Escritores portugueses medievais do ciclo bretão

CAPÍTULO 5

(Princípio do século XVI ao século XIII) FASE MEDIEVAL

ESCRITORES PORTUGUESES

D. AFONSO II — terceiro rei da dinastia afonsina (Coimbra, 1185-1223), casado com a filha de Afonso IX de Castela, a princesa D. Urraca, de quem teve cinco filhos. Assumiu o trono em 1211 e reinou doze anos, tendo sido por êle convocadas as primeiras cortes portuguesas, que se reuniram em Coimbra em 1211.

Transcreve-se em seguida parte do seu testamento, elaborado em 1214.

Testamento de D. Afonso II (Séc. XIII)

Em nome de Deos Eu, rei don Afonso, pela graça de Deos rei de Portugal, seendo são e salvo, temente o dia de mia morte, a saúde de mia alma e a proe de mia molher, raia dona Orraca, e de meus filhos, e de meus vassalos, e de todo meu reino, fiz mia manda, per que, de pós mia morte, mia molher e meus filhos e meu reino e meus vassalos e todas aquelas cousas que Deos mi deu em poder sten en paz e en folgança. Primeiramente mando que meu filho, infante don Sancho, que ei da raia dona Orraca, aja meu reino inteiramente e en paz. E, se este foi morto sen semel, o maior filho que ouver da raia dona Orraca aja o reino inteiramente e en paz. E se filho baron não ouver-mos, a maior filha que ouvermos aja-o. E se no tempo de mia morte meu filho ou mia filha que devier a reinar non ouvei revora, seja en poder da raia, sa madre, e meu reino seja en poder da raia e de meus vassalos, ata quando aja revora. E se eu for morto, rogo o apostoligo, come padre e senhor, e beijo a terra ante seus pees, que el recebia en sa comenda e so seu difindemento a raia e meus filho e o reino.

E a dia de mia morte, se algüus de meus filhos ouverem revora, ajan seu aver. E dos que revora não ouveren mando que lhis tenhan seu aver, ata quando ajan revora. E mando qu& quen quer que tenha meu tesouro ou meus tesouros a dia de mia morte, que os dê a departir a questes dous arcebispos e a questes cinque bispos, assi como susu é nomeado. E mando ainda que, se s’assüar todos non poderen ou non quiseren, ou discórdia fôr ontraquestes a que eu mando departir aquestas decimas suso nomeadas valha aquilo que mandaren os chus muitos per nombro.

E se a dia de mia morte meu filho ou minha filha, que no meu logar ouver á reinar, não ouver revora, mando aqueles cavaleiros que os castelos teen de mi enas terras que mi têen os meus ricos orríees, que os den a esses meus ricos omees que essas terras tevieren. E os meus ricos omêes den-os a meu filho ou a mia filha que no meu logar ouver a reinar, quando ouver revora, assi como os darian a mi. E mandei fazer treze cartas con aquesta, tal üa come outra, que per elas toda mia manda seja comprida. (566).

(Apud j. J. nunes, Crestomatía Arcaica, transcrito por otoniel mota em O meu Idioma)

CICLO BRETÃO — Pertencentes ao ciclo bretão, por meio de cujas movimentadas novelas assaz se ampliou a produção da Escola Provençal, transcrevem-se abaixo dois breves episódios. São trechos de uma antiga versão portuguesa do romance do Santo Graal, contida no Códice n.° 2594 da Biblioteca de Viena d’Áustria, trasladados pela erudita e ponderada pena do ilustre filólogo Padre Augusto Magne.

 

 

Revolta dec Mordaret (Séc. XIII)

AqueI dia que os Romãos foron vençudos vceron a Rey Artur huas muy maas novas. Ca hüu escudeyro lhi disse:

— "Senhor, vós avedes perdudo o Reyno de Logres. Mordaret, vosso sobrinho, se virou con todolos homens bõos da terra contra vós e é Rey coroado de toda vossa terra. E cercou a Raya Genevra no alcaçar de Londres. E ameaçou-a que a mataria, por o non queria filhar por marido.

E quero-vos contar como. Digo-vos que. pois que se partiu Rey Artur do Reyno de Logres sobre Lançalot, comendou sen falha sa terra e sa molher e sas gentes que ficavan, a seu sobrinho Mordaret. E fez-lhis jurar sobre os santos evangelhos que fezessen por Mordaret tanto como por seu corpo. Quando Mordaret viu que a terra era en seu poder, iogo pensou que faria de guisa que seu tio non ouvesse a que tornar a ela. E ele amava a Raya, que nunca a Lançalot amou mais. E fez enton fazer hüas leteras falsas, que fez aduzer como de carreyra, hu sia, ante os homens bõos de Logres, que fezessen Mordaret Rey e lhi dessen a Raya por molher. Os de Logres, que verdadeyramente cuida-van que era assy, como as leteras dizian fezeron Mordaret Rey. E quando lhi quiseron dar a Raya por molher, non quis ela, ca o desamava muyto, e meteu-se no alcaçar de Logres, con gente de sua linhagen. E Mordaret fez combater a torre, mas non na pôde filhar. Ca os que dentro jazian eran muy bõos, e defende-ran-na ben.

Esta foy a trayçon que Mordaret fez a seu tio, ond aveo que ouve el Rey gran pessar, quando ende as novas ouviu, e disse:

— "Ora, cavalguemos, ca, se Deus quiser, non folgarey até que seja en Logres."

(Da Demanda do Santo Graal, transcrição de pe. augusto magne na Rev. de L. Port., n. 45, p. 41).

Desaparece El Rey Artur

Quando Giflet chegou ao outeyro, esteve so hüa arvor, ata que fosse a chuva, e começou a chorar e catar àquela parte hu el Rey leyxára. E non esteve y muyto, que viu viir per meo do mar (en) hua barqueta, en que viian muytas donas. A barca aportou ante Rey Artur, e as donas sayron fora, e foran a el Rey. E andava antr’ellas Morgay o encantador, yrmão de Rey Artur, que foy a el Rey con todas aquelas donas que tragia, e rogou-o enton muyto, que per seu rogo ouve el Rey d’entrar na barca. E pois foy dentro, fez meter y seu cavalo e todas sas armas; dis i, começou-sse a barca de yr polo mar con el e con as donas en tal ora, que non ouve y pois cavaleyro nen outren no Reyno de Logres, que dissesse pois certamente, que o pois vissem.

Quando Giflet, que estava no outeyro, viu que el Rey entrara na barca con as donas, deçeu-se ende, e foy-sse contra alá, quanto o cavalo o pode levar, ca esmou, se chegasse con tenpo, que se meteria y, con seu senhor, na barca, e que se non partiria dei per ren que aveesse, se per morte.

E quando chegou ao mar, a barca era já alongada da riba, e viu el Rey antre as donas, e conoceu ben Morgay, a fada, ca muytas vezes a vira. E a barca estava da riba tanto como deytadura de besta.

E quando Giflet viu que assi perdera el Rey, começou aa fazer o moor doo do mundo, e ficou ali todo aquele dia e toda aquela noyte, que non comeu nen beveo, nen já o dia dante non comera.

(Ibid., p. 54).

FÁBULA O leão velho, o asno, o touro e o porco (Séc. XIV)

Comta-se que hüu leom era tam velho que se nom podia mouer; e emcomtrou com hüu asno e com hüu touro e com hüu porco. Veemdo estes que o leom per velhice nom se podia mouer, diserom amtre sy:

— Ora he tempo que filhemos vimguança deste treedor, que matou nossos parentes e fez a muytos mal. E o asno lhe deu dous couçes, e o porco com os dentes e o touro com os cornos. E o leom choraua e bradaua dizemdo:

— Tempo fuy que eu vemçia todas as alimalias! E ora toda-las animalias vemçem a mym! E eu perdoey a muytos, e estes non perdoam a mym!

Per esta guisa o leom ficou chorando.

Em aquesta hestoria o doctor diz que nas nossas bem auem-turanças, deuemos fazer muyto pera avermos amiguos e nom ymijgos, ca os boos amiguos ajudam os homees nas suas pressas, e os emiigos fazem todo polo contrayro. Ajmda diz que o homem nom deue fazer a outrem aquello que nom queria que fosse fecto a elle.

Lenda do Rei Leir (Séc. XV)

Quando foi morto rrey Balduc. o voador, rreynou seu filho que ouue nome Leyr. E este rrey Leyr non ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amauaas muito. E huum dia’ouue sas rrazoões com ellas e disselhes que lhe dissessem verdade quall delias o amaua mais. Disse a mayor que nom auia cousa no mundo que tanto amasse como elle, e disse a outra que o amaua tanto como ssy meesma, e disse a terceira, que era a rríeor, que o amava tanto como deue d’amar filha a padre. E elle quislhe mal por en, e por esto nom lhe quis dar parte no rreyno. E casou a filha mayor com o duque de Cornoalha. e casou a oi’tra com rrey de Scotia; e nom curou da meor. Mas ella por sa ventuira casousse melhor que nenhuma das outras, ca se pagou delia elrrey de França e filhoua por molher. E depois seu padre delia en sa velhice, filharomlhe seus gemrros a terra e foy malan-dante. e ouue a tornar aa merçee delrrey de França e de sa filha a meor. a que nom quis dar parte do rreyno. E elles reçe-beromrio muy bem e deromlhe todas as cousas que lhe forom mester e homrraromno mentre foy uiuo. e morreo em seu poder.

(Dos Livros de Linhagens, de Portugalix Monumenta Histórica, ap. João Ribeiro, na Seleta Clássica).

(566) Nestes vários textos deparam-se formas antigas de evolução fonética, outras que decorrem da instabilidade gráfica e finalmente outras que são arcaísmos semânticos ou sintáticos, como se pode ver: saúde (lat. salute) = salvação;
mia
ou mia (lat. mea) = minha;
proe
= proveito, conveniência (cfr. proes e precalços ™ lucros e perdas);
molher
(melhor forma, que se preteriu);
padre = pai;
madre = mãe;
raya, raia
= rainha;
manda —
testamento;
sten (lat síent) voz mais etimológica — esteiam (por analogia com sejam); cm Camões ainda se lê: "Antes que esteis mais perto do perigo" (Lus., VIII, 48) e em SÁ de Miranda: …"onde quer que ela este". (Obras, ap. J. Ribeiro).
de pos, pôs, pois — depois; ei aja, ajam> aver, formas do v. haver; semel (alter, de sémen) — geração, descendência;
harort, barões —
varão, varões; devier, deviir (lat. devenire) = vier; révora ou rébora (ou rebora, como quer
Leite de Vasconcelos, Lições de Filol. Port., pp. 81-83), deriv. de reborar, do lat. robur) — idade de discernimento, puberdade, maioridade, capacidade civil
; apostóligo ■= bispo (faz referência ao papa); sa = sua; so = sob; soo = só; ata, ataa, atá (do ár. liana, que deu no esp. fasta are. c o atual hasta) ■=. até; comenda — guarda, recomendação, proteção; suso, alter, de *susso, {do lat. sursum) — acima;
assuar, assüar
(lat.
ad + sub + unu + are) = reunir, ajuntar; antre, amtre, ontre, omtre = entre; onlraquestes (ontre aquestes) r= entre estes; chus (do lat. plus, que deu o fr. plus e o ital. piú) ~ mais; os chus muitos per nombro — a maioria; nombro (forma regular evolutiva do lat. numeru, como ombro, de umeru; combro, de *cumeru por cumulu; cogombro, de *cucumeru por cucumere) = número; enas (in + illas > en + las > ermas) = nas; rico homem, ricomem = nobre senhor feudal; vençudos, perdudo (forma do part. pass. na 2.aconj.; ü«. ü", hãu, huum, hum hüa = um, uma; Ihi {illi > //) = lhe; jilhar car, oriundo do lat. quare, formado do abi. qua re, por qual cousa, = tomar; de guisa = de maneira; leteras = cartas; ca (do fr. car, oriundo do lat. quare, formado do abi. qua re, por qual cousa, ou por qual razão; ou do lat. quia, como ensina J. J. Nunes) = porque; aveo, avesse = aconteceu, acontecesse; treedor (lat. traditore) — traidor; animalia e alimalia =
alimária; u, hu (lat. ubi ou huc) — onde; sia — estava ou era (hu sia — onde estava [ordenado, escrito, determinado]);
aduzer —
conduzir, apresentar, enviar; catar ‘ ver, olhar, procurar; i, y (lat. ibi ou hic) = aí; dis i (des i) então, desde então; en = isso; ende = dele, disso; esmou = estimou, avaliou; ren, rem [natam] = cousa, cousa nenhuma; conoceu (cognoscere) = conheceu; deitadura de besta — arremesso de besta (faz referência à distância que alcança um projétil de besta (arma): Há confusão no 2.° excerto do Santo Graal, entre a fada Morgay e o irmão do rei Artur — como faz notar o douto escoliasta P". Auc Magne (na mesma p. 54 da Revista citada); meor — menor; se pagou dela = agradou-se dela; mentre (ital. mentre, esp. mientras) = enquanto; moor = mor (síncope de maior); doo — dó;
malanâante —
desditoso; consiire — considere (consirar) — considerar) ;
avondosamente — abundantemente, com largueza; haprestes ^= aprestos; tirar — atirar; poeram = porão (futuro verbal);
poboo (populu) — povo. Aqueles som prudentes que sabem reger sy e outros — construção antiga e usada pelos clássicos, na qual a oração adjetiva se desloca de junto do nome que ela restringe; manha — costume, prática, arte; avysamentos — conselhos; deprende = aprende; desvairadas = discordantes, diversas;
passo
(advérbio) — de vagar, lentamente; renembrar bz relembrar; querençoso = amante, desejoso, amigo; caça e monte — caçada e montaria (monteiro ou monteador = caçador); hussos, ussos = ursos; sabujos e alaãos, cães de caça; amantenente (= a mão tenente) = a pouca distância, a queima-roupa; empicotou-se = inclinou-se?; leixar (lat. laxare) z=z
deixar; quitar-se de (fr. quitter) ~ afastar-se, deixar, separar-se, largar; azcuma, ou ascuma (var. ascuna e ascunha) = dardo, pequena lança de arremesso; canada = medida equivalente a quase litro e meio; tacha — mancha, defeito, erro.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

 

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