HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA
Johannes HIRSCHBERGER
Fonte: Ed. Herder
Trad. Alexandre Correia
- Índice
- Prolegômenos
- Filosofia Patrística
- A Filosofia Escolástica
- Generalidades
- A Primitiva Escolástica
- A Alta Escolástica
- A Escolástica Posterior
- Nicolau de Cusa: Idade Média e Idade Moderna
6 — A ESCOLA FRANCISCANA MAIS RECENTE:
DOUTRINAS ANTIGAS E NOVAS
Ao lado do aristotelismo de Alberto, Tomás e suas escolas,
sobrevive ainda a velha tradição agostiniana, com o seu pensamento próprio.
Antes como depois, são sempre os franciscanos os seus representantes
principais.
a) De Boaventura a Escoto
Até Duns
Escoto, que simboliza uma nova culminância, a velha herança é
transmitida por Mateus de Aquasparta (+
1302), cuja epistemologia é particularmente digna de consideração; Guilherme de la Mare (+ 1298), cujo escrito anti-tomista já mencionamos: Ricardo de Mediavilla (+ após 1300); Rogério Marston (+ 1303) no qual
claramente já se mostra a tentativa, típica em Oxônia, de fundir aristotelismo
e agostinismo; Pedro João Olivi (+
1298), que introduz três formas na alma humana — a vegetativa, a sensitiva e a
intelectiva, das quais só as duas primeiras seriam formas substanciais do
corpo, teoria expressamente rejeitada pelo concilio de Viena em 1312.
Franciscano foi também Raimundo Lulo (+
1316) que, com a sua Ars generalis et ultima (1308) quis constituir uma
espécie de mecânica de idéias que permitisse calcular artificialmente todas as
suas possíveis combinações, tentativa retomada por Leibniz na sua Ars combinatoria.
b) Duns Escoto
O fundador da mais recente escola franciscana é Duns Escoto (1266-1308). Pertence
indubitavelmente aos primeiros espíritos da escolástica, embora seja algo
excessivo dizer-se que criou uma nova síntese. Mas em toda parte é um espírito
adiantado. Suas idéias são mais agudas, suas distinções mais exatas, suas
provas mais coerentes, sua problemática mais rica que até então. Quem quiser
filosofar com Tomás faria bem,
por ocasião de cada questão, retomar os pensamentos de Escoto e explorá-los.
Cabeça crítica, bem mereceu o cognome de doctor subtilis. Não critica
porém por criticar, mas sempre procura, criticando, elucidar melhor as verdades
já estabelecidas. De orientação fundamentalmente agostiniana, conhece ainda Aristóteles muito bem, mas sem aderir a
ele. O seu esforço é para ser um mediador entre as oposições do agostinismo e
do aristotelismo. Sabe entender-se com independência relativamente à tradição
científica, sobretudo com Tomás.
Vida e Obras
Escoto foi Professor em Oxônia,
Cambridge e Paris. Em 1308 foi chamado para Colônia onde morreu com 42 anos de
idade. O volume de sua obra literária é espantoso dada a curteza da sua vida. Os
mais importantes dos seus escritos são: as Quaestiones subtilissimas in
metaphysicam Aristotelis (autênticos só os primeiros nove livros); Quaestiones ao De anima- de Aristóteles (provavelmente
autêntico); o Tractatus de primo principio (edição crítica de M. Müller,
1941); Opus Oxoniense; Reportata Parisiensia; Quodlibeta. Nova edição
crítica das obras de Duns Escoto sob
a direção de P. C. Balic, em curso de publicação (1950 ss.)
Bibliografia
E. Longpré, La philosophie de B. J. Duns Scotus (1942). R. Messner, Schauendes und
begriffliches Erkennen Duns Scotus (1942). E. Gilson, Jean Duns Scot (1952). Schäfer O., Bibtiographia de Vita Operibus et Doctrina Joh.
D. S. Saéc. XIX
— XX (1955).
Vamos expor as idéias fundamentais com as quais
DUNS ESCOTO enriqueceu e
desenvolveu a problemática do seu tempo.
α) Saber e crer, — A orientação
agostiniaua revela-se logo em Duns
Escoto se lhe observarmos
a posição relativamente
à problemática tradicional, no atinente à
ciência e à crença. O conhecimento filosófico de Deus se lhe limita à
existência; e as mais importantes elucidações a respeito dele pertencem à fé. O
objeto da metafísica não é Deus, como o pensava Averróis, mas o ser como tal, conforme o tinha dito Avicena. A ciência certa é só a que se
funda na percepção sensível. O conhecimento das causas supra-sensíveis nos
escapa; são-nos acessíveis por argumentos indiretos, sempre débeis e muito
gerais. Por isso um conhecimento adequado da essência divina p. ex., escapa à
razão natural. Dizemos, certo, que Deus é o ser supremo, primeiro e infinito;
mas esses são sempre "conceitos confusos". Na realidade Deus é ainda
onipotente, imenso, onipresente, verdadeiro, justo, misericordioso,
onisciente. Mas tudo isto só podemos sabê-lo pela fé e a teologia. Pelo
contrário, é possível uma "metafísica cristã". Esta realiza e examina
filosòficamente a fundo as verdades sobre Deus e a imortalidade, depois de nos
terem sido reveladas pela fé, conforme já Anselmo
o tinha feito. É isso mesmo que Escoto
agora pretende fazer no seu Tractatus de primo principio. O
quanto Escoto delimita o domínio
da razão natural em matéria de metafísica, particularmente o vemos pela sua
posição em face da lei moral natural. Enquanto Tomás lhe considera todo o conteúdo como racionalmente
compreensível e demonstrável, Escoto afirma
que isso é possível só quanto às disposições dos três primeiros mandamentos do Decálogo,
mas não quanto aos outros. Assim, p. ex., podíamos conceber uma ordem do mundo
onde fosse lícito o homicídio, a poligamia e não existisse nenhuma propriedade
privada. Tomás considerava todos
os mandamentos do Decálogo, por causa da sua necessidade, racional, como
imutáveis; Escoto considerava
tais só os três primeiros, porque a sua alteração implicaria numa contradição
interna, o que não se dá com os outros. Por isso estes últimos preceitos morais
são disposições dependentes da vontade divina e não têm, como para Tomás, nenhum conteúdo racional. Escoto não é tão crente na razão;
espírito crítico, torna mais estreitas as fronteiras da razão. Talvez também
quisesse assim encerrar em apertados limites as pretensões filosóficas
totalizantes dos averroístas.
β) Primado da vontade. — Compreendemos
agora como Escoto chegou à doutrina
do primado da vontade. Mas com isso não quis ceder a um irracionalismo, nem
afirmar que a vontade pura, por si mesma e só, já possa ser prática. Também Escoto vê na vontade em si uma
"faculdade cega", como sempre diz Tomás;
e sabe que só pode ser querido o fim previamente proposto pelo
intelecto. Mas Escoto atribui à
vontade humana maior valor que ao conhecimento, porque o amor nos une mais
intimamente com Deus do que a fé, e isso se vê logo do fato de ser o ódio a
Deus pior que a ignorância dele. Demais, a vontade deve ser livre em todas as
circunstâncias. Segundo Esgoto, nada
pode determiná-la, mesmo o supremo bem. Só ela ê a causa das suas ações.
A singular valorização da vontade, característica do escotismo, também se
transfere para Deus. Assim, é a vontade divina a que positivamente cria a
multidão das idéias particulares, de acordo com as (piais Deus formou o mundo,
Se Deus conhece as cousas nas suas essências próprias, é que ele encerra
em si de toda a eternidade os modelos delas. Mas elas não são produzidas
arbitrariamente, como não o são as leis morais positivas, pois a vontade divina
cria o que a sabedoria divina preconcebeu. E também aqui, de novo, a
possibilidade ou não de uma idéia é a essência de Deus quem a decide e isto sob
a égide do princípio de contradição. Também Escoto
introduz no seu sistema o platonismo cristão. O seu pensamento faz eco ao
αποβλετειν
προς τι
(as Idéias com que Platão estereotipicamente
explica a criação do mundo pelo demiurgo) tão claramente como em Agostinho, Tomás ou Boaventura.
γ) Individuação. — Conexa com esta
valorização da vontade e a sua, em cada caso, decisão positiva, é a posição de
Escoto relativamente ao problema
da individuação. Também o individual é uma entidade positiva e tem como
tal uma haecceitas. O conhecimento do individual é o perfeitíssimo dos
conhecimentos. Assim, em face do primado do universal em Platão, Aristóteles e Tomás, se afirma uma nova concepção que
fará escola e ainda mais se fortalecerá com o aproximar-se dos tempos
modernos. Embora o termo haecceitas somente formule o problema, sem o
resolver, já nele se manifesta tipicamente e pela primeira vez o que virá a
ser uma afirmação capital na filosofia moderna — o individualismo.
δ) O conhecimento. — Escoto é conseqüente consigo mesmo, na
sua teoria do conhecimento, quando admite como cognoscível na sua totalidade as
cousas concretas individuais. Não há nenhum resíduo irracional, nem nenhuma
necessidade de nos aproximarmos do individual, passando pelo desvio do
universal. Numa intuição intelectual-sensível captamos imediatamente a cousa
existente. Mas o conhecimento não se limita só a isso; também Escoto sobe aos conceitos universais.
Estes são abstraídos e, de novo, é o intelecto agente o que faz essa
operação. Mas ensina ele, que a natura communis é um meio termo entre o
individual e o universal. É só por esta que apreendemos a species intelligilis, a idéia universal, de que deve servir-se todo conhecimento científico. A
atividade do intellectus agens no processo cognitivo Escoto particularmente o realça. Em
face dele a intuição é causa simplesmente parcial; mas ele é ex se causa
integra factiva obiecti in intellectu possibili, A sua função consiste
em estabelecer uma certa e constante relação entre os nossos modos de conhecer
e o objeto do conhecimento. E assim Escoto
assinala a lei própria do conhecimento humano, melhor que Tomás, que também aceita o princípio
— tudo o, conhecido o é ao modo do conheceu te. O aspecto subjetivo "do
conhecimento vai ainda mais longe. Para Escoto
a verdade já não é, conforme à. ingênua teoria da imagem, simplesmente
uma adequação; mas "é verdade o que é comensurado com a sua
proporção". Isto manifesta clara a sua visão crítica. Escoto também sabe que a experiência
sensível enuncia somente juízos de fato. Mas os princípios só podem ser
conhecidos pelo intelecto e sua capacidade apreensiva de relações, mesmo quando
interpretamos erroneamente os dados da experiência sensível, pois os sentidos
não exercem nenhuma causalidade eficiente sobre o intelecto (intellectus non
habet sensus pro causa, sed tantum pro occasione). Quando Escoto assim o diz e quando, com o
auxílio dos princípios do intelecto, decide em última instância sobre a verdade
e o erro dos nossos juízos, aqui reaparece — como, demais disso, na doutrina da
natureza comum, que não passa de um universal disfarçado — o velho conceito do ειδοζ.
E assim em Escoto a relação entre
a sensibilidade e o intelecto fica tão obscura como na escolástica coeva.
Só a filosofia inglesa contemporânea é que tomou a sério a questão da
sensibilidade. Mas já vemos por Escoto,
e ainda mais por Ockham, o
aproximar-se lento e vagaroso a essa evolução, mas enfim o
aproximar-se. E estas observações nos fazem conhecer como o pensamento
moderno é uma continuação do medieval e não surgiu repentinamente, como Minerva
da cabeça de Zeus, novidade totalmente nova e diversa.
ε) Conceito
unívoco do ser. —
Escoto fez falar muito de si pela
sua doutrina da universalidade do conceito de ser, a propósito das predicações
que fazemos a Deus. Não quer com isso estabelecer nenhumas categorias de
sentido unívoco atribuível a Deus e ao mundo ao mesmo tempo. Neste ponto segue
a velha teoria da predicação analógica. Mas àquele ser generalíssimo manifesto
em tudo quanto existe, seja o que for que conheçamos e a que façamos
predicações, embora as cousas se distingam umas das outras, deve corresponder
um nome e um conceito próprios, dado que há um sentido quando se fala do ser.
Em toda analogia deve sempre haver algo de comum e de igual. É este um
pensamento que os antigos não exprimiram assim. Esse ser generalíssimo é o maxime
scibile e, como tal, para Escoto objeto
da metafísica. É um transcendental, mais determinado pelos atributos de
infinito–finito, necessário-possível e semelhantes modalidades. Nestas
modalidades entram as distinções que, antes de Escoto, se faziam mediante os conceitos de ser
superessencial, por participação, necessário e contingente. Assim se salva a
existência da problemática e ao mesmo tempo da noção de analogia. Pois, uma
comparação só é possível com um ser comum e já conhecido, seja esse uma idéia
ou um ser modalmente conjugarei de espécie mais universal, o que também
significa o mesmo.
ξ) Provas de Deus. — Toda a agudeza do seu
espírito Escoto a aplicou ao
problema das provas de Deus. Desde cedo rejeita a prova aristotélica do
movimento, por ter o princípio do movimento muitas exceções. Mas aceita a
prova tirada da causa eficiente, a da finalidade e a dos graus de perfeição. A
explicação filosófica do conceito de causa, em geral e do princípio de
causalidade em particular, e da impossibilidade de um regressus in
infinitum, que Escoto aqui
empreende, devia incluir-se em qualquer exposição sistemática das provas de
Deus. (Para mais minúcias cf. a penetrante análise em Gilson-Bóhner). Neste conjunto também Escoto retoma a prova anselmiana, ampliando-a pela prova da
possibilidade da idéia de um ser infinito e é assim precursor do pensamento de
Leibniz.
c) Escola escotista
Escoto exerceu uma influência
nos séculos seguintes. Contam-se entre os seus discípulos Antônio Andreae (+ 1320), o autor da Expositio
in Metaphysicam por muito tempo atribuída a Escoto; Francisco de Mayronis (+ 1325); Gualtério Burleu (+ após 1343); Tomás Bradwardine (+ 1349),
típico para a tradição matemática oxoniense; Pedro Tartareto, em 1490 Reitor da Universidade
Parisiense; Francisco Liqueto (+
1520); Maurício a Portu (+ 1520)
etc.
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