(9) Como exemplo de duas teorias incomensuráveis
discutamos brevemente a mecânica celeste clássica (CM) e a teoria especial da
relatividade (SR). Para começar, é mister enfatizar que a pergunta "CM e SR são incomensuráveis?"
não é completa. As teorias podem ser interpretadas de maneiras diferentes. Elas
serão comensuráveis em algumas
interpretações, incomparáveis em outras. O instrumentalismo, por exemplo, torna
comensuráveis todas as teorias relacionadas
com a mesma linguagem de observação e interpretadas nessa base. Por
outro lado, desejando apresentar um relato unificado de questões observáveis e
inobserváveis, um realista empregará os termos mais abstratos de qualquer
teoria que esteja estudando com esse fim. O processo é inteiramente natural.
SR, como nos sentiríamos inclinados a
dizer, não se limita a convidar-nos a repensar o comprimento, a massa e
a duração inobservados; ela parece encerrar o caráter relacionai de todos os comprimentos, massas e
durações, observados ou
inobservados, observáveis ou inobserváveis. Ora, a extensão dos conceitos de uma nova teoria T a
todas as suas conseqüências, incluindo os relatórios observacionais,
pode mudar tanto a interpretação das conseqüências que elas desaparecem das
classes de conseqüência de teorias
anteriores. Essas teorias anteriores serão, então, incomensuráveis com T. A relação entre SR e CM é um caso
ilustrativo. O conceito de comprimento usado em SR e o conceito de comprimento pressuposto em CM são diferentes. São
ambos relacionais, e muito complexos (considere-se a
determinação do comprimento em função do
comprimento de ondas de uma linha espectral especificada). Mas o comprimento relativista
(ou a forma relativista) envolve
um elemento ausente do conceito clássico e é, em princípio, excluído
dele.57 Envolve a velocidade relativa do objeto em tela em algum
sistema de referência. É verdade que o esquema relativista amiúde nos dá números
praticamente idênticos aos que obtemos de CM — mas isso não torna os conceitos
mais semelhantes. Nem o caso c —»ou (ou v —»oo ) que dá
predições rigorosamente idênticas pode ser usado como argumento para
mostrar que os conceitos precisam coincidir pelo menos neste caso: magnitudes
diferentes baseadas em conceitos diferentes podem dar valores idênticos em
suas respectivas
escalas sem deixar de ser magnitudes diferentes (a mesma observação aplica-se à
tentativa de identificar a massa clássica com a massa relativa em repouso).58
Tomada seriamente, essa disparidade conceituai contamina até as situações
mais "ordinárias": o conceito relativista de certa forma, como uma
mesa, ou de certa seqüência temporal, como eu dizer "sim", também
diferirá do conceito clássico correspondente. Será, portanto, vão esperar que
derivações suficientemente longas possam
fazer-nos voltar às idéias mais velhas.59
As classes de conseqüência de SR e CM relacionam-se entre si como na
Fig. 2. Não se pode fazer uma comparação de conteúdo nem um julgamento de
verossimilhança.00
(10) No que se segue discutirei umas poucas objeções que têm
sido erguidas, não contra esta análise particular da relação entre SR e
CM, mas contra a própria possibilidade, ou desejabilidade de teorias incomensuráveis (quase todas as objeções
contra a incomensurabilidade são
desse tipo geral). Elas expressam idéias metodológicas que precisamos criticar se quisermos aumentar
nossa liberdade vis-à-vis das ciências.
Uma das objeções mais populares procede da versão de realismo que acabei de descrever em (9). "Um
realista", dissemos, "deseja apresentar
um relato unificado de questões observáveis e inobserváveis, e empregará
os termos mais abstratos de qualquer teoria que esteja considerando para esse
fim." Empregará esses termos a fim de dar
significado a sentenças de observação, ou a fim de substituir-lhes
a interpretação costumeira (por exemplo, usará as idéias de SR a fim de substituir a costumeira interpretação de
CM dos enunciados cotidianos acerca de formas, seqüências temporais,
etc). Contra isso se assinala que os termos teóricos recebem sua interpretação
por estar ligados a uma linguagem observacional preexistente ou a outra teoria
que já esteve ligada a uma linguagem de observação dessa natureza e que, sem essa conexão, eles são
destituídos de conteúdo. Desse modo, afirma Carnap 61 que "não
há interpretação independente para Lt [a
linguagem em função da qual se formula certa iioiia, ou certa concepção do
mundo]. O sistema T [que consiste nos axiomas da teoria e nas regras de
derivação] é por si mesmo um sistema postulado não-interpretado. [Seus] termos
obtêm apenas uma interpretação indireta e incompleta pelo fato de estarem
alguns ligados pelas [regras de correspondência] C a termos
observacionais". Ora, se os termos teóricos não têm "interpretação
independente", não podem ser usados para corrigir a interpretação dos
enunciados de observação, que é a sua única fonte de significado. Donde se
colhe que o realismo, tal como o descrevemos, é uma doutrina impossível.
A idéia orientadora que existe por trás dessa objeção é que
não se podem introduzir linguagens novas e abstratas de forma direta: elas
precisam ser ligadas primeiro a um idioma observacional já existente e
presumivelmente estável.62
Essa idéia orientadora é imediatamente refutada
pelo modo com que as crianças aprendem a falar e com que os antropólogos e
lin-güisfas aprendem a linguagem desconhecida de uma tribo recém-des-coberta.
O primeiro exemplo é instrutivo por outras razões também,
pois a incomensurabilidade desempenha um papel importante nos primeiros meses
do desenvolvimento humano. Piaget e sua escola 6S ensinam que a
percepção da criança se desenvolve através de vários estádios
antes de atingir a forma adulta, relativamente estável. Num estádio os objetos parecem
comportar-se como pós-imagens 64 — e são tratadas como tais: a criança
segue o objeto com os olhos até que este desaparece e não faz a menor tentativa
para recuperá-lo, ainda que isto requeira
um esforço físico (ou intelectual) mínimo; esforço, aliás, que já está dentro
do alcance da criança. Não há sequer uma tendência para procurar — e
isso é muito apropriado, "conceitual-mente" falando. Pois teria sido
com efeito disparatado "procurar" uma
pós-imagem. Seu "conceito" não propicia uma operação dessa natureza.
A chegada do conceito e da imagem perceptual
de objetos materiais modifica dramaticamente a situação. Ocorre uma
drástica re-orientação de padrões comportamentais e, pelo que
podemos conje-turar, de pensamento, ainda existem pós-imagens ou
coisas parecidas, mas são agora difíceis de encontrar e precisam ser
descobertas por métodos especiais (a palavra visual anterior desaparece
literalmente). Tais métodos procedem de um novo esquema conceptual (as
pós–imagens ocorrem em seres humanos, não no mundo
físico externo, e estão
presas a eles) e não podem conduzir de volta aos fenômenos exatos do estádio prévio (a esses fenômenos
deveria dar-se, portanto, um nome
diferente, como, por exemplo, "pseudo-pós-imagens"). Nem às pós-imagens, nem às pseudo-pós-imagens se
confere uma posição especial no mundo
novo. Elas, por exemplo, não são tratadas como evidência em que se supõe que repouse a nova noção de um objeto material. Tampouco
podem ser usadas para explicar esta noção: as pós-imagens nascem
juntamente com ele e estão ausentes da mente dos que ainda não reconhecem objetos materiais; e as pseudo-pós–imagens desaparecem assim que se verifica
tal reconhecimento. Cumpre admitir que todo estádio posui uma espécie
de "base" observacional, à qual se dá especial atenção e da qual se
recebe uma multidão de sugestões. Entretanto, essa base (1) muda de
estádio para estádio; (2) faz parte do aparelho conceituai de
determinado estádio, e não é sua única fonte de interpretação.
Considerando desenvolvimentos como
esses, podemos suspeitar que
a família dos conceitos cujo centro é o "objeto material" e a família dos conceitos cujo centro são as
"pseudo-pós-imagens" são íncomensuráveis precisamente no
sentido que está sendo debatido aqui. É
razoado esperar que mudanças conceituais desse tipo ocorram apenas na
infância? Devemos acolher o fato — se é que se trata de um fato de que um
adulto está preso a um mundo perceptivo estável e a um sistema conceituai estável, que o acompanha e que ele pode
modificar de muitas maneiras, mas cujos contornos gerais se imobilizaram
para sempre? Ou não será mais realista presumir que ainda são possíveis
mudanças fundamentais, que acarretam a incomensurabilidade, e que elas devem ser estimuladas a fim de não ficarmos excluídos para sempre do que pode ser um estádio
superior de conhecimento e consciência? Além disso, a questão da mobilidade do
estádio adulto, de qualquer maneira, é uma questão empírica que precisa
ser atacada pela pesquisa e não pode ser resolvida por um decreto metodológico. Uma tentativa para transpor os limites de determinado sistema conceituai e escapar ao alcance
dos "óculos popperianos" 65 é parte essencial dessa
pesquisa.66
(11) Olhando agora para o segundo elemento da refutação —
campo de trabalho antropológico — vemos que o que é aqui um anátema (e por bons
motivos) é ainda um princípio fundamental para os representantes contemporâneos
da filosofia do Círculo de Viena. De acordo como Carnap, Feigl, Nagel e outros,
os termos de uma teoria recebem sua
interpretação, de modo indireto, por estarem relacionados com um sistema
conceituai diferente, que 6 uma teoria mais antiga ou uma linguagem de
observação.07 Não se adotam as teorias mais antigas ou as linguagens
de observação em virtude da sua excelência teórica (não seria possível que o
fossem: às teorias mais antigas são
geralmente refutadas). Adotam-se porque "são usadas por uma certa
comunidade de linguagem como meio de comunicação".68 De acordo
com esse método, a frase "tendo uma massa relativista muito maior do que.
. ." é parcialmente interpretada ligando-a primeiro com alguns termos
pré-relativistas (termos clássicos; termos do senso comum) que são
"comumente compreendidos" (presumivelmente como o resultado de um
ensino prévio em conexão com métodos toscos de pesagem). Isso é até pior do que
a exigência outrora popular de esclarecer pontos duvidosos traduzindo-os para o
latim. Pois embora o latim fosse escolhido por ser mais preciso, mais claro e
também conceitualmente mais rico, do que os idiomas vulgares que evoluíam
lentamente, a escolha de uma linguagem de observação ou de uma teoria mais
antiga como base da interpretação deve-se ao fato de serem eles
"antecedentemente compreendidos", deve-se à sua popularidade. Além
disso, se os termos pré-relativistas, que estão muito distantes da realidade —
especialmente em vista do fato de procederem de uma teoria incorreta — podem
ser ensinados ostensivamente, por exemplo, com a ajuda de métodos toscos de
pesagem (e temos de presumir que eles podem ser ensinados dessa maneira pois,
caso contrário, todo o esquema desmorona) por que não haveríamos de introduzir diretamente
os termos relativistas, e sem a ajuda dos termos de outro idioma?
Finalmente, manda o simples senso comum que o ensino, ou aprendizado, de
linguagens novas e desconhecidas não seja contaminado por material externo. Os
lingüistas nos lembram que uma tradução perfeita nunca é possível, ainda que
usemos complexas definições contextuais. Essa é uma das razões da importância
do trabalho de campo quando se aprendem novas linguagens a partir do
zero e da rejeição, por inadequado, de qualquer relato estribado na
tradução (completa ou parcial). Entretanto, o que se maldiz em lingüística é
agora aceito naturalmente pelos empiristas lógicos, "uma linguagem de
observação" mítica que substitui o inglês dos tradutores. Comecemos o
trabalho de campo também neste domínio e encetemos o estudo da linguagem de
teorias novas» não nas fábricas de definição do modelo duplo de linguagem, mas
em companhia dos metafísicos, experimentadores, teóricos, dramaturgos
cortesãos, que construíram novas concepções de mundo! Isso remata nossa discussão
do princípio orientador da primeira objeção contra o realismo e a possibilidade
de teorias incomensuráveis. .
(12)
Em seguida lidarei com uma mistura de apartes que nunca foram apresentados de
maneira sistemática e que podemos liquidar em poucas palavras.
Para começar, há a suspeita de que as
observações interpretadas em função de uma nova teoria já não podem ser utilizadas
para refutar a mencionada teoria. Essa suspeita é abrandada assinalando-se que as predições de uma teoria dependem de seus
postulados, das regras gramaticais
associadas bem como das condições iniciais, ao passo que o significado das noções primitivas só depende
dos postulados (e das regras gramaticais associadas): é possível refutar
uma teoria por uma experiência inteiramente
interpretada em seus termos.
Outro ponto que se destaca com
freqüência é a existência de experiências cruciais que
refutam uma de duas teorias presumivelmente incomensuráveis e confirmam a
outra. Por exemplo: a experiência Michelson-Morley, a variação
da massa de partículas elementares, o efeito transversal de Doppler refutam CM e
confirmam SR. A resposta ao problema também não é difícil: adotando o ponto de vista da relatividade, descobrimos que as
experiências, que naturalmente
não serão descritas em termos relativistas, utilizando as noções relativistas
de comprimento, duração, velocidade, etc.,69 são pertinentes à teoria e também constatamos que elas a
sustentam. Adotando CM (com ou sem éter) tornamos a descobrir que as
experiências (agora descritas nos termos muito diferentes da física clássica,
mais ou menos como Lorentz as descreveu)
são pertinentes, mas também descobrimos que elas solapam (a
conjunção de eletrodinâmica clássica e de)
CM. Por que seria necessário possuir uma terminologia que nos permita
dizer que a mesma experiência confirma uma teoria e refuta a outra? Nós mesmos não usamos essa
terminologia? Em primeiro lugar, deveria ser fácil, embora um tanto
laborioso, expressar o que acaba de ser dito
sem declarar a identidade. Em segundo lugar, está claro que a
identificação não contraria a nossa tese, pois agora não estamos usando os termos da relatividade, nem da física
clássica, como se faz um teste, mas nos referimos a eles e à sua
relação com o mundo físico. A linguagem em que se profere esse discurso
pode ser clássica, relativista ou comum. Não adianta insistir em que os cientistas agem como se a situação fosse muito
menos complicada. Agindo dessa maneira, eles são instrumentalistas (veja
mais acima, seção n.° 9) ou estão equivocados: muitos cientistas se interessam, hoje em dia, por fórmulas
enquanto discutimos interpretações. Também é possível que, estando
familiarizados com CM e SR ao mesmo tempo, eles passam tão "depressa de
uma teoria para a outra que dão a impressão de permanecer dentro de um único
domínio de discurso.
(13) Diz-se também que, admitido o ingresso da incomensurabilidade
na ciência já não podemos decidir se uma nova concepção explica o que se
presume que explique ou se vagueia por campos diferentes. Não saberíamos, por
exemplo, se uma teoria física recém–inventada ainda lida com problemas de
espaço e tempo ou se o seu autor não fez por engano uma afirmativa biológica.
Mas não há necessidade de possuir tal conhecimento. Pois assim que se admite o
fato da incomensurabilidade, não se formula a pergunta que fundamenta a
objeção (o progresso conceituai nos impede muitas vezes de fazer certas
perguntas; desa maneira, já não podemos fazer perguntas sobre a velocidade
absoluta de um objeto — ao menos enquanto encararmos com seriedade a
relatividade). Esta não é, porém, uma perda séria para a ciência? De maneira
alguma! O progresso se fez através do mesmo "vaguear por campos diferentes"
cuja "indecidibilidade" agora exercita tão grandemente o crítico:
Aristóteles via o mundo como um superorganismo, isto é, uma entidade biológica,
ao passo que um elemento essencial da nova ciência de Descartes, Galileu e
dos seus seguidores em medicina e em biologia é a perspectiva exclusivamente mecanística.
Deverão ser proibidos esses desenvolvimentos? E se o não forem, que sobrará
do protesto?
Uma objeção estreitamente ligada emana da noção de explicação,
ou redução, e enfatiza a continuidade de conceitos pressuposta por
essa noção (poderiam usar-se outras noções para iniciar exatamente a mesma
espécie de argumento). Ora, tomado nosso exemplo acima, supõe-se que a
relatividade explica as partes válidas da física clássica e, portanto, não pode
ser incomensurável com ela! A resposta é óbvia de novo. Por que se preocuparia
o relativista com o destino da mecânica clássica a não ser como parte de um
exercício histórico? Só existe uma tarefa que podemos exigir
legitimamente de uma teoria, a saber, que ela nos forneça um relato correto do mundo.
Que relação têm os princípios da explicação com essa exigência? Não é
razoável presumir que um ponto de vista como o da mecânica clássica, que se
revelou deficiente em vários sentidos, não pode ter conceitos inteiramente
adequados, e não é igualmente razoável tentar substituir-lhe os conceitos pelos
de uma cosmologia mais bem-sucedida? Ademais, por que seria a noção da
explicação sobrecarregada pela exigência de uma continuidade conceituai?
Verificou-se que essa noção era antes
demasiado estreita (exigência de derivabilidade) e teve de ser ampliada para
incluir conexões parciais e estatísticas. Nada
nos impede de ampliá-la ainda mais para admitir, digamos, a "explicação
pela equivocação".
(14) Teorias incomensuráveis, por
conseguinte, podem ser refutadas por
referência a suas próprias espécies respectivas de experiência (na ausência de
alternativas comensuráveis, no entanto, essas refutações
são bastante fracas).70 O conteúdo delas não pode ser comparado.
Nem é possível fazer um julgamento de verossimilhança a não ser dentro
dos confins de uma teoria particular. Não se pode aplicar nenhum dos métodos
que Popper deseja utilizar para racionalizar
a ciência, e o que se pode aplicar, a refutação, é grandemente reduzido em sua
força. O que sobra são julgamentos estéticos, julgamentos de gosto, e
nossos próprios desejos subjetivos. Quererá isto dizer que vamos acabar no
subjetivismo? Quererá isto dizer que a ciência
se tornou arbitrária, que ela se tornou um elemento do relativismo geral
que Popper deseja atacar? Vejamos.
Para começar, parece-me que uma atividade cujo caráter humano
pode ser visto por todos é preferível a uma atividade que se afigura ‘objetiva" e inacessível às ações e aos
desejos humanos.71 As ciências, afinal de contas, são nossa
própria criação, incluindo todos os severos
padrões que elas parecem impor-nos. É bom ter sempre presente o fato de
que a ciência, como hoje a conhecemos, não é inelutável
e que nós podemos construir um mundo em que ela não desempenhe papel algum (atrevo-me a sugerir que
um mundo assim seria mais agradável
do que o mundo em que vivemos). Que melhor lembrete existe do que a compreensão de que a escolha entre teorias suficientemente genéricas para fornecer-nos uma
visão ampla do mundo e empiricamente desconexas pode tornar-se uma questão de
gosto? Que a escolha da nossa cosmologia básica pode tornar-se uma questão de
gosto?
Em segundo lugar, as questões de gosto não estão
completamente além do alcance do raciocínio. Os poemas, por exemplo, podem ser comparados em gramática, estrutura dos
sons, conjunto de imagens, ritmo, e podem ser avaliados nessa base (cf.
Ezra Pound sobre o progresso na
poesia).72 Até o estado de espírito mais esquivo pode ser analisado,
e precisa ser analisado se a finalidade for apresentá-lo de modo que
possa ser apreciado ou que aumente o inventário emocional (cognitivo,
perceptivo) do leitor. Todo poeta que não é de todo irracional compara,
aprimora e argüi até encontrar a formulação correta do que deseja dizer.73
Não seria maravilhoso se esse processo desempenhasse um papel também nas
ciências?
Finalmente, há maneiras mais vulgares de explicar o mesmo
assunto que talvez sejam um pouco menos repulsivas aos ouvidos de um filósofo
da ciência profissional. Podemos considerar o comprimento das
derivações que conduzem dos princípios de uma teoria à sua linguagem de
observação, e também podemos chamar a atenção para o número de aproximações feitas
no correr de derivação (todas as derivações precisam ser padronizadas para essa
finalidade de modo que se possa julgar o comprimento sem ambigüidades; essa padronização
refere-se à forma da derivação, não se refere ao conteúdo dos
conceitos usados). Um comprimento menor e um número menor de aproximações
pareceriam preferíveis. Não é fácil ver o modo com que se pode compatibilizar
esse requisito com a exigência de simplicidade e generalidade que, segundo
parece, tende a aumentar os dois parâmetros. Seja como for, há muitas maneiras
que nos são franqueadas depois de compreendido e levado a sério o fato da incomensurabilidade.
(15) Comecei mostrando que o método científico, abrandado
por Lakatos, é apenas um ornamento que nos faz esquecer a adoção de uma atitude
de "vale tudo". Considerei então o argumento de que o método das
transferências de problemas, embora talvez se mostre inútil no primeiro mundo,
pode fornecer uma explicação correta do que acontece no terceiro, e talvez nos
permita abrangê-lo com a vista através de "óculos popperianos". A
resposta foi que também há dificuldades no
terceiro mundo e que a tentativa de julgar cosmologias pelo seu conteúdo talvez
tenha de ser posta de lado. Longe de ser indesejável, um desenvolvimento dessa natureza muda a ciência, transformando-a
de amante exigente e severa em atraente e condescendente cortesã, disposta a
antecipar-se a todos os desejos do amante. Claro está que depende de nós a
escolha de um dragão ou de um gatinho por
companheiro. Creio que não preciso explicar minhas preferências.
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