o que se pode dizer contra o modelo do crescimento, científico de
Lakatos.

(2)  O falseacionismo ingênuo julga (isto é, aceita ou
condena)  uma teoria assim que ela é introduzida na discussão. Lakatos dá tempo
à teoria, permite que ela se desenvolva, permite que ela mostre sua força
oculta, e só a julga "depois de muito tempo". Os "padrões críticos"
que emprega proporcionam um intervalo de hesitação. São aplicados "a
posteriori"
.46 São aplicados depois da ocorrência
das transferências "progressivas" ou "degenerativas" do
problema.

Agora é fácil ver que os padrões desse gênero só
têm força prática quando combinados com um limite de tempo (o que parece uma
transferência degenerativa do problema pode ser o começo de um período muito
mais longo de progresso). Mas introduza-se o limite de tempo e o argumento
contra o falseacionismo ingênuo reaparece apenas com uma modificação sem
importância (se lhe é permitido esperar, por que não espera um pouquinho mais?)
Dessa maneira, os padrões que Lakatos deseja defender ou são vãos — não
se sabe quando devem ser aplicados — ou podem ser criticados por motivos
muito semelhantes ao que conduziram a eles em primeiro lugar.

Em tais circunstâncias pode fazer-se uma de duas coisas.
Pode-se parar de apelar para padrões permanentes, que permanecem em
vigor em todo o correr da história e governam todos os períodos isolados de
desenvolvimento científico e toda transição de um período para outro. Ou podem
reter-se tais padrões como ornamento verbal, como lembrete de tempos
mais felizes, quando ainda se julgava possível dirigir um negócio complexo, e
não raro catastrófico, como a ciência seguindo umas poucas regras simples e
"racionais". Tudo faz crer que Lakatos deseja escolher a segunda
alternativa.

(3)       Escolher a
segunda alternativa significa abandonar padrões permanentes de fato embora
os retendo em palavras. De fato, a posição de Lakatos agora
parece idêntica à de Popper tal como foi sintetizada
num adendo maravilhoso (porque autodestrutivo) da quarta edição da Open Society.47 Segundo
Popper não "precisamos de nenhum. . . sistema definido de referência
para a nossa crítica", podemos até
revisar as regras mais fundamentais e abandonar as exigências mais
fundamentais se surgir a necessidade de uma medida diversa de estimação.48 É irracional essa
posição? Supõe ela que a ciência é irracional? Sim e não. Sim
porque já não existe um conjunto isolado de regras que nos guie através de
todas as curvas e voltas da história do
pensamento (ciência), quer como participantes, quer como historiadores que desejam reconstruir-lhe o
curso. Pode-se, naturalmente, forçar a história num modelo dessa
natureza, mas os resultados serão sempre
mais pobres e muito menos interessantes do que foram os acontecimentos
reais. Não — porque cada episódio particular é racional no sentido de que alguns dos seus traços podem ser explicados
em função de razões aceitas ao tempo da sua ocorrência, ou inventadas no
decurso do seu desenvolvimento. Sim — porque nem essas razões lógicas
que mudam de uma idade para outra bastam a
explicar todas as características importantes de determinado episódio. Precisamos acrescentar acidentes,
preconceitos, condições materiais (como a existência de um tipo
particular de vidro num país e não em outro), as vicissitudes da vida de
casados, inadvertên-cia, superficialidade, orgulho, e muitas outras coisas para
se obter um quadro completo. Não
porque transportados para o clima do período que é objeto de
consideração e dotados de uma inteligência viva
e curiosa, podemos ter tido ainda mais para dizer, podemos ter tentado superar acidentes e "racionalizar"
até a mais caprichosa seqüência de acontecimentos. Mas — e agora
chegamos a um ponto decisivo — como se realizará a transição de certos padrões
para outros padrões? Mais especialmente, que acontece a nossos padrões (em
contraposição às nossas teorias) durante um período de revolução? São mudados
à maneira popperiana, por uma discussão crítica de alternativas, ou existem processos que desafiam uma análise racional?
Essa é uma das perguntas formuladas por Kuhn. Vejamos a resposta que podemos
dar-lhe!

(4) O próprio Popper enfatizou que os padrões
não são sempre adotados na base do argumento. As crianças, diz ele,
"aprendem a imitar os outros. . . e, assim, aprendem a considerar padrões
de comportamento como se estes consistissem em regras fixas, ‘dadas’.. . e coisas como
simpatia e imaginação podem representar um papel
importante nesse desenvolvimento".49 Considerações semelhantes
aplicam-se aos adultos que desejam continuar aprendendo que estão
decididos a expandir seus conhecimentos e sua sensibilidade. Não podemos
presumir, por certo, que o que é possível no caso de crianças — deslizar, à menor provocação, para padrões de reação inteiramente
novos — deveria estar fora do alcance de adultos e inacessível a uma das mais
notáveis atividades adultas, a ciência. Além
diso, é provável que mudanças catastróficas, freqüente desapontamento de
expectativas, crises no desenvolvimento do nosso conhecimento se modifiquem e talvez multipliquem os
padrões de reação (incluindo os
padrões de argumentação) exatamente como uma crise ecológica multiplica as mutações. Isso pode ser um
processo inteiramente natural, como aumentar de tamanho, e a
única função do discurso racional talvez consista em aumentar a tensão
mental que precede e causa a explosão comportamental. Ora — não é
exatamente esta a espécie de mudanças que podemos esperar em períodos de revolução científica? Não restringe ela a
eficácia dos argumentos (exceto como
agente causativo que conduz a desenvolvimentos muito diferentes do que é
exigido pelo seu conteúdo)"! A ocorrência de uma mudança dessa
natureza não mostra que a ciência, que faz parte da evolução do homem, não é
nem pode ser inteiramente racional? Pois se
há acontecimentos, e não necessariamente argumentos que nos fazem adotar novos padrões, não caberá aos defensores do status quo fornecer, além dos argumentos, causas
contrárias’} E
se as velhas formas de argumentação se revelam uma
causa contrária demasiado fraca, não devem
elas desistir ou recorrer a meios mais fortes e mais "irracionais"? (E muito difícil, e
talvez inteiramente impossível, combater os efeitos de uma lavagem
cerebral por meio de argumentos.) Até o racionalista mais puritano se verá
forçado a deixar os argumentos e a usar,
digamos, propaganda, não porque alguns dos seus argumentos deixaram de ser válidos, mas
porque as condições psicológicas que lhe permitem
argumentar eficazmente e influenciar os outros desapareceram. E que adianta um
argumento que deixa as pessoas indiferentes?

(5) Considerando perguntas
como essas um popperiano responderá que novos padrões, com efeito, podem
ser descobertos, inventados, aceitos, comunicados aos outros de maneira muito
irracional, mas que sempre resta a possibilidade de criticá-los depois que
forem  adotados, e que essa possibilidade mantém
racional o nosso conhecimento. "Em que, então, devemos confiar?"
pergunta Popper depois de uma análise de
posíveis fontes de padrões.50 "Que devemos aceitar?
A resposta é: devemos confiar apenas provisoriamente no que quer que
aceitemos, recordando sempre que estamos de posse, na melhor das hipóteses, da
verdade (ou correção) parcial, e fadados a incorrer pelo menos em algum erro ou
julgamento incorreto em algum lugar — não só com respeito a fatos mas
também com respeito aos padrões adotados;
em segundo lugar, só devemos confiar (ainda que provisoriamente)
em nossa intuição se tivermos chegado a ela em conseqüência de muitas
tentativas para usar a imaginação, de muitos
erros, de
muitos testes, de muitas dúvidas e da crítica investigadora."

Ora, essa referência a testes e
à crítica que se supõe garanta a racionalidade da ciência
e, talvez, de toda a nossa vida tanto pode relacionar-se a processos bem definidos, sem
os quais é imposível dizer que ocorreu uma crítica ou um teste, quanto pode ser
puramente abstrata, de sorte que nos cabe a tarefa de preenchê-la ora
com este, ora com aquele conteúdo. O primeiro caso acaba de ser discutido. No
segundo temos apenas um ornamento verbal, exatamente como a defesa
feita por Lakatos de seus próprios "padrões objetivos" e se revelou
um ornamento verbal. As perguntas da seção n.° 4 permanecem não-respondidas
em qualquer um dos casos.

(6)   
De
certo modo essa situação também foi descrita por Popper, para o qual o "racionalismo está necessariamente
longe de ser compreensivo ou
auto-suficiente".51 Mas Kuhn não pergunta se limites
para a razão; a questão resume-se em saber onde estão situados
esses limites.
Estão fora das ciências, de modo que a própria ciência permanece inteiramente racional, ou as
mudanças irracionais são uma parte essencial até da atividade mais
racional já inventada pelo homem? O
fenômeno histórico "ciência" contém ingredientes que desafiam
uma análise racional? O objetivo abstrato de chegar mais perto da verdade pode
ser alcançado de modo inteiramente racional, ou
é talvez inacessível aos que decidem contar apenas com a argumentação?
Tais são os problemas que devemos enfrentar agora.

(7)   
Considerando esses problemas adicionais, Popper e
Lakatos rejeitam
a "psicologia das multidões" 52 e afirmam o caráter racional  de toda ciência. De acordo com Popper é
possível chegar a um julgamento sobre qual das duas teorias está mais
próxima da verdade, ainda que as teorias
tivessem sido separadas por uma sublevação catastrófica, como uma revolução científica. (A teoria T estará
mais próxima da verdade do que a teoria 7", se a classe das conseqüências verdadeiras
de 7", o chamado conteúdo de verdade de 7", exceder a classe das conseqüências verdadeiras de T sem
aumento do conteúdo de falsidade.)
De acordo com Lakatos, as características aparentemente desarrazoadas
da ciência só ocorrem no mundo material e no mundo do pensamento (psicológico);
estão ausentes do "mundo das idéias, do ‘terceiro mundo’ de Platão e de
Popper".53 É nesse terceiro
mundo que se verifica o crescimento do saber e que se torna possível um julgamento racional de todos os
aspectos da ciência. Cumpre assinalar, todavia, que o cientista,
infelizmente, também lida com o mundo da matéria e do pensamento (psicológico)
e que as regras que criam ordem no terceiro
mundo podem ser totalmente inadequadas à criação da ordem nos cérebros
dos seres humanos vivos (a não ser que esses
cérebros e suas características estruturais sejam colocados no terceiro
mundo, circunstância que o relato de Popper não deixa muito clara).54 Os numerosos desvios do caminho reto
da racionalidade, que observamos na ciência atual, bem podem ser necessários
se quisermos alcançar o progresso com o material quebradiço e indigno de
confiança (instrumentos, cérebro, etc.) que temos a nossa disposição.

Não há necessidade, contudo, de levar mais
adiante a objeção. Não há necessidade de argumentar que a verdadeira ciência
pode diferir da sua imagem do terceiro mundo precisamente nos sentidos qu possibilitam o progresso.55 Pois o
modelo popperiano de um enfoque da verdade ruirá até nos limitarmos
exclusivamente a idéias. Ruirá porque  existem teorias incomensuráveis.

(8)
Com a discusão da incomensurabilidade, chego a um ponto da filosofia de Kuhn
que aceito com entusiasmo. Refiro-me à sua afirmativa de que os paradigmas
sucessivos só podem ser avaliados com dificuldade e que cies podem ser de todo
incomparáveis, pelo menos na medida em que estão em jogo os padrões mais
familiares de comparação (eles podem ser prontamente comparáveis em outros
sentidos). Não sei qual de nós foi o primeiro a usar o termo "incomensurável"
no sentido usado aqui. Aparece no livro de Kuhn, Structure of Scientific
Revolutions,
e em meu ensaio "Explanation, Reduction, and
Empiricism", ambos aparecidos em 1962. Ainda me lembro de que me senti
maravilhado diante da harmonia prestabelecida que nos fez não só defender
idéias semelhantes mas também usar as mesmas palavras para expressá-las. É
claro que a coincidência está longe de ser misteriosa. Eu tinha lido os
primeiros rascunhos do livro de Kuhn e discutira o conteúdo com o próprio
autor. Nessas discussões amhos concordamos em que novas teorias, embora fossem
freqüentemente melhores e mais minuciosas do que as predecessoras, nem sempre
eram tão ricas que pudessem lidar com todos os problemas a que sua
predecessora dera uma resposta definida e precisa. O crescimento do
conhecimento ou, mais especificamente, a substituição de uma teoria
compreensiva por outra tanto envolve perdas quanto ganhos. Kuhn gostava de
comparar a concepção científica do mundo do século XVII com a filosofia
aristotélica, ao passo que eu usava exemplos mais recentes, como a teoria da
relatividade e a teoria quântica. Vimos também que poderia ser dificílimo
comparar teorias sucessivas da maneira habitual, isto é, através de um exame
das classes de conseqüências. O esquema aceito foi o seguinte (Fig. 1): T é suplantada
por T. T explica por que T falha onde falha (em F); explica
também por que T foi, pelo menos em parte, bem-sucedida (em S); e
faz predições adicionais, (A). Ora,
para que esse esquema

funcione é preciso que
haja enunciados que se seguem (com ou sem a ajuda de definições e/ou de
hipóteses de correlação) tanto de T quanto
de T. Casos há, porém que convidam a um julgamento comparativo sem satisfazer às condições que acabamos
de expor. A relação entre tais
teorias é a que se vê na Fig. 2.56 Um julgamento que envolva
uma comparação de classes de conteúdos é agora claramente impossível. Não se pode dizer, por exemplo, que T está
mais próximo ou mais afastado da verdade do que T.

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