Declínio da escolástica medieval, Ockham e Ockhamismo

Noções de História da Filosofia (1918)

Manual do Padre Leonel Franca.

 

CAPÍTULO I I I

FILOSOFIA MEDIEVAL – TERCEIRO PERÍODO

88. DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA — SUAS CAUSAS — O precioso legado intelectual do grande século bem depressa se tornou estéril nas mãos de herdeiros degenerados. A começar do século XIV, a escolástica decaiu rápida e incessantemente. As correntes contrárias favorecidas pelas circunstâncias foram tomando incremento e vigor, até invadirem e ocuparem, de todo, o campo que ela outrora havia tão brilhantemente defendido.

Múltiplas são as causas desta decadência, externas umas, outras internas.

As causas externas são principalmente as condições sociais, políticas e religiosas da época. Os séculos XIV e XV são o período de gestação dos tempos modernos. Um sopro de rebelião e independência percorre a Europa, levantando príncipes e soberanos, contra o domínio dos Papas. Ao mesmo tempo, o grande cisma do Ocidente enfraquece a unidade interna da Igreja e contribui para relaxar o rigor disciplinar dos clérigos e reguläres, preparando na corrução geral dos costumes um terreno propício à implantação da Reforma. Nestas condições, o nível intelectual dos estudos baixa por toda parte. As ordens religiosas, outrora seminários ferazes de inteligências, de cujo seio haviam saído os maiores escolásticos, combatem agora, não raro, pela hegemonia de um partido ou pelo nome de uma bandeira. Tomistas, scotistas e ocamistas digladiam-se em torneios dialéticos em que nem sempre o amor da verdade é o móvel único das discussões.

A Universidade de Paris, por outro lado, perdendo o seu monopólio decai do antigo prestígio. Por toda parte pululam institutos congêneres, com privilégios adquiridos ou usurpados de conferir títulos e graus de teologia que se compram para dar jus a rendosos benefícios.

Mais tarde, no século XVI, a reforma protestante, negando dogmas essenciais do cristianismo e proclamando o livre exame e a independência individual em pontos de doutrina religiosa, teve também sua natural e funesta repercussão no domínio da filosofia.

Ao passo que as circunstâncias externas assim se coligam contra a escolástica, internamente trabalham-lhe no próprio seio outros germes de dissolução que lhe apressam a ruína final. Escasseam os homens de valor. Multiplicam-se as escolas, fervilham os doutores, mas dificilmente se encontra neste largo período uma personalidade de vulto que pense por si e seja capaz de elaborar uma grande síntese doutrinai. Acentuando-se o gosto de sutilezas, pouco a pouco vão sendo esquecidos os grandes doutores do século XIII, em proveito dos comentadores de comentários, a tal ponto de, quase geralmente, se ignorarem no século XV os grandes pensamentos da escolástica pela qual se combatia. Como sintomas desta degeneres-cência interna, a linguagem carrega-se de barbarismos; o método didático, perdendo sua antiga singeleza e concisão, complica-se em distinções e subdistinções; a dialética, exorbitando de sua função de disciplina do espírito, arvora-se em soberana, absorvendo aos poucos a metafísica e a psicologia; as discussões transformam-se em logo-maquias e em justas pomposas de grande aparato tecnológico. A tudo isto acrescente-se a hostilidade de alguns filósofos contra as ciências experimentais, que então despertavam suscitando o entusiasmo geral e ter-se-ão as principais causas de decadência da escolástica .

Alguns talentos de escol que remaram valorosamente contra a corrente geral e uma brilhante mas efêmera renascença nos fins do século XVI não lograram deter o ímpeto que a impelia para o abismo, onde por séculos se eclipsou a sua influência histórica e doutrinai.

 

ARTIGO I FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

89. OCKHAM Ε OCAMISMO — A tendência de multiplicar distinções e realizar formalidades abstratas, sensível em Scoto e exagerada pelos seus continuadores, provocou uma reação cujo chefe foi Ockham.

Precursores do movimento reacionário foram Pedro d’Auriol (Aureolo 1280-1322 (doctor facundus e Durando de Saint-pourçain (m. 1334), bispo de Meaux, cognominado Doctor resolutissimus pela singularidade e audácia de suas opiniões. Rejeitando as espécies sensíveis e inteligíveis, a inteligência ativa e a realidade dos universais, trataram muito superficialmente os problemas capitais da psicologia, dando mostras de não haver penetrado a fundo no pensamento dos grandes mestres que impugnavam. Espíritos críticos, desenvolveram a parte negativa da filosofia sem chegar a construir uma síntese orgânica. Quem, porém, melhor codificou as idéias reacionárias foi

GUILHERME OCKHAM (1295-1349), por isso denominado Venerabilis inceptor. Inglês de origem e franciscano, estudou em Oxford, entre 1312 e 1318 e veio depois para Paris onde se imiscuiu em discussões políticas, advogando as pretensões regalistas de Felipe o Belo e mais tarde de Luiz de Baviera contra Bonifácio VIII. Conta-se que ao príncipe bávaro dirigiu um dia o frade as arrogantes palavras: Imperator, defendas me gladio, ego te defendam calamo.

Seu sistema, o terminismo ou ocamismo, é um conceptualismo simplificado, que, partindo do chamado princípio de parcimônia — Pluralitas non est ponenda sine necessitate — se resolve, por último, num ceticismo parcial. Ockham nega a objetividade dos nossos conhecimentos intelectuais, reduzindo-os a puros conceitos subjetivos, rejeita a necessidade das espécies impressas e da inteligência ativa. Professa também o voluntarismo scotista, fazendo depender a possibilidade das coisas e a lei moral não da essência, mas da livre vontade divina, (doutrina renovada mais tarde por Descartes) e subtrai do domínio da razão as verdades fundamentais da teodicéiá e da psicologia — existência, infinidade e unidade de Deus, criação do universo, espiritualidade e imortalidade da alma — fundando-lhes a certeza exclusivamente na revelação e na fé (fideísmo).

Estas doutrinas especulativas levam ao ceticismo e ao materia-lismo. Seus princípios regalistas foram mais tarde invocados pelos reformadores. Assim se compreende como Lutero, que se prezava de ocamista, o chamasse "o primeiro e o mais genial dos doutores escolásticos".

Seus discípulos mais ilustres foram Gregorio de Rimini (m. 1358) e Gabriel Biel (1430-1495).

O ocamismo dominou durante algumas dezenas de anos na universidade de Paris, ramificou-se pela Alemanha e Austria, mas pouco a pouco foi batido pelo realismo, desaparecendo quase de todo nos fins do sec. XV.

90. A tendência positiva que exageradamente aplicada à filosofia levou Ocam aos excessos do empirismo orientou salutarmente alguns dos seus discípulos para uma renovação da física aristotélica. Principais representantes deste movimento científico que tem por sede principal a Universidade de Paris, são:

João Buridano, reitor da Universidade em 1327 e depois em 1348, que se dedicou unicamente a problemas de ordem científico-filosófica. Abrindo uma brecha na mecânica de Aristóteles, explica o movimento não pela teoria dos lugares naturais mas por um ímpeto comunicado ao móvel e por este conservado até que a resistência do ar e a gravidade o neutralizem de todo. A mesma teoria aplica-se à mecânica celeste; os astros já não se movem impelidos por inteligências separadas. Como se vê, estas novas idéias já encerram claramente a lei da inércia e a noção mecânica de força. — Buridano é ainda conhecido por um determinismo psicológico ao qual mais tarde Leibniz ligará o seu nome.

Alberto de Saxonia, também chamado de Helmstedt, estudou e ensinou na Universidade de Paris, de que chegou a ser reitor em 1353; foi mais tarde para Viena com o título de reitor da nova universidade que nessa cidade se acabava de fundar; morreu em 1390 como bispo de Halberstadt. Suas obras concernem principalmente à lógica, à física, às matemáticas e à moral. Discípulo de Buridano, Alberto defende a teoria do ímpeto aplicada igualmente à física terrestre e à astronomia e aos trabalhos de seu mestre acrescenta os estudos originais sobre a gravidade e a determinação do seu centro (a gravidade dum corpo é a tendência a unir o seu centro de gravidade com o centro da terra), e sobre a lei da queda dos corpos, tentando determinar as relações entre a velocidade, o tempo e o espaço percorrido. A solução por êle dada não é de todo o ponto exata, mas o haver posto claramente o problema já é grande merecimento. — Um discípulo de Alberto, Thimo, como já no princípio deste século, Dietrich de Freiberg, dá a explicação correta do arco-íris. Os trabalhos físicos de Alberto de Saxonia foram completados por:

Nicolau de Oresme, professor de teologia em Paris (1362) e mais tarde (1377) bispo de Lisieux, onde faleceu em 1382. Escreveu em latim e francês as suas obras principais sobre física, astronomia e economia política. O tratado sobre "A origem, natureza e as variações da moeda" lhe assegura o primeiro lugar entre os sociólogos do seu século. É, porém, no domínio das ciências que o célebre bispo nos aparece como um grande precursor. Devemos-lhe pelo menos três grandes descobertas: a) a teoria das coordenadas, utilizada para a representação gráfica das variações de uma intensidade, idéia que lhe conquista antes de Descartes o título de fundador da geometria analítica; b) a lei da queda dos corpos que até agora comumente se atribuía a Galileu; c) a teoria heliocêntrica, por êle proposta, no dizer de Duhem, com mais clareza do que pelo próprio Copérnico.

Buridano, Alberto de Saxonia e Nicolau de Oresme são, pois, em plena Idade Média, os fundadores da ciência experimental moderna. Os seus trabalhos, por uma série de intermediárias de que Leonardo da Vinci é o mais importante, exerceram profunda influência em Descartes e Galileu que é o legítimo herdeiro da escola científica de Paris do século XIV (78).

91. OUTRAS ESCOLAS — Paralelamente à nova escola oca-mista, continuaram: a escola scotista, representada por vários nomes obscuros entre os quais o de Francisco de Mayron (m. 1325), ma-gister acutus ábstractionum, e a escola tomista, que melhor se preservou da degenerescência geral. Entre os tomistas, Capreolus (m. 1444), princeps thomistarum, Silvestre de Ferrara (m. 1528) e To-maz de Vio, Cardeal Caetano (m. 1524), o primeiro que "leu" a Summa de S. Tomaz em lugar das Sentenças de Pedro Lombardo são nomes que, apesar de alguns sinais de decadência, poderiam, sem des-douro, figurar ao lado dos grandes pensadores do século XIII.

S. Antonino de Florença, (m. 1459) aplicou os princípios tomistas a várias questões de direito social.

MISTICISMO — Por esse tempo refloresceu a mística, refúgio dos espíritos, nas intermináveis controvérsias da filosofia. Quid prodest magna cavillatio de occultis et obscuris rebus, quid curae nobis de generibus et speciebus? escrevia por esta época o autor da Imitação de Cristo (79).

Representaram a mística ortodoxa João Ruysbroeck (1293-1381), Gerson (1363-1429), chancelário da Universidade de Paris, e Dionísio Cartusiano (1402-1471), Doctor extaticus.

Meister Eckehart (1260-1327), fundador da chamada mística alemã, raia por um panteísmo onde se revêem as idéias capitais do neoplatonismo do Pseudo-Dionísio aclimadas na Idade Média pela síntese de Scoto Êrigena. Henrique Suso (1300-1365) e João Tauler (1290-1361) são mais exatos em determinar as relações entre o Criador e as criaturas.

(78) "Le Moyen-Age… a posé les fondements de l’astronomie et de la physique modernes". E. Gilson, Philosophie au Moyen-Âge, Paris, 1925, p. 281. "C’est de cette tradition parisienne que Galilée et ses émules furent les héritiers". P. Duhem, Études sur Léonard de Vinci, 3e série, Paris, 1913, Préface.

BIBLIOGRAFIA

G. Ockham, Super 14 lib. Senteniiarum subtilissimae quaestiones, Lug; duni, 1945; — Quodlibeta septem, Parisiis, 1487; Argentorati, 1491. Não há edições modernas nem completas das obras de Ockham. — K. Werner, Die Scholastik des späteren Mittelalters, Wien, 1883; — G. Canella, II nomina-lismo e Gugliemo d’Ockham, Firenze, 1907; — Muschietti, Breve saggio sulla filosofia di G. d’Ockham, Bellinzona, 1908; — Kugler, Der Begriff der Erkenntnis bei W. v. Ockham, Breslau, 1913; N. Abbagnano, Guiglelmo di Ockham, Lanciano, s. d. (1932?).

Pierre Duhem, Études sur Léonard de Vinci, Ceux qu’il a lu et ceux qui l’ont lu, 3 séries, Paris, 1906-1909; — Id., Les origines de la statique, 2 vols., Paris, 1906; — Id., système du monde de Platon à Copernic, 5 vols., Paris, 1917.

H. Delacroix, Essai sur le mysticisme spéculatif en Allemagne au qua-torzième siècle, Paris, 1900; — q. Paquier, Un mystique allemand au XIV. siècle. L’orthodoxie de la théologie germanique, Paris, 1922; — Grabmann, Die Kulturwerte der deutschen Mystik des Mittelalters, Augsburg, 1932; — X. de Hornstein, Les grands mystiques allemands du XIV. siècle. Eckehart, Tauler, Suso, Luoerna, 1926. (Resume excelentemente o estado atual dos problemas relativos a Eckehart).

 

ARTIGO II FILOSOFIA ESCÓLÁSTICA DISSIDENTE

92. Se não é vistosa a galeria dos últimos escolásticos decadentes, não é menos lastimoso o espetáculo que nos oferece a filosofia antiescolástica dos séculos XIV, XV e XVI.

Antes da Renascença seu principal baluarte é ainda o averroís-mo representado por filósofos de pouco valor.

Fora do averroísmo combateram também mais ou menos conscientemente a filosofia tradicional:

Nicolau D’autrecourt (see. XIV), audaz sofista, que, fazendo pompa de uma dialética sutil e inspirado nos métodos de Ockham chegou às mais extravagantes conclusões afirmando, por exemplo, que "Deus est et Deus non est penitus idem significant, licet alio modo" — "contradictoria ad invicem idem significant" etc.

(79) Cfr. l. I., ce. 1, 2, 3.

Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal, que expõe uma teoria teísta muito próxima do panteísmo. Deus é o fundo substancial do universo em o qual se unem todas as contradições (coincidentia op-positorum). Implicitamente encerra tudo o que explicitamente se acha no mundo, cujos fenômenos, portanto, não passam de teofanias ou manifestações parciais da divindade. Apesar destas doutrinas, Nicolau repele na Apologia de docta ignorantia, a tacha de panteísta.

Além de filósofo, o Cardeal foi grande matemático e astrônomo prevenindo Copérnico na teoria da rotação da terra sobre o próprio eixo.

BIBLIOGRAFIA

J. Lappe, Nicolaus υ. Autrecourt. Sein Leben, seine Philosophie, seine Schriften, Β G Ρ M, VI, Münster, 1908; — Ε. Vansteenberghe, Le Cardinal Nicolas de Cuse. L’action, La Pensée, Paris, 1920; — Paulo Rotta, Il cardinale Nicoló di Cusa. La vita e il pensiero, Milano, 1928; — Fr. Ehrle, Der Sentenzenkommentar Peters von Candia, des Pisaner Papstes Alexander V. Ein Beitragzur Scheidung der Schulen in der Scholastik des XIV. Jahrh. u. zur Geschichte des Wegestreites, Münster i. W., 1925. (É a mais preciosa contribuição para o estudo do movimento filosófico no see. XIV).

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