EL-DORADO – Paulo Setúbal

El-Dorado

Ficção histórica do escritor Paulo Setúbal (1893-1937)

Fonte: Companhia Editora Nacional, 1983

PRIMEIRA PARTE:

O BRASIL FABULOSO:

 

MONSTROS E PRODÍGIOS

1531… Cinco naus, garbosas e redondas, velejam solitárias pela
vastidão das águas atlânticas. São as naus que conduzem a S. Vicente os
colonizadores de Martim Afonso de Sousa. São as cinco naus povoadoras que,
carreando entre as vergas um mundo, trazem ali, naquela viagem fundamental, a
missão mais alta que já partira de Portugal ao Brasil: vêm elas com o colono,
com a semente, com a charrua, com o padre, com o meirinho, plantar na terra
ingénua dos homens vermelhos a civilização ladina dos homens brancos. E que
desassombradas são! Galhardas, a cruz de Cristo panejando no mastaréu, ali vêm
elas, gaivotas atrevidas, buscando o país tentador que surgiu das espumas, esse
encantado país virgem que nasceu do outro lado das ondas. Ali vêm elas, com as
rés donosamente acasteladas, com as suas latinas alvas e côncavas, com a grossa
cordoalha tecida nas Flandres, furando com desempeno a apavorante imensidão da
planura salgada. A imensidão daquela planura, crespa e medonha, arrepiadoramente
povoada de monstros marinhos. Ah, os monstros horrendos que moravam no mar-da-noite! Que coisas
estupefacientes se não contavam deles. . .

Eram baleias chifrudas, enormes como caravelas, que tinham, segundo a
palavra deslumbrada de muito viajeiro, as tripas entupidas de âmbar finíssimo.
Eram também uns animais pardacentos, "tamanhos como um novilho de dois
annos", que, andando no mar como peixes "tinham grande grandura,
cabellos ruivos, dois braços do comprimento de um covado e duas mãos redondas como
pás". Eram, acima de tudo, as hipupiaras. Eram as sinistras hipupiaras,
aqueles tão falados e tão temidos demônios-da-água.» E que demónios tenebrosos!
"As fêmeas parecem molheres, têm cabellos compridos, e são
fermosas…" Mas os machos, metade homem e metade abantesma, esses, em
noites de lua esbranquiçada, quando o céu é triste, surgem repentinamente das
ondas espumarentas, correm atrás dos selvagens, estrangulam-nos, e, na sua
caprichosa voracidade, comem-lhes "os olhos, os narizes, as pontas dos dedos
e as genitálias".

Quanta monstruosidade por esse traiçoeiro mar afora! Mas as naus
povoadoras, no entanto, aquelas cinco naus redondas que trazem a civilização
branca à terra vermelha que alvorece, vêm ali, audazes e visionárias,
indiferentes a monstros e prodígios, bailando aventurosas ao rugido das vagas
corcovantes. Como é noite, e noite tropical, incensada de bafos mornos,
trêscalante de cheiros acres, os marujos, rudes cantadores trigueiros, tangem
na viola alentejana a toada chorosa dum lindo, lindo trovar. . .

"Muitas
noites se passaram, Muy tos dias já são idos. Meus bens todos se acabaram. . .
Somente não se findaram, Dona minha, os meus gemidos". . .

Os mareantes, encostados à amurada, a alma fantasiando ao embalo nostálgico
da trova, cravam olhos cismadores no país namorado que dorme ao longe. ..

Lá está, na
noite erma, como sinuoso fio de luar adormecido à beira dágua, a praia fina e
branca de Pêro Vaz Caminha, aquela "praia parma, muy chã e muy
fermosa", onde viviam selvagens vermelhos, muito emplumados, que contavam
histórias fascinantes de longínqua serra alterosa, serra resplandecente, onde
havia esmeraldas e prata.


está, com os seus confusos arvoredos emaranhados, abrasando a imaginativa dos
marujos, a terra moça e morena, tatuada de serras, onde tudo é ainda frescura e
virgindade, tudo verdores, tudo purezas e doçuras de paraíso. "A terra em
si he de muyto bons ares, assi frescos e temperados, como dantre Douro e
Minho", dizia ao Rei, com simpleza, a pena de pato de Pêro
Vaz. Ao que Gandavo, o saboroso autor da nossa primeira História (livro que
traz este nome tão lindamente evocador: "Historia da Provinda de Sancta
Cruz a que vulgarmente chamamos Brazil") acrescentou com entusiasmo:
"… he esta terra, sem contradição, a melhor da America para a vida do
homem, por ser comummente de bons ares, e fertilissima, e em grari maneira
deleitosa e aprazivel á vista humana. He onde sempre a verdura permanece com
aquella temperança de primavera". . . Verdade é que (sentia-o liricamente
o padre Fernão Cardim) a terra, na sua rústica e deserta grandeza, tinha assim
uns tons de vaga tristura: "com os seus céos muy puros e claros,
principalmente de noite… a terra he algum tanto malencolica…"

Mas aí, nessa
região edênica, algum tanto malencolica, nesse país
enfeitiçado e verde, de ares doces e veludosos, havia também, tal como no
mar-da-noite, singularidades e estranhezas que botavam assombros na alma tosca
dos navegantes. Sim, era aí, dentro daquele sertão misterioso (contavam-no os
marujos com pasmo) que crescia aquela surpreendente erva-do-vidro, flexuosa e
rebrilhante, que dava vidro tão fino como o de Veneza.. Era aí também que
crescia a famosa erva-viva, com a sua humana sensibilidade, tão prodigiosa, que
— "se tocão esta erva com a mão, ou com qualquer outra cousa, se encolhe
logo, e murcha, como se sentira o toque; depois que a largão, como já
esquecida do aggravo, se torna a estender e abrir as folhas. Chamão erva-viva,
e lhe poderão chamar sensitiva, se o não contradissera a Philosophia"…
Era ainda aí, na terra desnorteante, que medrava essa árvore-do-sabão, tão
singular, nunca vista alhures, a qual "com a só casca dos fructos se
ensaboa a roupa". E que dizer da ubiractcá? Oh, que estupendo e milagroso
pau! "É aquelle (diziam-no gentes graves e verdadeiras) que tem honesta
grandeza, deita uma resina molle e pegajosa, da qual se fazem emplastros para
soldar carne quebrada".

Mas
não era só. Não eram apenas árvores e ervas que aí, no estranho país, mostravam
assim tais des-conformidades. Havia ainda, nessa terra de prodígios, aqueles
bicharocos chamados buijejas, os quais (afir-ma-o o honrado Gabriel
Soares) "são tão resplandescentes que, estando de noite em qualquer caza,
ou fora1 dela, parece uma candeia accesa; e, quando andam, são
ainda mais resplandescentes. Tem este bicho uma natureza tão extranha que
parece encantamento: pois, tomando-o na mão, parece um rubim mui
resplandes-cente; e, se o fazem em pedaços, se torna logo a ajuntar e a andar
como dantes". . .

E
as serpentes? Ah, aquele extraordinário país que lá, ao longe, dormitava ao
escachôo murmuro da onda, era a pátria sem rival das serpentes mais absur
das. Mais absurdas, não havia dúvida, "e muy gran des, e de que se contam
coisas muy notáveis", exclamava o velho Gandavo. Era lá que morava a
mágica boitipoá que "he cobra mui delgada e sustenta-se somente de
rãs; os indios, quando a molher não tem filhos, dão-lhe com esta cobra nas
cadeiras e dizem que a molher ha de logo parir". Muitas há, como em
nenhuma terra outra, rajadas e lindas, que "cheiram muito a almíscar: e
onde quer que estão, dão signal de si pelo bom e suave cheiro". As
mais prodigiosas, porém, as que causavam mais assombro, eram as su-curijubas,
que "teem vinte pés de comprido, dentes de, cão e são muito galantes;
e mais galantes o são em en-guiir um veado inteiro"… Nem só o enguliam,
pois (eis o portento que desconcertava a todos) "depois que assim o tem na
barriga, deixa-se apodrecer; e os corvos a comem toda, de modo que não
ficam senão ossos; e depois torna ella a criar carne nova e a resurgir como
dantes era".

País fabuloso! Terra de abortos e de aleijões! Os aventureiros que
cortavam a linha, rumo à América, traziam os ouvidos cheios de tão assombrosas
singularidades . ..

Nota:
— As citações deste
"Brasil Fabuloso", que vêm apenas entre aspas, sem nome de autor, são
tiradas ou de Gandavo, ou de Cardim,
ou de Frei Vicente, ou de Gabriel Soares.

 

Sim, os aventureiros que cortavam a linha, rumo à América, traziam os
ouvidos cheios de tão assombrosas singularidades. Mas não eram essas
singularidades o que tentava a audácia temerária de tais homens. O que os
tentava, o que os arrastava com tão intrépida afoiteza por essesj ermos
medonhos, era a alucinadora miragem das riquezas. Porque o Brasil, a preciosa
terra do pau-de-tinta, surgia, a esse tempo, ante os olhos cúpidos dos
mareantes, como o país mirífico das pratas, e das esmeraldas, e dos ouros. Era
aí, nesse escuro sertão de bichos arrepiantes e de árvores despropositadas, era
aí, por certo, nessa terra contígua à terra opulentíssima do Potosii, a região
tão sonhada dás minas fabulosas e dos tesouros esbraseantes. . .

Eis porque, naquela famosa viagem colonizadora, os marujos de Martim
Afonso, dentro de suas grandes naus bojudas, renteando a branca solitude das
praias, olhos fincados no cos tão abruptado, repassavam no coração os mil
relatos de riqueza, relatos fulgurantes e maravilhadores, que os viajeiros contavam
com es-tonteamento da terra nova. Ah, as grandezas que se alardeavam do Brasil!

Já Pero "Vaz Caminha, na sua tão celebrada carta inaugural,
mandava pressurosamente a boa-nova ao Rei (vede a ideia obsidente da época!) de
que os bugres, ao terem o primeiro contato com Cabral, botaram logo reparo no
cordão de ouro que o descobridor trazia ao pescoço e no castiçal de prata que
havia sobre um bofete da nau. Botaram reparo e, o que é mais, puseiam-se a
acenar para o sertão com grandes e significativos
gestos. Esses gestos (esclarecia o encantado cronista) queriam dizer que
havia, ouro e prata na terra nova "… os selvagens entraram; não fizeram
nenhuma mençam de cortezia, nem de falar ao Capitam, nem a ninguém. Pero hum
delles pôs olho no collar do Capitam, e começou a accenar com a mão para a
terra e depois pêra o collar, como que nos dizia que avia em terra ouro. E
também viu um castiçal de prata, e assy mesmo accenava para a terra, e despois
para o castiçal, como a dizer que avia na terra também prata".

Desde
então, desde a descoberta de Pedro Álvares, com teimosa insistência, os que se
ocuparam do Brasil falam com desbordância das suas pratas e ouros.

Américo
Vespúcio, aí por 1503, nas cartas que escrevera a Sonderini, apregoa com estrondo
o poder de riqueza que havia na terra descoberta pelo português. E dizia haver
por lá tanto ouro, tanto ouro, que os selvagens nem sequer faziam caso dele.
"… o paiz não produz
outro metal senão ouro, do qual ha grandíssima abundância. Certificaram-nos bem
disso todos os naturaes que affirmavam ser a terra muito, prenhe delle; e,
muitas vezes, ouvi que elles, pela abundância, davam ao ouro pouca estimação e
nenhum valor". Gandavo, por seu turno, não se cansa de proclamar, em todos
os seus escritos, as grandezas do país nascente. "Esta Província de Sancta
Cruz, alem de ser tão fértil como eu digo, he certo ser também muy rica, e
haver nella muyto ouro"… O próprio Gabriel Soares, que é o mais
conspícuo dos cronistas da época, e eminentemente fidedigno, afirma com
incisão: "Dos metaes que o mundo faz mais conta, que é o ouro e a prata,
esta terra tem delles tanta parte quanto se pôde imaginar. De ouro e prata
podem vir á Hespanha, cada anno, maiores carregações do que nunca viram as
índias occidentaes". ..

Prata, ouro, pedras raras. Oh, as pedras raras! Que estupendas coisas
não se diziam das pedras raras que se "criavam" por esses matos!
Andavam de boca em boca, candidamente acreditadas, umas histórias trazidas por
bugres, muito pasmosas, dizendo que — "no sertão, debaixo da terra, se
cria uma pedra do tamanho e redondeza de uma bola, a qual arrebenta com estouro
debaixo da terra; ao que acodem índios e cavam a terra onde troou este estouro
e ahi acham aquella bola arrebentada em quartos, como romã; saem-lhe de dentro muytas pontas
crystalinas, do tamanho de cerejas, oitavadas e lavradas muy subtilmente como
diamantes. A casca desta bola é de pedra, não muyto alva, ruivaça por
fora". . .

Terra
única, Ofir, sertão de bruxedos e encantamentos, era essa provocadora terra dos
papagaios, onde, com estouro, brotavam do seio da terra, de uma bola de pedra,
ruivaça por fora, diamantes sutilmente oitavados e lavrados! Quimeras assim,
tentadoras e refulgentes, bailavam como labaredas queimantes no ar crédulo do
século. Ouvindo-as, e entontecidos por elas, é que tantos se metiam pelo oceano
falso à busca dessas fantasmagorias desvairantes.

E
não eram apenas (convém lembrá-lo), não eram apenas essas histórias do Brasil nascente,
contadas pelos selvagens, que atiçavam cobiça no coração dos que se abalavam
pelo mar-da-noite. Havia mais. Havia ainda, por essas nevoentas eras, as
notícias radiosas, verdadeiramente espicaçadoras, desse reino mirífico do
EL-DORADO, reino magnificente e lendário, onde tudo eram grandezas e riquezas
de assombrar. Os es-ploradores de país tão fúlgido, revelou-os ao mundo a
palavra cálida de um capitão inglês — Walter Raleigh. "Os castelhanos
(escreve-o Raleigh), contaram-me coisas muitíssimo maravilhosas da cidade de
Manoa, que eles chamam de "El-Dorado"…

Esse nome de El-Dorado, tão largamente famoso, vinha
do rei que reinava naquela terra. Rei tão poderoso, tão opulento, que, todas as
manhãs, fazendo-se untar o corpo de preciosíssimas gomas perfumadas, mandava
que os seus escravos, com um tubo, lhe assoprassem por cima densas nuvens de
ouro em pó. Co-bria-se inteiro, dos pés à cabeça, com esse custoso manto
dourado. À noite, antes de deitar-se, o rei chamava de novo os escravos: os
escravos lavavam todo aquele pó e lançavam-no fora. No outro dia, conforme o
uso, recomeçava-se tudo outra vez.. .

Esse reino alucinador encheu o mundo com o eco escaldante das suas
opulências. "Custou elle á Hes-panha mais sangue e dinheiro do que todas
as suas conquistas"… comenta Southey. E onde ficava o soberbo país de
Manoa? Ficava no Brasil: "entre o paiz do Amazonas e a terra do
Maragnon".

E
assentava-se em torno a um lago de águas salgadas, imenso e maravilhoso. Esse
lago, todo de prata, com as suas margens de prata, cavado num chão de prata,
era tão grande, tão grande, como o próprio mar oceano — is of such bignesse,
that they know no difference betweene it and the maine sea — conta-o Raleigh no
inglês áspero da época. O El-Dorado, proclamava com estridência o capitão
incentivador, ultrapassava o mesmo Peru em riquezas e fulgores. Mas nem era
preciso que o ultrapassasse: bastava que tivesse
riquezas iguais às de lá. E exclamava: "Já ouvistes contar as
suntuosidades de Guainapac? Pois todos os utensílios do seu palácio, tudo o que
serve à mesa ou à cozinha deste rei, é de ouro e prata. Na sala grande do
palácio, vêem-se, talhadas em ouro, estátuas de tamanho gigantesco. E
pássaros, e animais, e árvores, tudo de ouro. E não se contentou o Rei com tamanhas
prodigalidades: mandou construir na ilha de Puna, um novo jardim inteiramente
calçado de ouro e prata. Eu, apesar disso, estou convencido de que o príncipe
que reina em El-Dorado possui mais ouro e mais prata do que o próprio
Guainapac" . . .

Tais
eram os contos vertiginosos que boiavam no ar ingênuo do século XVI. Tais eram as crendices que os povoadores de Martim Afonso traziam no
coração ao cortarem as águas temerosas do Atlântico. Tais eram os enganos que
lhes bailavam diante dos olhos sonhadores, ao ouvirem, na noite amolentadora,
encostados à amurada, a viola alentejana chorar, com saudade e brandura, a
trova daquele lindo, lindo cantar:

"Muytas
noites se passaram, Muytos dias já são idos. Meus bens todos se
acabaram… Somente não se findaram, Dona minha, os meus gemidos".,.

A PRIMEIRA
"BANDEIRA"

Rio de Janeiro! Certo dia, diante do olhar enlevado dos nautas, surgem,
na sua grandiosidade arrebatadora, dentro de cenário majestosamente rústico, os
esplendores selvagens da baía única. Águas e morros! Tudo pródigo, tropical,
cheirando a terra virgem, ineditamente belo. Lá, ao longe, como pássaros
enormes, papagaios de pluma verdejante pousados risonhamente na onda clara,
ergue a cabeça fora das espumas eriçado bando de ilhas. Que pitoresco! Todos os
via-jeiros que navegaram por aqui nessas brumosas épocas, todos, absolutamente
todos os que viram, desde o mais remoto madrugar do Brasil, esse rio-de-janeiro
pajra-disíaco, deixaram tombar da pena, fascinados pela paragem feérica, a
emoção encantada do seu deslumbramento. O velho Tomé de Sousa, homem sisudo,
de-safeito a lirismos e devaneios, governador notadamente frio-e prático, o
próprio Tomé de Sousa, ao dar com os feitiços da enseada surpreendente, foi
logo escrevendo dela, ao Rei, estas palavras enamoradas: "Mando um debuxo
deste rio de janeiro a V. Magestade. Tudo é graça o que delle se pode
dizer; senão que pinte quem quizer, e como quizer, um rio: e tudo o que pintar
terá este de janeiro". Ao que Fernão Cardim, no seu enlevo, acrescentou
com maior quentura: "… dentro da barra tem uma bahia que parece que a
pintou o supremo pintor e architecto do mundo, Deus nosso Senhor; e assy he
cousa fermosissima, a mais aprazivel que ha em todo este Brazil". . .

Foi aí, em águas assim maravilhadoras, que a frota de Martim Afonso
lançou âncora. "… aqui estivemos três mezes tomando mantimentos para hum
anno, para os quatrocentos homens que trazíamos". Mas a natureza
estonteante, aquela rude e nobre magnificência da Guanabara, não foi apenas o
que fascinou, naqueles três meses de querena, os mareantes que arribavam. Não.
Tudo o que os seus olhos depararam na terra nova os deslumbrou. Até os
selvagens. Sim: até os selvagens! Já na Baía de Todos os Santos,
ao ver os bugres que acorriam alvoroçados à praia, o escrivão do roteiro, no
seu entusiasmo, lá anotara com descompassada quentura: "a gente desta
terra he toda alva, os homens muy bem dispostos, as molheres tam fermosas que
não hão nenhúa inveja ás da Rua Nova de Lixboa". índias singulares… Não
tinham, em formosura, inveja às lisboetas da Rua Nova! Foi a primeira e última
vez — é pena! — que se viram por cá bugras dessa casta… Oh, naqueles dias de
repouso, depois da longa e abstinente travessia, que ardoroso foi o cronista! Tão ardoroso que não ficou só nisso.
Aqui, no "fermosissimo rio de janeiro", diante dos ta-moios nus,
proclamou ele, com exaltação ainda maior: "a gente deste rio he
como a da Bahia de todolos Santos; senam quanto he ainda mais gentil gente. . .
(!)"

* * *

Martim
Afonso, porém, não se quedou, ante aquela gentil gente, marasmado entre
embevecimentos e êxtases. Quis o capitão encher os largos dias de parada com a
realização de coisas estáveis. E pensou em devassar a terra nova. Além daqueles
morros azuis, que escurentavam o horizonte, dentro daquele hirsuto emaranhado
de arvoredos, que coisas realmente haveria? Que gentes? Que bichos? Que
riquezas? Ninguém sabia. Eram tudo falas vagas, tudo mistérios confusos. Foi
então que, para esclarecer essas falas e para desvendar esses mistérios, como
pórtico ao drama de desbravamento que ia desenrolar-se em breve, Martim Afonso
resolveu mandar alguns marujos seus, tão longe quanto pudessem, explorar o
sertão bárbaro do país lendário. Escolheu quatro homens, bem corajosos, para
essa amedrontadora jornada de penetração. "Daqui mandou o Capitam quatro
homens pela terra a dentro"… O capitão mandou: e os quatro intrépidos aventureiros, sem vacilar,
saíram a atacar o Brasil selvático que amanhecia.

Lá foram.. .

"Foram e vieram em dois mezes; e andaram pela terra cento e quinze
léguas; e sessenta delias foram por montanhas muy grandes e cincoenta por hum
campo também muy grande". Onde localizar, com precisão, essas
"montanhas muy grandes" que galgaram os quatro desvirg.inadores da
terra brasileira? Onde esses "campos muy grandes" que eles
perlustraram? Difícil respondê-lo.

O certo, porém, é que os ecos dessa nebulosa entrada reboaram pelos
sertões da América. Os castelhanos do Paraguai teceram sobre ela coisas
fabulosas. Essas coisas fabulosas virão logo nestas páginas. Contemos apenas,
neste passo, o que del^ deixou escrito Pêro Lopes, o escrivão da armada.

Diz
ele que ocorreu aos quatro aventureiros esta pequenina história extraordinária:

"foram
elles até darem com hum grande Rey, senhor de todos aquelles Campos, q. lhes
fez muyta honra e vêo com elles até os entregar ao Capitam. E lhe trouxe muyto
christal e lhe deu novas de como no Rio do peraguay avia muyta prata e
ouro". . .

Prata e ouro! Eis, sem dúvida, a notícia melhor, mais auspiciosa, que a
frota recolheu na baía incomparável. Prata
e ouro! Não eram vãos nem quiméricos, portanto, os rumores que voavam, de todos
os lados, sobre as riquezas do país dos bugios. "… no Rio de peraguay
avia muyta prata e ouro!" Essa afirmativa, assim categórica, veio reforçar
aquelas famosas informações que Pêro Vaz Caminha recolhera dos bugres que aqui
encontrou na viagem da descoberta. Sim, não haviam mentido os selvagens que,
conduzidos à nau de Pedro Álvares, ao ser-lhes mostrado o cordão de ouro e o
castiçal de prata, apontavam com o dedo as serras ao longe, em grandes e
expressivos gestos, como a dizer havia daquilo pela terra adentro. "No Rio
de peraguay avia prata e ouro". . . Essa notícia foi, por certo, o que
mais peremptoriamente determinou a Martim Afonso a equipar, e a mandar com
muitas esperanças ao sertão, a primeira bandeira regular, "bandeira"
no sentido exato do termo, que já entranhou pelas nossas selvas. Como? Sigamos,
com Pêro Lopes, os sucessos da armada.

*
* *

Martim
Afonso, desaferrando, deixa os esplendores da Guanabara, e, com o precioso
informe das riquezas, ruma a caminho do Sul. Ancora em Cananéia. Aí, com surpresa e júbilo, encontra o colonizador vários europeus (náufragos e
degradados) que estavam, há já compridos anos, instalados
no continente virgem. Lá conta o roteiro:

"Quinta-feira,
17 do mez de Agosto. Veiu Pêro Annes, piloto, no bergantim; e, com elle, veio
Francisco Chaves e o bacharel, e cinco ou seis castelhanos. Este bacharel fazia
trinta annos q. estava degradado na terra". . .

Foi
em Cananéia, pela boca de tais europeus, que Martim Afonso recebeu novas
notícias tentadoras. Novas informações (e desta vez afoitamente positivas)
sobre a prata e o ouro do Brasil. "… Francisco Chaves, que era muy
grande lingoa desta terra, pella informação q. deu ao Capitam, se obrigava em
dez me-zes tornar ao dito porto com quatrocentos escravos carregados de ouro e
prata".. .

Ouro
e prata! Quatrocentos escravos carregados de ouro e prata! Era grandeza
irresistivelmente es-picaçadora. Martim Afonso não hesitou mais: assentou logo
de invadir o sertão com poderosa bandeira. "… pella informação que deo
Francisco Chaves ao Capitam, mandou elle a Pêro Lobo, com oitenta nomes que
fosse a descobrir pella terra a dentro". . .

Organizou-se
a bandeira sem delongas. Organi-zou-se com luzimento e fartura. Martim Afonso
botou nela um troço de quarenta besteiros. "Um troço de quarenta
espingardeiros". Equipou-os. Apetrechou-os. Municiou-os.
E um dia — 1.° de setembro de 1531 — Martim Afonso ordenou a Pêro Lobo que
partisse. E Pêro Lobo cumpriu as ordens do capitão.

É
madrugada. Os marujos da frota desceram todos à praia. Circundam com
enternecimento os que vão à aventura. Que irá acontecer? Quem ficará naqueles
matos devoradores? E há ali abraços. E adeuses longos. E palavras comovidas. De
súbito, em meio às despedidas, estronda brusco tiro de bacamarte. Todo o
vozerio cessa de golpe. É a hora de partir. Os soldados formam-se em ordem de
marcha. Momento emocionante! Ninguém ousa a mais mínima palavra. Então, na
manhã clara, estronda novo tiro de bacamarte: e a bandeira de Pêro Lobo, debaixo
dum grande silêncio dolorido, abala.. .

Abala,
pela terra adentro, a descobrir. Abala, com
os seus mosquetes e terçados, desassombradamente, levando pequenina
flâmula verde tremulando ao sol. E a tropa marcha. E afasta-se. E lá vai.
..

Aquela
bandeira (notai-o beml) é a primeira bandeira, regularmente ordenada, que sai a
devassar o Brasil. E essa bandeira parte — curiosa predestinação histórica! —
das terras de S. Vicente. Ah, por mais seca, por mais sem arroubo que seja a
nossa fantasia, nós, brasileiros, num vôo para trás de quatro séculos, ainda
revemos, com embevecimento, o desbravador caminhar à frente da
tropa, avançar lento pelo chão afora, distanciar-se, diminuir-se, tornar-se um
ponto-zinho negro no horizonte, e, afinal — galhardo violador de brenhas) —
mergulhar com destemor na mataria terrificante. Mergulhar na selva ainda não
penetrada, rumo ao desconhecido, em busca dos apregoados tesouros do país
misterioso.

Que grandes coisas não diz a avançada de Pêro Lobo! Aquela bandeira que
ali vai tem um significado alto. Aquela bandeira que ali vai, arrastada ao
sertão pela miragem do ouro e da prata, traduz o primeiro arranco para a posse
da Pátria. É a machadada inaugural para a penetração da terra nova. O marco miliário
dum acontecimento gigantesco: ela abre ali, em 1531, fascinada pelo sonho da
riqueza, a página inicial duma rude epopeia — o desbravamento do Brasil.

OS QUATRO DE MARTIM AFONSO

Qual teria sido o fim de Pêro Lobo? As crónicas dizem-no com clareza:
Pêro Lobo foi, com todos os seus homens, trucidado pelos índios carijós nos
campos de Curitiba (1).

E
quais teriam sido as aventuras daqueles quatro de Martim Afonso? Daqueles
primeiros rompedores dos matagais brasileiros? Ninguém sabe ao certo. Tudo aí
são conjeturas. Mas como estamos na era nevoenta do Brasil fabuloso,
traslademos para aqui, como história pitoresca, aquela "história
extraordinária, que com o nome de entrada de Aleixo Garcia, contavam os
castelhanos do Paraguai ter sucedido a esses quatro lendários homens de Martim
Afonso. Dá-nos conta desta história, e fá-lo bem castelhanamente, o velho Ruy
Diaz de Guzman, um dos povoadores da Argentina, em vetusto e preciosíssimo
livro (2). Relatam-se aí aqueles
feitos grandiosos de "una entrada q. quatro portugueses dei Bracil
hicieron por esta tier-ra hasta los confines dei Peru". Nomes e datas
andam muito baralhados na prodigiosa crónica. Não importa! Saboreemos, com Ruy
de Guzman, as proezas dos ser-tanistas desassombrados. É uma novela épica.

(1)  — A Câmara de S. Paulo, em, 1580 pedia ao
Capitão-mor que se declarasse a guerra aos carijós porque, entre outros
massacres, haviam estes selvagens assassinado "oitenta homens que Martim
Afonso despachara para o sertão".

(2) 
— "Historia dei
descubrimiento, conquista y poblacion dei Rio de la   Plata  —  Argentina"   —   (Comentários  de  Groussac).

* * *

"…
Y es lo caso q. el ano dei mil quinientos e veinte y seis, salieron de San
Vissente quatro portu-guesses por ordem de Martim Affonso de Soza, senor de
aquclla Capitania (sic) a que entrassen por aquella tierra a dientro y
descubrissen lo que avia. El uno de estos quatro portuguesses se llamava Alejos
Garcia".

Aleixo Garcia embrenha-se com os companheiros pelo país. Depois de longas
e rudes caminhadas, depois de vencer muita serra e de vadear muita água,
alcança o bizarro aventureiro os chãos do Paraguai. Aí tem ele a boa fortuna de
ser acolhido com festivo recebimento pelos selvagens da região. E os selvagens,
ven-do-o indagar das riquezas da terra, contam-lhe notícias febrentas dum país
longínquo, terra de incas, onde, à beira duma lagoa, havia imensa prata e
imenso ouro. Os homens de Martim Afonso percebem logo que esta terra de incas,
assim tão rica, à beira da lagoa, não é outra senão a terra do El-Dourado. E todos, com o coração aos pulos, têm agora um
só pensamento:

– El-Dorado! El-Dorado!

Aleixo
Garcia, deslumbrado, decide-se a armar
uma grandiosa bandeira conquistadora. E, à frente
dela, D. Quixote rústico, a aventurar-se arrojadamente
pelo sertão empós o El-Dorado fascinador. Reúne
logo as gentes todas do país (combocó toda la comar
ca!) e propôs que partissem juntos, rumo ao poente,
descobrir aquelas terras opulentas, de tão provocadora
grandeza, donde, certamente — "traeriam muchas ro
pas de estima e muchas cosas de metal". As gentes
do país aceitam de boa sombra o convite tentador. E
assim, levado pelo ouro e pela prata, os quatro homens de Martim Afonso arremeteram-se pelas brenhas
adentro, desabusados e formidolosos, à busca do fúlgido reino dos incas.

Jornada
maravilhosa! Bandeira das mil-e-uma-; noites! Durante meses, furando
aquelas paragens chucras, ainda não pisadas, vadeando aqueles grossos rios
encachoeirados, povoados de bichos peçonhentos, vencendo monstros desconformes,
matando serpentes que enguliam veados, o bando heróico lá foi, desem-pcnado, a
golpear com o seu rastro atrevido o coração verde da América. E que aventuras
imensas as dessa bandeira singular. . . Ah, os bugres terríveis
que combateram! As
línguas estranhas que ouviram 1 As nações que toparam! Os encontros feios que
tiveram! "… caminando por los llanos de aquella tierra, encontraran
muchos pueblos de Índios, y es trarias len-guas, y muchas naciones, y tubieron
feos encuentros"…

Por entre perigos assim sem conta, ganhando batalhas e perdendo
batalhas (peleas ganando com unos y perdiendo con otros), depois de varar,
quase de lado a lado, o continente inteiro, os homens assombrosos alcançam —
enfim! — o ambicionado Peru, a pátria tão apetecida das minas. No Peru, as
façanhas dos aventureiros são imorredouras. Invadem, como um furacão, cidades e
povoados. No seu avanço — "arrobando y matando quanto encontran" —
vai com eles tudo raso! Os saques dessa jornada são magníficos. Os aventureiros
engorgitam-se do ouro das rapinas. Ficam todos ricos. E, com riqueza lá tornam
eles radiosamente ao pequenino Paraguai.. Voltam ufanos! Voltam "cargados
de despojos, y de ropas, y de vestidos, y de muchos vasos, y de coronas de
plata, y de outros ricos metales".

Dali, do Paraguai, a fim de dar conta dos sucessos da jornada, enviou
Aleixo Garcia a Martim Afonso os seus companheiros. Foram esses companheiros,
ao voltar, os que certamente trouxeram ao Capitão, segundo a palavra do
escrivão da armada, a notícia de que — no Rio do peraguay havia muito
ouro e prata.

E essa prata e
esse ouro, contudo, desgraçaram a Aleixo Garcia. Foram eles — "las muchas
amuestras y picssas de plata y oro que avian traido de aquellas partes" —
o que perdeu o aventureiro rumoroso. Pois os selvagens, ao verem Aleixo tão
abarrotado de rique-za, resolveram, chuçados pela "codicia de robarle lo
que tenia", dar cabo dele, e dos parceiros. E assim, os miseráveis,
"una noche, estando Alejos descuidado, lo acometieron; donde el y sus
companeros fueron todos muertos".

Todos mortos.
. . Eis aí, dentro da lenda, com esse epílogo de sangue, o desfecho da jornada
maravilhosa. Eis aí, sobretudo, o fim daquele formidan-do Aleixo Garcia, o
desvirginador da América, nove-lesco vencedor de incas, fero conquistador do
país do ouro e da prata. . .

Brasil de Aleixo Garcia. . . Que lindo Brasil fabuloso! Foi por esses
tempos, com os ecos que vinham do sertão sobre uma extraordinária serra branca,
toda de prata; foi por esses tempos, com as histó-rias que os bugres contavam,
sem cessar, sobre uma extraordinária serra verde, alta e mui resplandecente;
foi por esses tempos, assim recuados e cândidos, que surgiram na terra dos
papagaios duas grandes lendas memoráveis: "a serra da prata" e
"a serra das esmeral-das", isto é — a montanha do Sabarabuçu e a
montanha resplandecente.

A. serra da
prata e a serra das esmeraldas! Esses dois sonhos, como já o notou com rara
agudeza o eminente sr. Teodoro Sampaio, esses dois mendazes acc: nos de
riqueza, foram, no alvorecer do Brasil, os dois fachos quiméricos, os dois
clarões esbraseantes que atraíram os desbravadores para dentro das selvas
hir sutas. A esses dois sonhos, que afinal resultaram vãos veio em
breve ajuntar-se mais um: o sonho do ouro, Sim, foi o sonho do ouro, sonho
febril e enrodilhante, que arremessou para o âmago daquele Brasil primevo, inóspito, medonhamente selvagem, levas e
levas de rompedores-de-mato. Foi ele que acicalou aquelas
gentes rudíssimas a talarem o país de extremo a extremo mo. Ele que levou aqueles homens barbaçudos vestidos
de couro, a recuarem para longe, para muitíssimo longe, a nossa linha
divisória com Castela Ele, o sonho do ouro, foi o ferrão mais
agudo para que os paulistas realizassem essa página, brutal e fulgurante,
que é, para a nossa História, absolutamente capital: a Conquista do Território.

Prata,
esmeraldas, ouro… Eis, na sua curiosal gradação, os fatores mágicos do
desbravamento nacional. Prata, não houve sertanista que a
descobri! Esmeraldas, também não houve quem as achaiM ouro? É o que se vai
dizer nas toscas páginas desse El-Dorado.

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